Bento Rodrigues era um simpático vilarejo. Tinha umas 200 casas e população de 500 pessoas. Essa tranquila comunidade mineira, localizada a 25 km de Mariana, em Minas Gerais, que já foi importante centro de mineração no século 18, acaba de desaparecer do mapa. Foi soterrada por uma avalanche de lama decorrente do rompimento de uma barragem de extração de minério de ferro. “É a maior tragédia ambiental da história do País”, afirma Paulo Saldiva, médico patologista, diretor do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da USP, nome forte no mundo quando o assunto é meio ambiente, que concedeu entrevista ao site da Brasileiros (leia aqui).
O acidente, que deixou 12 pessoas mortas e centenas de desabrigadas – até o fechamento desta edição, havia ainda 11 desaparecidas –, invadiu também o Rio Doce, vizinho ao barramento, e seus afluentes. Para Saldiva, os rejeitos da barragem rompida formarão um “tapete mortal” no fundo do rio, podendo penetrar o solo e se infiltrar no lençol freático, inviabilizando o plantio e o uso da água de poços. A Bacia do Rio Doce, a maior da região Sudeste, abastece inclusive a cidade de Belo Horizonte. Nasce em Minas Gerais, passa por várias cidades e termina no litoral do Espírito Santo, que também foi afetado. Calcula-se que a lama vai atingir 9 km ao longo do mar capixaba, segundo pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os impactos no oceano devem ser menores do que os causados no rio, mas também serão duradouros, prejudicando por anos a vida de algas, moluscos, crustáceos e peixes.
No último dia 5 de novembro, a barragem de Fundão, construída a cerca de 3 km de Bento Rodrigues para conter os resíduos que sobram da extração de minério de ferro, evitando a contaminação de mananciais, se rompeu, lançando um mar de lama que atingiu a região. As causas do acidente ainda não foram esclarecidas.
A Samarco, empresa que administra as barragens no complexo de Mariana, que tem como acionistas a brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton, informou que um abalo sísmico de 2,5 graus na Escala Richter aconteceu cerca de uma hora e meia antes do desastre. O Observatório Sismológico da Universidade de Brasília confirmou dois tremores de baixa magnitude, mas ponderou. “Sismos de 2,5 graus são muito pequenos. É muito improvável que possa ter sido a causa principal”, afirma o geólogo George Assaz, da Universidade de São Paulo (USP). Não chovia no instante do rompimento da barragem.
O fato é que a barragem não se sustentou e lançou um volume de lama difícil de imaginar: 62 milhões de metros cúbicos. Só como ilustração, daria para cobrir em torno de 315 torres do Edifício Banespa, no centro de São Paulo. O motorista de caminhão Antonio Gonçalves, de 46 anos, conta que a mãe e as irmãs, que moravam em Bento Rodrigues, perderam tudo. “Elas saíram de lá com a roupa do corpo. Estão alojadas em um hotel até que providenciem uma casa em Mariana para que possam morar.” Ele acredita que, se o acidente tivesse acontecido à noite, todos os moradores do vilarejo teriam morrido. “Os funcionários do Fundão perceberam o que estava acontecendo e começaram a avisar as pessoas por telefone. Foi uma correria danada.”
Desde o acidente, pouco se sabe sobre o que existe na lama despejada. “Deve ser rica em ferro, mas há outros elementos. Dependendo do processo de mineração, os rejeitos contêm substâncias que modificam o Ph do solo e da água, que pode se tornar muito básico ou muito ácido. Isso afeta as espécies, mas a natureza consegue se reequilibrar. O problema é que o tipo e teor de resíduos de metais pesados que podem estar nessa lama ainda não são conhecidos com precisão. Isso prejudica a adoção de medidas para lidar com o impacto ambiental, que é imenso”, afirma Saldiva. A professora Marisa de Souto Matos Fierz, doutora de Geomorfologia da USP, completa: “Onde não há oxigenação, o rio está morto”.
A Samarco informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que “os esforços estão sendo no sentido de dar apoio às pessoas atingidas pelo acidente”. Também afirmou estar tomando todas as providências possíveis para mitigar as consequências decorrentes do avanço da mancha ao longo do Rio Doce. “Estão sendo coletadas amostras de água para análise. O trabalho continuará em pleno curso até a normalização da situação.” Mas não há uma previsão de quando isso acontecerá.
