Diário do Iraque: duas crianças morrem e amigo vai para a guerra

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Voluntário da associação alemã Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner (Amigos da Arte de Educar de Rudolf Steiner), o brasileiro Reinaldo Nascimento está em Zahko, no Iraque, em missão em campos de refugiados. 

Zahko fica perto de Mossul. Capturada pelo Estado Islâmico em 2014, Mossul é a peça mais importante no califado que o grupo terrorista tenta implantar com a ocupação e consequente eliminação de fronteiras de parte da Síria e do Iraque. A tentativa de retomada do controle de Mossul por uma coalização de forças oficiais iraquianas vindas de Bagdá, de soldados do Curdistão baseados em Erbil e de milícias xiitas apoiadas pelo Irã, com o apoio aéreo e logístico norte-americano, faz da cidade o palco de uma guerra sangrenta. Um verdadeiro inferno.

Campos de refugiados crescem aceleradamente. Entre as vítimas do conflito, milhares de crianças e adolescentes que sofrem opressões étnicas, vivenciam a guerra e são torturados.

Reinaldo Nascimento, 38 anos, nascido em São Paulo, é o único brasileiro dessa equipe no Iraque. A associação Freunde der Erziehungskunst Rudolf Steiner atua em campos de refugiados em regiões de conflito e em locais que passaram por grandes desastres naturais.

Cofundador da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil, Nascimento hoje conta como foi seu final de semana. Segue mais um relato do diário Pedagogia de Emergência.

Zahko, 12 de novembro de 2016.

No meio do seminário, o telefone tocou. Ninguém queria atender… Mas ele foi atendido e com ele todo desespero de uma colega que acabara de entrar no grupo. Ela começou a chorar, saiu correndo e foi para o canto. Eu entendia a palavra morte no desespero dela. 

Era difícil entender a situação. Quase todos se levantaram para estar ao lado de Ashia. No final das contas, como Minka não estava e eu era o chefe, decidi levá-la para a sua “casa” no campo de refugiados em que vive. Levei uma médica e Alef comigo. 

O campo estava uma loucura. Muitas crianças correndo. Adultos angustiados e muita confusão! No lado de fora, um senhor mais velho começou a dar tapas nas crianças que se acumulavam na vizinhança. Dentro de “casa”, o desespero era ainda maior. Umas 20 mulheres e todas gritavam e muitas se batiam. Ashia não aguentou e desmaiou. Voltou rápido e começou a se bater também. 

A verdade era que eu ainda não sabia realmente o que tinha acontecido e estava com dificuldade de lidar com a situação. Como pedir para o senhor parar de dar tapas nas crianças? Como ajudar Ashia que não fala nada de inglês e, mesmo que falasse, não tinha condições de expressar além de chorar… 

Eu a levei com a notícia de que alguém de sua família tinha morrido de câncer. Eu a deixei com sua família com uma nova notícia de que seu sobrinho tinha sido morrido atropelado e só horas mais tarde é que realmente entendi o que aconteceu. 

Dois sobrinhos, gêmeos, de 5 anos, estavam comendo salgadinhos quando foram atropelados por um pequeno caminhão. Os dois morreram. 

Aqui é tudo rápido. As crianças foram levadas para o hospital e de lá para as montanhas onde nasceram para serem enterradas. A ideia de que os dois chegaram e partiram juntos deste mundo me fascina e claro que posso entender todo aquele sofrimento no campo.

Conversamos com todos os colegas. Fomos ao terraço do hotel e depois de alguns minutos de silêncio, decidimos que continuaríamos com a nossa formação.

Na hora do almoço me sentei ao lado do Maná.

“Que saudades de você, Reinaldo!” Maná foi meu tradutor, pois tinha vivido na Alemanha. A ideia era somente traduzir por duas semanas e depois continuar com a sua vida, mas ele gostou muito do trabalho e das brincadeiras. Não parava de cantar as músicas além de termos uma afinidade por termos vivido na Alemanha.

No final, ele perguntou se poderia fazer parte do time e ficou para a nossa grande alegria!

Maná tem uma filha de 9 anos e sua mãe tem 75 e é muito doente. Tem problemas sérios nos joelhos e, por isto, dificuldades para andar, além de problemas nos rins. Suas consultas e medicamentos custam US$ 400 americanos por mês e ele ganha US$ 450 pelo seu trabalho conosco. 

Para poder também criar a filha e viver melhor, decidiu ir para a guerra lutar contra o Estado Islâmico. Ele já tentou levar sua mãe filha para a Alemanha, mas a mãe não quer pois uma de suas filhas foi para lá e dois meses depois, morreu.

Era fácil ver em sua fisionomia a merda que essa guerra é. Ele começa a falar, suas mãos tremem, seus olhos ficam encharcados. Todos os dias ele vê pessoas morrendo. Chega a ficar duas semanas sem tomar banho. Muitas vezes, só descansa na hora de orar e em seguida começa tudo de novo. Passa fome assim como os outros soldados. 

Muitas vezes encontram civis carregando bombas e precisam decidir se atiram ou não, pois o Estado Islâmico prende essas bombas nos civis e os soldados acabam atirando, pois não sabem se o grupo terrorista pode acionar essas bombas.

