Iluminação gastronômica

Uma figueira de 150 anos em plena Haddock Lobo, elegante alameda da Zona Sul de São Paulo, chama a atenção de quem passa por ali. Não apenas pela sua exuberância, mas, principalmente por estar no centro de um restaurante. Há dez anos, essa mesma árvore, que na época fazia parte da decoração de uma loja de presentes de casamento, atraiu Berlarmino Iglesias Filho, um paulistano, hoje com 51 anos, que caminhava por ali. Já proprietário dos restaurantes Rubaiyat, em São Paulo, ele fez uma proposta à dona da loja: queria comprar o ponto. “Ela não gostou nem um pouco, mas ficou com meu cartão. Antes de eu chegar ao meu escritório ela já tinha ligado”, relembra. Assim nasceu o Figueira, emblemático restaurante paulistano, conhecido pela sofisticação de sua cozinha e de seu ambiente, que foi batizado com o nome da fonte de sua inspiração.

Hoje, o Figueira é um dos seis empreendimentos de sucesso de Belarmino. Além de duas unidades do já consagrado Rubaiyat, há o Porto, especializado em peixes e reaberto recentemente em São Paulo (hoje administrado por seu irmão, Carlos), o Cabaña Las Lilas, considerada a melhor churrascaria da Argentina – sim, ela é brasileira – e o Rubaiyat Madrid, na Espanha, terra natal de seu pai, também chamado Belarmino, fundador do que hoje é um império.
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Berlarmino Filho dá continuidade e amplia de forma admirável os negócios conquistados pelo pai – inclui-se aí uma fazenda em Dourados, no Mato Grosso do Sul, de 10 mil hectares que produz toda a carne consumida nos Rubaiyat e uma vinícola na Espanha -, que chegou ao Brasil de navio na década de 1950 com apenas um dólar no bolso. Nascido em Rosende, uma pequena aldeia na região da Galícia, ele vem de uma família de agricultores de origem muito pobre. “Muitas noites, só havia batata e nabo para comer”, conta Belarmino Filho. Sem perspectivas para o futuro, Berlarmino decidiu migrar para o Novo Continente. Em São Paulo, o primeiro emprego foi como pedreiro. “Logo, ele trocou a construção civil por restaurante, porque ali tinha o que comer”, explica o filho.

Foi aceito no Alceu Bar, que existe até hoje no Largo Paissandu, região central da cidade. Começou como faxineiro e foi subindo, até se tornar caixa. Trabalhando no meio, ficou sabendo da abertura de outro estabelecimento chamado Guaciara, uma grande casa na Avenida Rio Branco. Pediu uma chance. Não deram. Determinado a trabalhar lá, aprendeu a carregar bandejas, estudou o menu e se apresentou. Deu resultado. Em pouco tempo, virou gerente da casa. Mais tarde, após um rompimento entre os sócios, ele foi surpreendido com uma oportunidade de negócio: ser proprietário, com parte do grupo, de 10% de um novo restaurante batizado de Rubaiyat. Aceitou. Eles eram persas, daí o nome que faz referência ao poema homônimo (que em português significa quarteto) do iraniano Omar Khayyan que fala sobre a brevidade da vida e a importância de aproveitá-la. “O poeta era sábio, mas também um beberrão que escrevia sobre a beleza da mulher, da vida e do vinho”, resume Belarmino Filho.

Desde pequeno, ele frequentava – e se encantava – com o ambiente de trabalho do pai, o qual via raramente, pois a atividade profissional o consumia. “Só encontrava meu pai nos fins de semana, no restaurante. No lugar do carrinho de rolimã, que eu não tinha, brincava com os aparadores de pratos que deslizavam no chão de mármore do Rubaiyat da Vieira de Carvalho”, referindo-se à primeira unidade do restaurante, no centro de São Paulo. Hoje, esses “históricos” aparadores são peça de decoração em sua fazenda.

Quando cresceu, Belarmino Filho demonstrou grande interesse em seguir a carreira do pai, que resistiu. O ofício era muito sacrificado, acreditava. Queria que os filhos tivessem diploma. E foi o que aconteceu. Ele formou-se em Economia, seu irmão Fernando, em Arquitetura (ele é responsável pela belíssima atmosfera do Figueira) e o outro, Carlos, em Medicina.

O primeiro emprego de Belarmino Filho foi no banco América do Sul. “O cara me deu um contrato de leasing para fazer. Demorei três dias! Pensei: ‘Que horror. Deve existir uma atividade mais interessante’.” Em meados de 1980, durante uma viagem noturna de trem pela Espanha, o pai lhe confidenciou que estava determinado a vender a parte dele do restaurante. “Não conseguimos dormir a noite inteira, pensando e discutindo sobre isso”, lembra. Ao chegar ao Brasil, o pai mudou de ideia: em vez de vender a sua parte, comprou a dos sócios. E chamou o filho – que na época, estava na Nossa Caixa – para trabalhar com ele. Era 1983: “Comecei na administração, cuidando da parte financeira”.