Oficialmente, a Samarco afirma que há apenas sílica, componente químico que não prejudicaria a saúde humana nem o ecossistema. Mas restam dúvidas. “Estamos questionando o órgão de monitoramento de água do Estado de Minas Gerais, que precisa tornar públicos os resultados dos exames feitos na água. Sem esses dados, não podemos saber o grau de nocividade às pessoas”, diz o professor doutor Marcus Vinicius Polignano, coordenador do Manuelzão, projeto ambiental ligado à Universidade Federal de Minas Gerais, que monitora a atividade econômica e seus impactos ambientais nas bacias hidrográficas dos principais rios do Estado.
Para Nelson Moura Brasil, professor titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e especialista em metais tóxicos no solo, há grande possibilidade de a lama conter substâncias nocivas à saúde devido à forma com a qual é feita a mineração. “Existem presenças naturais de metais pesados no solo, associados ao óxido de ferro. Quando a mineradora constrói a barragem, que é composta basicamente por óxidos de ferro, ela acumula quantidades enormes desses metais pesados. No caso de Mariana, é possível notar que existe um grande volume de água acumulado nas barragens e pouco oxigênio. Isso pode aumentar a solubilidade de metais tóxicos, como arsênio e chumbo. Ou seja, o solo pode absorvê-los mais facilmente.”
O estrago está feito. Para limpar a camada de lama sobre o rio, seria preciso retirar fisicamente o solo. “Isso é impossível e significa que o rio e qualquer afluente por onde a lama se depositar estarão mortos por muito tempo. E, consequentemente, o ecossistema a ele associado”, afirma Saldiva. O geólogo George Assaz, da USP, concorda: “Alguns impactos serão irreversíveis. A porção de água soterrada pelo fluxo de lama não conseguirá se recuperar, mesmo em décadas. Outra questão é a irrigação. Nas áreas mais atingidas, haverá impossibilidade de captação de água para irrigação durante a passagem do fluxo”.
Marisa Fierz salienta também o impacto do desastre na vida da população. “Além da modificação da água, muda a vegetação do entorno, alterando a fauna, a flora e a vida das pessoas que moram no entorno. Como a oxigenação da água do rio está prejudicada pela lama, os peixes morrem e os animais que se alimentam de peixes começam a ter dificuldades.”
Recuperação
Nascido em Aimorés, cidade do leste mineiro também afetada pela catástrofe, o fotógrafo Sebastião Salgado tem trabalhos de recuperação ambiental na região desde 1998 por meio do Instituto Terra, que conta, em diversos projetos, com o apoio da Vale. Um deles foi dado ao grandioso projeto Gênesis, em que Salgado visitou 32 regiões do mundo, entre 2004 e 2012, com patrocínio da mineradora, para registrar alguns dos locais mais intocados do planeta.
Dias depois da tragédia, ele sugeriu a criação de um fundo exclusivo para a recuperação do Rio Doce, durante reunião com o governador Paulo Hartung (PMDB), do Espírito Santo, e o Ministério Público Estadual. Salgado acredita ser possível recuperar o rio, mas que não há como precisar quanto tempo isso pode levar. Para ele, as multas estabelecidas não são suficientes para o projeto de recuperação. Por isso, é essencial a criação de um fundo exclusivo. “A multa que vai para o cofre público não volta para a região afetada, ela é usada para pagar as despesas e dívidas do estado. É por isso que insisto na criação de um fundo, que realmente compense o desastre ecológico da região.” Ele sugere ainda que o fundo seja administrado pelos poderes público e privado, mas destaca a necessidade de acompanhamento da sociedade.
Sobre a recuperação de nascentes, Salgado acredita que o processo pode demorar até 20 anos. “É possível recuperar o Rio Doce. É um trabalho de muito longo prazo, temos um projeto técnico de recuperação de nascentes e nós podemos recupera-las, mas os problemas vão muito além das nascentes”, disse.
Outros riscos
A presidenta Dilma Rousseff, que é mineira de Belo Horizonte, sobrevoou a área afetada uma semana depois do acidente. Na sequência, na tentativa de amenizar a situação das pessoas que perderam seus pertences na tragédia, ela alterou o estatuto que define as regras do Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço (FGTS), autorizando as vítimas a sacarem seus valores retidos.
