Há um século, os primeiros imigrantes japoneses bravamente ancoraram suas vidas no solo sul-americano, dando início aos fortes e felizes laços de amizade que para sempre uniriam Brasil e Japão. Assim reza a lenda na mídia brasileira, brindando com champanhe, caipirinha e saquê o centenário da imigração japonesa no País. No entanto, a história “real” desse encontro é recheada de confrontos e discórdias entre as duas nações. Conflitos muitas vezes deliberadamente ignorados por aqueles que querem reforçar as fábulas que tanto seduzem os entusiastas de uma cultura nipo-brasileira harmônica.
Diz o ditado popular que os olhos são a janela da alma. Eles dariam frescor à vida e revelariam sentimentos ora ocultos em nossa mente, ora desviados por nossas palavras. Imersas nesse espírito romântico, campanhas publicitárias e reportagens jornalísticas exibem sua astúcia neste 2008 para lapidar a história da imigração japonesa no Brasil como uma pepita de ouro. O momento, afinal, é de festa. Se, na mídia, o nosso verde-amarelismo se mistura ao vermelho e branco da flâmula nipônica, quem recusará as citações ao “sol nascente” e aos contos de fadas contemporâneos de samurais, quimonos, origamis, sushis e afins? É música para os ouvidos e poesia para os olhos de quem se satisfaz com ilusões.
O amarelo no Brasil
No Brasil colonial, às vésperas da abolição da escravatura no final do século XIX, os fazendeiros paulistas precisavam de novos braços para a lavoura de café em substituição aos escravos africanos. Assim, entraram em cena italianos, sírio-libaneses e japoneses, estimulados a migrar para São Paulo a fim de construir uma nova vida na cafeicultura, desta vez nos moldes do trabalho livre.
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De acordo com o historiador norte-americano Thomas Holloway, na obra Imigrantes para o Café (Editora Paz e Terra, 1984), essa nova categoria de trabalhadores foi atraída pelas oportunidades de riqueza e prosperidade que imaginavam haver na América. E, assim, o início do século XX marcou o impulso da imigração japonesa ao Brasil. Mais precisamente no dia 18 de junho de 1908, quando, após 20 mil quilômetros navegados, o navio Kasato Maru chegou ao Porto de Santos trazendo 793 imigrantes japoneses, pioneiros do que futuramente se tornaria a maior colônia fora da ilha nipônica. De Santos, os japoneses foram encaminhados à Hospedaria dos Imigrantes, em São Paulo. E de lá, aos campos.
Durante a vinda dos imigrantes japoneses, os diplomatas brasileiros se dedicaram a exaltar os laços amistosos entre as duas nações. Mas, à primeira vista, brasileiros e japoneses se estranharam. Na perspectiva dos asiáticos recém-chegados, o clima, a língua e os costumes, tão díspares dos seus, faziam do Brasil uma atmosfera extravagante. Na ótica dos pátrios, por sua vez, também a chegada de japoneses foi recebida com ares de exotismo, por sua fisionomia, sua língua e sua cultura tão diferentes das que se viam nas terras tupiniquins. Nas três décadas iniciais da imigração, a diplomacia brasileira tentava amenizar tais diferenças disseminando a idéia de que o povo japonês vinha se unir a nós, contribuindo com sua disciplina e sua cultura milenar e, assim, enriquecendo a cultura brasileira – critica o antropólogo norte-americano Jeffrey Lesser no livro A Negociação da Identidade Nacional: Imigrantes, Minorias e a Luta pela Etnicidade no Brasil (Editora Unesp, 2001).
O autor ressalta ainda o contratempo que a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) representou para a adaptação dos imigrantes em nosso País. O Brasil se posicionou a favor dos Aliados, grupo de países formado por França, Grã-Bretanha, Estados Unidos e União Soviética, enquanto o Japão se coligou aos países do Eixo, ao lado de Alemanha e Itália. Por assumirem posições opostas no conflito bélico, a discriminação contra os japoneses se fez explícita e as tensões estremeceram o que poderia vir a ser um relacionamento pacífico entre brasileiros e os imigrantes orientais e seus descendentes no País. A situação era tão grave que, à época, os japoneses eram vistos como o “perigo amarelo”. Por conta disso, no estado de São Paulo tornou-se proibida a circulação de jornais publicados em japonês – ninguém queria que o bairro da Liberdade se transformasse em um refúgio do “inimigo”.
Somente após 1953 as relações entre as duas nações foram reconciliadas, reiniciando o processo imigratório Japão-Brasil. A partir daí, os imigrantes japoneses foram encaminhados para outros estados além de São Paulo, visando não apenas à agricultura, mas a outras atividades. Dessa forma, destaca-se o papel que o imigrante japonês cumpriu na composição do povo brasileiro. Mas é inegável que a história “oficial” sempre privilegiou três principais matrizes étnicas para brindar o povo brasileiro: o branco, o negro e o vermelho. Diante do oriental, o europeu, o africano e o índio, de fato, contam 400 anos a mais de história no Brasil. Considerado assim, o japonês seria uma minoria. Mas, como diria Lesser, é uma minoria composta por milhares de almas que deram adeus às ilhas banhadas pelo Oceano Pacífico e que cravaram suas vidas no território brasileiro. A estimativa é que cerca de 250 mil japoneses tenham aportado no Brasil – 180 mil antes da guerra e 70 mil no pós-guerra. Atualmente, esse número gira em torno de 1,5 milhão de japoneses e seus descendentes.
No calendário, o dia 18 de junho de 2008 oficializou o centenário da saga japonesa no Brasil. E pipocam por todos os cantos do País eventos comemorativos à data. Na dianteira das festividades está a Associação para Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil (ACCIJB), entidade civil sem fins lucrativos constituída em 2003 pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Assistência Social (Bunkyo). Segundo o professor Kokei Uehara, presidente do colegiado administrativo da ACCIJB, o propósito da entidade é relembrar e homenagear a memória dos imigrantes pioneiros e manifestar gratidão pela receptividade dos brasileiros e pelo feliz convívio com os demais imigrantes. “Vamos trabalhar juntos para a realização de uma festa memorável em 2008, simbolizando a paz, a união e o respeito entre dois povos e duas nações irmãs: Brasil e Japão”, diz. Apesar de positivo e politicamente correto, o discurso cria ilusões de que esse relacionamento bilateral tenha se cristalizado como um amálgama culturalmente perfeito.
Além da questão da legitimidade do elo fraternal entre Brasil e Japão no presente, há ainda um entrave na questão da “cultura japonesa” no Brasil. Para festivas edições especiais, as pautas sobre casamentos inter-raciais, ikebana e culinária típica, entre outras, tornaram-se mais do que previsíveis nas revistas e no noticiário. Ao focalizar manifestações culturais de inspiração nipônica, a mídia folcloriza a cultura japonesa, dando a ela ares exóticos. Mas se esquece de que se trata, sobretudo, de “cultura brasileira”. Para o professor Koichi Mori, do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), não poderíamos sequer nos referir a uma cultura japonesa no Brasil. O que há, na realidade, é o segmento de uma cultura brasileira de inspiração japonesa. Tal inspiração é herança que nikkeis e descendentes preservaram. Ainda assim, é cultura brasileira. Ou melhor: nipo-brasileira. Com esses deslizes – na questão diplomática e na questão teórica da cultura -, a imprensa e a publicidade afoitas têm lidado com o centenário da imigração japonesa como quem garimpa belas frases e fotografias em busca de poesias e preciosidades, afastando as pedras valiosas das más e daquelas que não ofereçam brilho ao olhar.
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