Nos dez anos seguintes, Belarmino Filho manteve, paralelamente, os estudos. Fez mestrado em Marketing de Hospitalidade em Restaurantes, com alguns créditos na Universidade Cornell, nos Estados Unidos, além de doutorado. “Minha cabeça abriu quando fui para os EUA. Passei a ver o negócio de outra forma, como uma indústria”, revela. Voltando ao Brasil, ele saiu do escritório dos restaurantes para a área operacional. “Eu adoro esse ambiente, sempre gostei. O que me atrai é o dinamismo. Nenhum dia é igual ao outro. Não se repetem padrões de consumo nem de conduta.” Mas o pai tinha razão, é um trabalho puxado, que começa de manhã e invade a madrugada. Todos os dias. Nos primeiros seis meses do Figueira, inaugurado em 2001, Belarmino ficou seis meses sem almoçar nem jantar com a família. “Uma noite meu corpo se entregou e fui para casa. Quando cheguei, meus filhos estavam jantando cada um em seu quarto, em frente à sua televisão, e o pior: cada um com um cardápio diferente! Eu disse: nada disso. Vamos jantar todos juntos, sem TV e com o mesmo tipo de comida”, diz ele, que tem quatro filhos.

Belarmino conta que aprendeu com o pai o valor do não desperdício. “Como ele passou fome na vida, tinha essa consciência. Acredito que meu pai conseguiu vencer em meio a tantos outros porque ele foi empreendedor, audaz, corajoso. Ele não levava desaforo para casa. Além de ser um cara lutador, trabalhador e autodidata. Sou muito parecido com ele.”

Os dois também têm em comum a paixão pelo campo. A primeira fazenda, no interior de São Paulo, foi comprada quando ele tinha 7 anos de idade. A de Dourados (MS) veio mais tarde e hoje é muito mais que um hobby. É autossuficiência que já dura dez anos. “Toda carne com osso dos restaurantes vem da fazenda. Por exemplo, porco, javali, cordeiro, cabrito, gado… Não tenho um estoque de carne em câmara congelada, eu tenho em pé”, brinca. Uma exceção é o corte de picanha. Ele explica que um boi só rende 2,5 kg de picanha, a predileta de 40% de seus clientes.

Outras iguarias servidas nas mesas do grupo Rubaiyat, como queijos, frutas e vinho, também vêm da fazenda. “Sempre produzimos pensando nos restaurantes.” O Pazo de Rivas, vinho desenvolvido a partir das uvas Mencía, com leves cortes de Merlot e Syrah, é produzido em sua própria vinícola, na região onde o pai nasceu, na Galícia, Espanha. Bebedor exclusivo de vinhos, ele confidencia que a vinícola é seu grande prazer: “Tínhamos vinhas de família com mais de cem anos e pensei em melhorá-las. Hoje, produzo 10 mil garrafas, mas quero chegar a 20 mil ainda esse ano”.

Mas o primeiro negócio que Belarmino inaugurou na Espanha e que é motivo de orgulho – sobretudo para o pai dele – é o Rubaiyat Madrid, número um do gênero na cidade. Foi inaugurado em 2006. “Fiz um capricho para meu pai. Ele queria muito um restaurante na Espanha, então fui à Madri e meti a bandeira.”

Ele levou 120 funcionários do Brasil e chegou a se mudar para a capital espanhola no ano seguinte. Presenciou o auge da crise no país e conseguiu contorná-la. “Tive de reduzir a equipe para 70 funcionários, uma queda de 30%, não tão acentuada para os padrões espanhóis.” Voltou a morar no Brasil em 2010, o que considerou uma decisão acertada. “Percebi que em três anos e meio fora você perde o pé. O cliente sente a sua falta, até o próprio funcionário pensa: ‘Abandonou’. Trabalhei duro para tudo voltar rapidamente ao eixo.”

Hoje, ele viaja ao exterior dez dias por mês. Três dias em Buenos Aires, para cuidar do Cabaña Las Lilas, e sete em Madri. Em semanas alternadas, além de viajar com frequência à fazenda.

O pai, hoje com 78 anos, passa seis meses aqui e seis em Madri. “Ele foge dos invernos”, brinca o filho. Em sua cidade de nascença, conseguiu resgatar uma propriedade de grande valor simbólico para ele, o casarão que pertencia a seus antigos patrões, que lhe arrendavam a terra durante os difíceis tempos do pós-guerra. Ele transformou o local em uma fundação que oferece curso de hotelaria para jovens carentes.

O que para muitos parece uma grande incógnita é o Cabaña Las Lilas, a grande churrascaria de Buenos Aires, que não tem relação nem com a origem do pai nem com a do filho. Planejamento estratégico? “Não”, Belarmino Filho responde. “Foi totalmente por acaso.” Ele conta que tudo começou com um casamento em Córdoba, capital da província de mesmo nome, em 1994. Ele e o irmão viajaram à cidade como convidados do evento e, no dia seguinte, ficaram presos em Buenos Aires devido a um grande alagamento que fechou os aeroportos. Decidiram sair para jantar e foram a Puerto Madero, hoje uma região de restaurantes, mas que, na época, só tinha um: o Bice. “O Puerto Madero estava em obras. Olhei aquilo e pensei que ali poderia ser um ótimo lugar para um Rubaiyat. Escolhi a esquina e depois voltei com meu pai.”

Belarmino abriu o negócio, em 1997, em conjunto com a marca de carnes de gôndola argentina Cabaña Las Lilas. “Não fiz marca lá, ela já estava feita. Mas a operação é 100% Rubaiyat”, revela. Hoje, 14 anos depois, a grife Rubaiyat ainda está em expansão. As próximas capitais a receberem filiais são Brasília e Rio de Janeiro, nessa ordem, provavelmente a partir do ano que vem. Ampliar a rede faz parte dos objetivos de Belarmino, mas sem exagero. “Para ser número um nesse tipo de segmento, não dá para ter 200 restaurantes. É possível ter mais quatro ou cinco, apenas. Requer one management. E qual é o modelo para o futuro? Para ter clientes fiéis, reter talentos profissionais e ter sempre gente motivada. Hoje, esse é meu grande questionamento.”


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