Ele também me disse que fica dias sem poder ouvir direito. Muitos tiros e bombas o tempo todo! Maná está cansado, mais magro, enrijecido… Ele tenta sorrir e fazer piadas, mas é fácil perceber o seu sofrimento. Ele ficará conosco somente até amanhã. Precisa voltar para a guerra. 

É muito estranho ouvir alguém dizer que vai para uma guerra! É estranho também ouvir a pergunta: “Reinaldo, por que o governo brasileiro não ajuda a gente?” Eu queria dizer:

“Ah Maná, se você soubesse o que acontece no Brasil, ficaria assustado também. Você iria querer voar para lá e nos ajudar. Tenho certeza de que no Brasil mais de dez pessoas são assassinadas por dia e não estamos em guerra como vocês. Tenho certeza de que muitas mulheres são violentadas todos os dias, que crianças são abusadas e largadas. E tudo isso na maioria das vezes não é causado por inimigos! Ah Maná, se você soubesse como o Brasil é corrupto!”

Mas só tive coragem de dizer: “Ah Maná, como eu queria que você não fosse para a guerra!”

Reinaldo Nascimento

Zahko, 13 de novembro de 2016.

O dia começou com um belo céu azul. Lá no fundo, perto das montanhas, se via uma neblina que eu nunca tinha visto antes. Foi Alfred que me disse que era fumaça, não neblina. Fumaça do quê?

O trabalho com as crianças no campo Chamishku foi incrível. Elas se sentem bem ao nosso lado e nos fazem muito bem. Elas já chegam perguntando porque não teve atividade ontem? Perguntam “bravas”. Tentei dizer que os adultos também tinham atividades, mas Maia, de 10 anos, me disse que os adultos podem ter atividades à noite quando ela estiver dormindo!!! Faz todo o sentido para mim. 

Maia é sem dúvida a garota mais velha da turma e mesmo assim nunca falta. Participa com “fome” de todas as atividades. Aproveita tudo mesmo. Chega com aquele sorriso e na hora de embora, é sempre a ultima. Ela também ajuda muito, mas não perde a chance de segurar a mão de um educador e por isto, às vezes, até discute com os menores.

Todo o time foi visitar a família das crianças que morreram atropeladas ontem. Homens visitam os pais e as mulheres visitam a mãe.

Fomos recebidos pelo pai da criança. Ele nos recebe com um beijo no rosto. Mas que merda. É muito sofrimento num rosto só! Fico imaginando uma família que larga tudo o que tem para fugir das mãos do Estado Islâmico. Chegam num campo de refugiados onde conseguem um pouco de paz e perdem os dois filhos num acidente de carro.

A barraca estava cheia. Somos servidos com água, cigarros e depois chá. O clima é bem pesado. Fala-se pouco e os visitantes são sempre servidos. O pai fica do lado de fora. Depois de um determinado tempo nos é dado um sinal de que podemos deixar o espaço. Na saída, entregamos o envelope com o dinheiro que juntamos para a família. Faz parte da tradição ajudar a família arcar com os custos de todo o processo funerário.

Fomos direto encontrar com as nossas colegas e de lá fomos almoçar. Ashia não está bem e provavelmente não a verei mais antes de deixarmos o país…

Eu sempre quis saber como seria a noite no campo. Sempre sou convidado para visitar as famílias dos meus colegas para jantar, mas nunca é possível, pois os campos, à noite, a não ser em casos de emergência, é proibido para quem não vive lá.

Hoje, porém, Minka eu fomos trabalhar com professores do ensino fundamental de algumas escolas do Campo Chamishku. Terminamos o trabalho às 19h30 e já estava bem escuro. Durante o intervalo, fui tomar água e vi uma fogueira enorme no final do campo.   

Meus olhos estavam ardendo desde que entrei no campo e estava bravo por ter esquecido meu colírio. A umidade do ar aqui é muito pouca e sempre sofro com isso. Minha pele parece pele de cobra.

 

A fumaça que eu vi do terraço do hotel é todo o lixo produzido nos campos durante o dia, que é queimado durante a noite. É muito lixo! Quase tudo aqui é servido em plástico para não precisar ser lavado!

Muitos dos professores pedem a nossa ajuda para levarmos esta questão para Erbil, capital do país. Durante o seminário, eles prestam atenção. Entendem o que falamos, mas sempre que há espaço para perguntas querem saber se podemos livrar suas mulheres do Estado Islâmico. Se podemos conseguir que seus salários atrasados sejam pagos, etc.

Preciso me concentrar bastante para não perder o foco. É duro estar na frente de senhores, muitos, 20 anos mais velhos do que eu. Eles me olham com aquela cara de quem quer saber o que este moleque de cabelos azuis quer me dizer. Mas eu me concentro e me esforço para falar o que aprendi em curdo e isso ajuda muito. Eles têm um profundo respeito pelas pessoas que tentam falar o seu idioma e assim termino o que fui fazer e confesso que é muito engraçado ver esses senhores todos dançando comigo.

No final querem tirar fotos comigo. Eu digo que cada foto custa US# 10 e todos se divertem.

Reinaldo Nascimento