A marcha para o oeste

O Congresso Nacional, pouco antes de ser inaugurado, em 1960
O Congresso Nacional, pouco antes de ser inaugurado, em 1960. Foto: Marcel Gautherot/ Acervo Instituto Moreira Salles

Juscelino Kubitschek desembarcou do DC-3 prefixo PP-ANY no meio da manhã. O avião com capacidade para 16 pessoas estava equipado com duas camas e mesa para máquinas de escrever. Seria seu escritório ambulante por seis meses, durante a campanha para presidente. Na segunda-feira 4 de abril de 1955, JK desembarcou para o primeiro comício da campanha na pista de terra de Jataí, uma cidade com dez mil habitantes no sudoeste goiano. Quando chegou ao palanque, na pracinha, desabou a maior chuva. O comício foi transferido para um galpão. Na carroceria de um caminhão Belford, JK terminou o discurso incentivando as pessoas a fazerem perguntas. Antônio Soares Neto, o Toniquinho, um vendedor de seguros de 29 anos, não se fez de rogado. Perguntou se, caso fosse eleito, JK iria transferir a capital para o Planalto Central.

– Cumprirei na íntegra a Constituição. Durante o meu quinquênio, farei a mudança da sede do governo e construirei a nova capital, respondeu JK.

A transferência da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central estava, de fato, prevista desde a Constituição de 1891. “Fica pertencente à União, no Planalto Central da República, uma zona de 14 mil km², que será oportunamente demarcada, para nela estabelecer-se a futura Capital Federal”, dizia o artigo terceiro daquela Constituição. Não foi, portanto, por acaso que JK escolheu uma cidadezinha no coração do Brasil para fazer o seu primeiro comício rumo ao Palácio do Catete, a sede do governo que ele planejava trocar por outra, construída do zero. Também não deve ter sido por acaso que Toniquinho fez a pergunta que entrou para a história contemporânea do País.

Na realidade, a primeira proposta para deslocar a sede do poder central para o interior do País surgiu em 1750, 13 anos antes de a capital ser transferida de Salvador para o Rio de Janeiro. Foi quando o cartógrafo genovês Francisco Tosi Colombina elaborou, a serviço da Coroa Portuguesa, a Carta da Capitania de Goiás e Mato Grosso, sugerindo que se instalasse a capital na região. A ideia não teve a menor repercussão na época, mas ressurgiu a partir de 1813, com o jornalista Hipólito José da Costa. Ele defendia “a interiorização da capital” nas páginas do Correio Braziliense, que é considerado o primeiro jornal do Brasil, embora fosse editado em Londres, pois não era permitido à colônia ter publicações próprias.

O nome Brasília surgiu pouco tempo depois, sugerido por José Bonifácio de Andrade e Silva, o Patriarca da Independência. Como seus antecessores, ele argumentava que uma capital à beira-mar ficava muito vulnerável a invasões estrangeiras. Interiorizar a sede do governo central significaria também ocupar de forma efetiva o território. A proposta de José Bonifácio era fundar, no centro do Brasil, a capital do Reino, “com a denominação de Brasília”.

Ainda no Império, nobres de diferentes quilates retomaram a proposta, mas o único que decidiu montar em lombo de burro e conhecer de perto a região foi o visconde de Porto Seguro, Francisco Adolfo de Varnhagen, que sugeria o nome de Imperatória para a nova capital. Mais tarde, quando era embaixador do Brasil em Viena, o visconde publicou o texto A Questão da Capital: Marítima ou no Interior?. No trabalho, ele apontava como lugar apropriado para a construção o espaço situado no “triângulo formado pelas lagoas Formosa, Feia e Mestre d’Armas, das quais manam água para o Amazonas, para o São Francisco e para o Prata”, bem próximo de onde Brasília foi posteriormente instalada.

Muito antes de o projeto sair do papel, a saga da construção da capital federal envolveu até um sonho profético de dom Bosco, o fundador da Congregação dos Salesianos. Pelo relato de religiosos, em 1883, na Itália, ele sonhou que um anjo apontava o surgimento de uma nova civilização entre os paralelos 15° e 16° do Hemisfério Sul, em uma região onde se formava um lago. A premonição anunciava ainda que “quando se vierem a escavar as minas escondidas em meio a estes montes, aparecerá a terra prometida, onde correrá leite e mel”. No momento, a impressão que se tem é que em Brasília corre mesmo muito fel, mas, de qualquer forma, a profecia acertou na localização. Por isso, dom Bosco é padroeiro de Brasília, junto com Nossa Senhora Aparecida.

A profecia de dom Bosco parecia prestes a se concretizar logo depois da proclamação da República, quando o projeto de construção da capital entrou para a Constituição de 1891. Em seguida, uma expedição liderada pelo astrônomo e geógrafo belga Louis Ferdinand Cruls partiu do Rio de Janeiro para o Planalto Central. Composta por 21 pessoas, entre elas médicos, botânicos e geólogos, a expedição demarcou uma área de 14 mil km² para a construção da futura capital, que ficou conhecida como Quadrilátero Cruls.

A pedra fundamental de Brasília chegou a ser lançada, em 1922, perto da cidade de Planaltina, que hoje integra o Distrito Federal. A execução do projeto, no entanto, não foi para a frente nem quando o presidente Getúlio Vargas lançou a Marcha para o Oeste, na década de 1940, para ocupar a região Centro-Oeste do País. A marcha que culminou na construção de Brasília só aconteceu depois do comício de Jataí. Eleito presidente, JK colocou em prática o plano que levou o poder central para o interior, deslocou população para o Planalto Central e abriu caminho para a ocupação efetiva de todo o território brasileiro.

A epopeia da construção foi registrada por grandes fotógrafos, como Marcel Gautherot (1910-1996), cuja obra integra o acervo do Instituto Moreira Salles. Uma parte da coleção, inclusive imagens dos primórdios da cidade, está exposta até o dia 28 de agosto na Maison Européenne de La Photographie, em Paris. Em relação à Brasília, o problema é que, com o passar do tempo, o cenário registrado em fotografias magníficas também se tornou símbolo de corrupção e de distanciamento entre o poder e as ruas.


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