O governo federal também trocou o comando do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), órgão ligado ao Ministério de Minas e Energia, responsável por controlar e fiscalizar a mineração no País. Cabe agora ao geólogo Telton Elber Correa, substituto de Celso Luiz Garcia, que pediu demissão, lidar com a possibilidade de rompimento das barragens Germano e Santarém, localizadas ao lado da de Fundão e também administradas pela Samarco. Para Ronaldo Alves Bento, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Extração de Ferro de Mariana, o risco é grande e pode causar prejuízos ainda maiores. “Tem gente que não foi desmobilizada em Barra Longa e outros distritos. Temos de fazer rapidamente um plano de ação”.
A Samarco confirmou que a barragem Germano corre risco de desabar. “As barragens estão sendo monitoradas em tempo real por meio de radares e inspeções diárias, realizadas pela equipe técnica da empresa. Além disso, estão sendo utilizados drones, escaneamento a laser e a instrumentação geotécnica existente para a avaliação técnica, sendo que, para a barragem de Germano, as leituras são automatizadas com aquisição de dados online.”
A responsabilidade pela tragédia, no entanto, pode levar ao encerramento das atividades da Samarco no Brasil. De acordo com o advogado Maurício Guetta, assessor do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental, ONG ligada às questões sociais provenientes de tragédias desse porte, a Samarco será responsabilizada em três esferas: na administrativa, na criminal e na civil. “Na administrativa, o Ibama e o Semar (órgão estatal de meio ambiente do Estado de Minas Gerais) agem por meio de multas. Na criminal, pode levar ao encerramento de suas atividades no Brasil e os dirigentes da empresa também poderão ser condenados criminalmente com medidas restritivas à liberdade. A terceira esfera é a mais importante de todas: a civil. Nessa, se discute a reparação dos danos às pessoas que foram afetadas. A legislação é muito clara em estabelecer que a reparação dos danos deve ser integral. Isso significa que a empresa tem a obrigação de reparar integralmente os danos ambientais e as perdas individuais.”
As indenizações
Até agora, o Ibama – principal órgão ambiental regulador do País – aplicou R$ 250 milhões em multas à Samarco pelos prejuízos ambientais. O valor se refere a cinco multas no valor de R$ 50 milhões, teto definido pela Lei de Crimes Ambientais, a 9605, editada em 1998.
Esse valor permaneceria insuficiente para diminuir os danos causados pela queda da barragem. Relatoria do novo Código de Mineração, em tramitação na Câmara dos Deputados, estima em R$ 14 bilhões o valor necessário para a recuperação ambiental. A Samarco espera utilizar US$ 1 bilhão (R$ 3,5 bilhões) do seguro assinado contra desastres na região. Esse dinheiro deve se somar ao cheque caução socioambiental de R$ 1 bilhão que a Samarco acordou com o Ministério Público de Minas Gerais uma semana após o desastre, assinado apenas para os gastos emergenciais.
Calcula-se que a Samarco possa indenizar cerca de 1,5 mil pessoas em Bento Rodrigues e Mariana. Para o Ministério Público mineiro, os processos de compensação à população devem demorar mais de uma década para serem concluídos. Por enquanto, a Justiça bloqueou R$ 300 milhões nas contas da Samarco para esse fim. Sabe-se também que, entre 2011 e 2014, apenas 8,7% dos valores cobrados em multas ambientais pelo Ibama foram arrecadados.
Minas Gerais, aliás, tem um histórico de acidentes em barragens. Em junho de 2001, uma barragem de rejeito de minério de ferro da empresa Rio Verde ruiu em São Sebastião das Águas Claras, a 20 km de Belo Horizonte. A lama desceu uma encosta, matando cinco funcionários da companhia. Uma área de 80 hectares de Mata Atlântica foi devastada. O Ribeirão Taquaras, que corta a região, se transformou em um curso de barro espesso. Dois anos depois, em março de 2003, resíduos de barragem da Indústria Cataguases de Papel, em Cataguases, atingiram o rio Paraíba do Sul e seus córregos com 1,4 bilhão de litros de resíduos de produção de celulose. Em janeiro de 2007, em Miraí, houve a ruptura de barragem da Mineração Rio Pomba Cataguases. Cinco municípios foram atingidos em Minas Gerais e no Rio de Janeiro com dois bilhões de litros de lama de bauxita derramados.
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