Honesto e corajoso

JAMES ALISON Conta em livro como conseguiu conciliar a homossexualidade com o sacerdócio católico

James Alison é inglês de nascimento, mas brasileiro por opção. Mora aqui, de forma intermitente, há mais de 20 anos, formou-se em teologia na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, e está adotando um filho brasileiro, Luiz Felipe, com quem pretende compor uma família.

Até que seu livro Fé Além do Ressentimento – o quarto dos sete que já escreveu em inglês, e o primeiro traduzido para o português – chegasse às minhas mãos, eu jamais acreditaria que um fenômeno como ele pudesse existir. O subtítulo do livro, Fragmentos Católicos em Voz Gay, mostrava que ali estava algo novo e surpreendente. Sim, seu autor é gay, vive sua homossexualidade abertamente, e escreve sobre isso. Não haveria aí nada de anormal, não fosse ele um padre, que consegue conciliar homossexualidade com o sacerdócio católico.
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Nascido evangélico anglicano, buscou abrigo junto aos católicos dominicanos, explicando que: “Os primeiros impõem a ele um ‘totalitarismo interior’, no qual não há escapatória, ao passo que o catolicismo impõe um ‘totalitarismo exterior’, que se situa fora de você, em outras pessoas, muitas delas homossexuais enrustidos, desequilibrados. Ao compreender o elemento ridículo dessa realidade, você acaba por se perceber livre, desobrigado a seguir aqueles ensinamentos”.

Em Roma, junto aos superiores dominicanos, perguntou onde encontraria o melhor ensino de teologia em todo o mundo, e foi surpreendido com a resposta: “Junto aos padres jesuítas, na faculdade de Belo Horizonte”. Chegou ao Brasil em meados dos anos 1980. Aqui, viveu o amor por outro homem, o destino impunha o conflito entre sua natureza como homem e sacerdote e não lhe poupou momentos cruéis: o homem que amava morreu, vítima da AIDS, uma perda dilacerante. Nesse momento, encontrou os ensinamentos do teórico francês René Girard, a quem define, divertido, como “meu Guru”. Seguindo a ótica de Girard, aventurou-se a uma releitura do evangelho, sabendo que somente estaria livre vivendo a verdade acerca de si mesmo. Chegou então à maravilhosa compreensão: a possibilidade de se viver honestamente como cristão e homossexual, principalmente hoje quando a falsidade da vida dupla, o don’t ask, don’t tell, desaba no mundo inteiro.

A expressão “além do ressentimento” mostra que Alison não cai na armadilha de dividir o mundo entre “os gays e os outros” como vítimas e algozes. Seguindo os ensinamentos do cristianismo, sob olhar renovado, mostra a todos como iguais, e nos oferece essa compreensão libertadora. “A Igreja insiste em explicar os homossexuais como heterossexuais defeituosos, quando, na verdade, somos uma variante minoritária, mas de ocorrência regular, na humanidade. A premissa de que somos héteros defeituosos não é válida e, portanto, não deve ser seguida, é inaceitável para o estudo do evangelho”, afirma.

Como é possível e honesto ter uma vida amorosa homossexual e ser um sacerdote, em uma estrutura que impõe o celibato e que condena a homossexualidade? E os votos de castidade? “No meio eclesiástico existem muitos homossexuais, e ninguém está propriamente interessado no que as pessoas fazem, contanto que não sejam criminosas, como é o caso da pedofilia. O tabu, o proibido é falar sobre o que faz”, explica. No caso dele mesmo, quando tomou os votos, atuava com a consciência forçada. Percebeu que seguia a premissa eclesiástica errada acerca dos gays e, ao descobrir isso, o seu compromisso com o celibato revelou-se nulo, como o seria qualquer compromisso assumido por uma consciência forçada.

Ele se expôs como gay. Por quê? Não tinha mais nada a perder, já tinha perdido o homem que amava, compreendia o clero e a igreja plenamente, poderia até mesmo ser desligado como padre, afastado do sacerdócio. Viver sua vida com plena honestidade era sua única saída. “Quando se perde o medo de perder é que se está livre.” Escreveu para Roma, convidando seus superiores a decidirem sobre seu destino. Uma troca inicial de cartas foi seguida por muitos anos de silêncio de parte deles. Eventualmente, os próprios dominicanos, por iniciativa própria e sem hostilidade alguma, pediram ao Vaticano que reconhecesse o desligamento entre James e eles, sem pedir que ele fosse afastado do sacerdócio. Dessa vez, a resposta foi mais rápida: ele não seria mais dominicano, mas continuaria padre. Permanece sacerdote, mas está sem vínculo direto com nenhuma autoridade eclesiástica, por enquanto. Nada o impede de celebrar missas e ministrar os sacramentos.

Em momento algum ele enfrentou reprimendas de qualquer figura eclesiástica, mesmo havendo explicado, serena e publicamente, em diversos textos o porquê da atual posição eclesiástica na matéria gay ser contrária aos fundamentos da fé católica. Ao contrário. Diversos membros do alto clero tiveram interesse em conhecer seu trabalho. Todos o compreenderam e o trataram como parte da família.

Uma questão ainda me intrigava: e Ratzinger? Qual sua visão sobre um Papa tão controverso? “Ratzinger é um conservador moderado, muito mais inteligente que João Paulo II. Ele compreende o momento vivido pela igreja e pelo cristianismo. Preserva o ‘para-brisas’ da igreja, com sua posição oficial, mas lentamente ‘alivia os parafusos’ acerca da questão. Afastou da igreja personalidades patológicas trazidas por seu antecessor. Em sua visita à Espanha, logo após a aprovação do casamento de homossexuais naquele país, enquanto o episcopado local pedia histericamente por atitudes drásticas, o Papa silenciou.”

Maravilhosamente honesto no que faz e no que ensina, Alison abre um caminho pelo qual os homossexuais podem encontrar abrigo e conforto no catolicismo, e pretende mostrar isso formando uma pastoral para homossexuais aqui em São Paulo, nos moldes de outra já iniciada com grande sucesso em Londres. Aliás, atualmente ele dedica a maior parte de seu tempo viajando pelo mundo para mostrar seu trabalho. Para entendê-lo, é necessário ler sua obra ou ouvi-lo falar, ele está sempre aberto a convites para palestras. Uma obra dessa profundidade se compreende passo a passo, e esse livro é o primeiro deles.

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