Em pleno Verão do Amor, com bandas como Beatles, Beach Boys, Jimi Hendrix Experience, The Who, Love, Jefferson Airplane e The Seeds atribuindo ao rock o status de grande arte por meio da estética psicodélica, um grupo de jovens artistas brasileiros invadiu as ruas do centro de São Paulo, em julho de 1967, para marchar contra a ameaça imperialista de um reles instrumento musical no episódio que ficou conhecido como a Passeata Contra a Guitarra Elétrica. A manifestação, organizada com o propósito de “defender o que é nosso”, foi liderada por Elis Regina e contou com adesões expressivas. Na linha de frente do ato em repulsa aos temidos acordes eletrificados estavam, entre outros, Jair Rodrigues, Edu Lobo, MPB-4, Zé Keti e Gilberto Gil. Este último, três meses depois, fez da guitarra um dos pilares do tropicalismo, que aflorou com o Festival de Música Brasileira da TV Record daquele ano, quando Gil, suplantado por Ponteio, de Edu Lobo, sagrou-se vice-campeão com Domingo no Parque, ao lado dos Mutantes e do maestro Rogério Duprat.
A capitulação, via tropicalismo, do nacionalismo que fez marchar uma multidão de jovens do Largo do São Francisco ao Teatro Paramount, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, parafraseando Aldous Huxley, literalmente escancarou as portas da percepção e injetou liberdade criativa à música popular produzida no Brasil nas décadas seguintes. Prova inconteste do impacto positivo desse ambiente de transformação que aflorou com a chegada de artistas como Gil, Caetano Veloso e Os Mutantes acaba de sair do prelo, de forma independente e colaborativa. Financiado por meio de uma bem-sucedida campanha virtual, que possibilitou a impressão três vezes maior da tiragem idealizada (originalmente mil livros), Lindo Sonho Delirante – 100 Discos Psicodélicos do Brasil (1968-1975) é o resultado de dois anos de pesquisas do jornalista Bento Araujo.
Sem viagem ruim, como antecipa o título dessa resenha, a publicação desmonta, por meio da análise de cem álbuns e compactos, o equívoco de afirmar que, exceto as produções das grandes estrelas da MPB e do samba, os anos 1970 foram uma década perdida para a música produzida no País. Pelo contrário, o volume quantitativo e qualitativo de produção foi tamanho que demandou, inclusive, uma mudança do recorte temporal pretendido por Araujo: “Minha ideia era fazer um livro que abordasse o que foi produzido a partir de 1967 até chegar à produção de hoje, mas a coisa cresceu de tal forma que decidi fechar a pesquisa em 1975. Muita coisa boa foi feita nesse intervalo de oito anos”, explica.
Interessado em mapear as manifestações globais do psicodelismo musical, desde que abandonou o trabalho de atendente em uma cultuada loja de discos de São Paulo, a extinta Nuvem Nove, o jornalista, que colaborou com veículos como os jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S.Paulo e a revista Rolling Stone, decidiu atuar de forma independente e criou, em 2003, a publicação online Poeira Zine. Com textos regulares e podcasts semanais, Araujo aproximou-se também de diversos colecionadores e pesquisadores. Nesse processo, teve acesso a todos os álbuns e compactos resenhados em Lindo Sonho Delirante.
O título do livro faz alusão a um dos trabalhos compilados ao longo de suas 232 páginas, o compacto homônimo do cantor e compositor paraguaio Juan Senon Rolón. Radicado no Brasil, o artista, que por anos foi o melhor amigo de Tim Maia, adotou o codinome artístico Fábio. Com o refrão “Lindo sonho delirante / Hoje eu quero viajar”, a bolachinha foi às lojas em 1968. A despeito do título, que fazia alusão a Lucy in the Sky with Diamonds, um dos hinos psicodélicos do álbum Sgt. Peppers, dos Beatles, e das iniciais LSD grafadas em caixa alta, o disco de sete polegadas, que trazia a composição O Reloginho no lado B, passou impune pelos censores, mesmo às vésperas do decreto do AI-5.
Controverso para os mais ortodoxos, o adendo “cem discos psicodélicos brasileiros”, Araujo explica, não faz referência explícita às viagens sonoras deflagradas pela geração flower power, mas às experimentações percebidas na produção musical do período retratado no livro. “Em retrospecto, a gente percebe que essa cena, de fato, existiu, mas, na época, não era algo consciente em termos de unidade. Partindo desse ponto de vista, quis fazer algo abrangente, pegando medalhões que literalmente flertaram com o psicodelismo, como Gal Costa e Gilberto Gil, até artistas que vieram da bossa nova, como Marcos Valle, João Donato e Luiz Carlos Vinhas, e outros, considerados marginais, como os da psicodelia nordestina, Marconi Notaro, Lula Côrtes, Ave Sangria e Damião Experiênça.”
Se a viagem empreendida por nossa música popular nas décadas de 1960 e 70 é bem maior do que muitos imaginam, o flashback promovido nas páginas de Lindo Sonho Delirante é mais que bem-vindo. Bate legal.
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