Histórias postais do Brasil

Fotos: IMS/Divulgação
Fotos: IMS/Divulgação

Tomo a liberdade de abrir este texto em primeira pessoa, com um relato da memória afetiva de minha infância e adolescência. O recurso pode ser elucidativo para o tema desta reportagem, especialmente para os leitores mais jovens que, em questão de minutos, costumam se aborrecer ao ter uma mensagem enviada lida e não respondida no Facebook ou no WhatsApp. Quando eu era criança, minha avó materna, Adelaide remetia, do interior da Bahia, cartas regulares para minha mãe, residente em São Paulo desde os 19 anos de idade. Claro,  a angústia da espera não se compara à ansiedade desmedida dos destinatários e remetentes virtuais de hoje, mas quando o carteiro batia à porta eu era tomado pela expectativa de poder escutar a voz da minha avó, sentir o cheiro da terra vermelha do quintal de sua casa e figurar os vizinhos que se reuniam à noite, apinhados na sala, para ver novela, em uma das únicas casas com TV em cores da rua. Era como se eu estivesse lá – e o melhor, já havia estado.

Hoje, não são muitos os que escrevem cartas. Ninguém há de condenar os benefícios da tecnologia, mas a perda do hábito é lamentável. Esse intercâmbio postal tinha, entre outras magias, o poder de nos deslocar geograficamente. Um “jogo de cartas”, fascinante, que viciava anônimos, como minha avó Adelaide, e grandes personalidades do Brasil, como, por exemplo, o jornalista e escritor Otto Lara Resende (1922-1992), que detém um acervo grandioso de correspondências em poder do Instituto Moreira Salles do Rio de Janeiro – IMS. “Otto tem um arquivo especialmente rico em cartas. São mais de 8,5 mil. Ele escreveu muito. Dizia que sofria de ‘cocaína postal’. Uma doença que foi erradicada, porque hoje em dia ninguém mais escreve cartas”, diz a pesquisadora Elvia Bezerra, por telefone, pouco antes de ir para a sede do IMS carioca, onde se dedica a um rigoroso garimpo epistolográfico.

Em maio de 2014, Elvia deu início ao projeto intitulado Correio IMS, que ajuda a reconstituir parte da memória do País por meio da correspondência trocada entre célebres brasileiros ao longo dos últimos cinco séculos. Uma narrativa íntima, composta por destinatários e remetentes ilustres, o exercício das artes da caligrafia e da datilografia, milhares de páginas de caderno, folhas de sulfite e envelopes, selos postais e muita sola de sapato de carteiros. Não resta dúvida de que esse ritual foi engolido pela dinâmica de comunicação frenética imposta pela nova ordem da aldeia digital, mas é justamente na internet que Elvia difunde o Correio IMS. O portal, recém-lançado, experimenta seus primeiros dias on-line e reúne, até o momento, mais de 100 correspondências de 85 personalidades. 

Carta de Vinicius de Moraes para Otto Lara Resende  é uma das campeãs de acesso. Foto: IMS/Divulgação
Carta de Vinicius de Moraes para Otto Lara Resende é uma das campeãs de acesso. Foto: IMS/Divulgação

A seleção inicial traz um quem é quem da cultura, da intelectualidade, dos meios políticos e científicos e do universo acadêmico do País. Inclui, entre outros, Ana Cristina Cesar, Augusto Boal, Austregésilo de Athayde, Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves, Chico Buarque, Clarice Lispector, Décio de Almeida Prado, Dom Pedro I e Dom Pedro II, Érico Verissimo, Fernando Sabino, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Nabuco, Lima Barreto, Machado de Assis, Nise da Silveira, Noel Rosa, Rui Barbosa, Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

A triagem regular do acervo resulta na publicação de uma carta inédita a cada nova semana. Ao fundir depoimentos de contextos históricos tão diversos, a pesquisa demanda ajustes para tornar o conteúdo compreensível para o leitor: “Depois de selecionadas as cartas, fazemos parágrafos de contextualização e mini biografias dos remetentes e dos destinatários. Ao mesmo tempo que precisávamos respeitar a edição original, tomamos algumas liberdades, que são explicadas na aba ‘Sobre’. Procuramos fazer atualizações ortográficas e algumas notas de rodapé, que julguei indispensáveis, conservando as da edição base e acrescentando observações que vêm com a indicação ‘N.S.’, nota do site. O objetivo é tornar a leitura mais prazerosa”, explica Elvia.

No primeiro mês de atividades do portal, com o uso fundamental das mídias sociais, a recepção foi entusiasmada e crescente: “A iniciativa tem sido muito comentada. Ontem mesmo, para minha surpresa, uma carta do Castro Alves, que ganhou o título Coração Leviano (remetida ao amigo e advogado Marcolino de Moura e Albuquerque), teve grande sucesso de compartilhamentos no Facebook. Fico feliz.”, comemora Elvia.        

Além do acervo generoso do IMS, a pesquisadora cearense – que reside no Rio de Janeiro desde 1972 – pretende ampliar o universo postal do Correio IMS com a colaboração de colecionadores particulares e de outras instituições. O apoio dos familiares dos personagens reunidos no portal tem sido fundamental para o compartilhamento do conteúdo disponibilizado na nova plataforma. “Os pedidos são bem acolhidos, com raríssimas exceções. Hoje mesmo recebi autorização da Cecilia Boal (viúva do dramaturgo) para publicar uma carta do Augusto Boal para o Chico Buarque”, diz Elvia.

Foto: Reprodução/IMS
Foto: Reprodução/IMS

Questionada sobre os propósitos do portal, a pesquisadora atribui à iniciativa a oferta de um passeio pela história do País. “Nossa ideia é propiciar uma rica viagem pelo Brasil, por meio de suas diferentes áreas.” O volume de pesquisa envolve diversos colaboradores do IMS – orientados a fornecer material que possa interessar ao Correio IMS –, mas é concentrado no trabalho de Elvia e de sua assistente, Lyza Brasil.

Intimidade que inspira questionar cartas prediletas ou que, por algum motivo, mereça o destaque da criadora do projeto. “Acho uma graça uma carta de Dona Leopoldina pedindo um noivo a seu anjo da guarda, mas ela se casa com Dom Pedro I e sofre tanto, coitada… Tem uma carta-testamento, contundente, do Oswaldo Cruz dizendo como queria que fosse seu enterro e um bilhete do Rubem Braga contando ao filho o destino que devia ser dado às suas cinzas, mas há também cartas de amor arrebatado, como uma de Graça Aranha (remetida à sua mulher, Nazaré Prado), um homem aparentemente sóbrio, mas que se revela um amante caliente. A carta de Lucio Costa (para sua mãe, Alina Ferreira da Costa) sobre Florença e Veneza é uma obra-prima, chama-se Florença é a Cor, Veneza é a Forma e a Linha. Uma pérola.”

No site correioims.com.br, você tem a oportunidade de descobrir esses e outros tesouros. Navegue e boa viagem!


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