Aos finais de semana, no sul de Minas Gerais, quando a maioria da população de Barroso ainda está no café com leite e pão de queijo, Marcos Magalhães de Souza dá folga à rotina de professor de cursinho e assume sua persona pesquisador. Calça botas de borracha, coloca um chapéu, protege os braços com mangas compridas – faça frio ou calor – e desencosta o puçá do canto da sala. Não para caçar borboletas, como sugere a rede de malha fina em suas mãos. Ele vai atrás de marimbondos!
Isso mesmo, aquele tipo de inseto que ferroa dolorido e ninguém quer ver por perto é o objeto do estudo de Marcos. Digo mais: os marimbondos são objetos de coleção, motores da curiosidade e sua – quem diria – paixão!
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“Marimbondos (ou vespas sociais) são termômetros ambientais, são bioindicadores das condições das matas”, justifica o biólogo e pós-doutorando da Universidade Federal de Viçosa (UFV). O mesmo se pode dizer das libélulas, outro foco de interesse do pesquisador, que define: “Marimbondos são adrenalina, libélulas são colírios para os olhos”.
Bioindicadores são seres usados em avaliações ambientais, para “dizer” – por sua presença ou ausência – se aquele ecossistema está equilibrado, em processo de deterioração ou em recuperação, por exemplo. No conjunto, a riqueza de espécies também é indicadora da qualidade de uma mata ou um campo natural e pode ser o ponto de partida para a delimitação de um parque ou reserva.
Por isso, as prioridades de Marcos incluem caçar alguns exemplares de marimbondos e registrar a localização de seus ninhos. Depois, em casa, ele identifica as espécies e interpreta o conjunto de dados reunidos. Em 10 anos de excursões pelo sul de Minas Gerais – principalmente na Mata do Baú (Barroso), na Serra de São José (Tiradentes), em Uberlândia, Lavras e no Parque Estadual do Rio Doce – o pesquisador de 35 anos já coletou 85 das 97 espécies de marimbondos catalogadas para Minas Gerais.
Fazem parte de sua coleção, 28 espécies consideradas registros novos para o Estado (seis ainda aguardando confirmação) e uma espécie nova para a Ciência. O novo marimbondo ainda não tem nome. Mesmo quando a descoberta for confirmada, a descrição e a denominação ainda demoram alguns anos. De brincadeira, porém, Marcos o apelidou com seu sobrenome: Mischocyttarus magalhaesis. Cá entre nós, a homenagem seria muito justa!
A dedicação das horas livres à pesquisa sacrifica a vida familiar. Marcos é casado e tem um casal de filhos, de 8 e 4 anos. Mas em vez de ser recebido em casa com carinhas amarradas quando volta do campo, ele ouve reclamações de Otávio e Olívia de não tê-los levado juntos na aventura. Pelo visto, eles têm os genes “marimbondeiros” do pai…
Paixões à parte, Marcos não arrisca ir a campo sem equipamentos de segurança ou desacompanhado: o risco de acidentes existe e o trabalho pede prudência. Afinal, como diz o ditado: “Quem mexe em vespeiro, picado sairá”.
Então, ele passa primeiro na casa dos ajudantes da vez e, só depois, pega o rumo da área a ser explorada naquele dia. Como seria de se esperar, a rotatividade de auxiliares é grande. Não existem muitos estudantes dispostos a trocar o sábado e o domingo de prosa na praça central por horas de caminhada sob o sol, procurando encrenca. As desistências são numerosas. E tem quem descubra outra vocação no meio do caminho, como Marco Aurélio Nascimento, que hoje é caminhoneiro (mas ainda ajuda com os marimbondos quando está por perto).
“Um dos critérios de seleção é ver quem toma ferroada e ainda se diverte com isso”, diz Marcos. “Só esses passam no teste de campo e, com eles, o trabalho flui.” Pelo menos três auxiliares estão com Marcos há uns bons anos, apesar das ferroadas e dos encontros tensos com jararacas, jiboias e cascavéis. Um dos mais antigos é Tássio Ladeira, estudante de Engenharia Florestal da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Outros dois “fiéis escudeiros” são Epifânio Pires, mestrando da Universidade Federal de Lavras (trabalha com abelhas), e Natan Assis, que faz pesquisas com câncer na Universidade Federal de Minas Gerais. Este último, segundo Marcos, é “o mais louco deles: já caiu sobre cactos e dentro de rio para pegar ninhos de vespas”.
Quando entram na trilha, por volta de 8 horas da manhã, o pesquisador e seus auxiliares aprumam o foco do olhar. Com paciência, vasculham barrancos, folhas e pedras – cá embaixo das árvores e arbustos – e também esticam a vista até os galhos das copas e paredões rochosos, lá no alto. Examinam com cuidado todos os locais que sua experiência indica, como possíveis esconderijos dos insetos. Reviram folhagens, remexem em emaranhados de cipó, buscam camuflagens.
Os ninhos dos marimbondos parecem de papel. São feitos de restos vegetais misturados a água e saliva do inseto. Dependendo do material usado, têm a mesma cor do tronco das árvores, portanto é preciso ter olho clínico para enxergar formas que os denunciem.
Córregos e reservatórios de água nas folhas também são vasculhados. E plantas floridas: os marimbondos não produzem mel, como as abelhas, mas também se alimentam de néctar, embora algumas espécies sejam carnívoras (em geral, predam outros invertebrados).
Se o ninho encontrado é de um marimbondo pouco conhecido, a coleta é seguida de uma sessão de fotos e, talvez, um plantão para estudo de comportamento. Ou diversos plantões, se for uma espécie interessante, como o minúsculo marimbondo-mirim, o menor do Brasil, e o marimbondo-tatu, que faz o ninho colado ao tronco de árvore, com estrutura semelhante à carapaça dos tatus.
A caminhada vai até 3 ou 4 horas da tarde, com direito a pausas para um lanche e, com sorte, para observar também outros animais de passagem. Lontras, lobos-guarás e tatus são os mais frequentes. Mas até uma jaguatirica já passou por eles.
O trabalho dos auxiliares termina no fim da trilha. Dali em diante, é só com Marcos: ele fixa os insetos coletados em sua coleção ou os envia a outros especialistas quando há dúvidas quanto à espécie (embora seja possível contar nos dedos da mão os especialistas brasileiros em marimbondos). Paralelamente, ele organiza as observações de campo para transformá-las em projetos de conservação dos ambientes onde vivem os marimbondos e propostas de cursos de educação ambiental na região. Entre os apoios a essas iniciativas, conquistados graças à sua teimosia, o pesquisador contabiliza a multinacional de cimento Holcim, que tem uma fábrica ali na vizinhança.
O fôlego de pesquisador se estende inclusive a outros levantamentos, como o da vegetação da mata ciliar do rio das Mortes, realizado neste ano, do qual resultou a identificação de mais de 500 espécies de plantas, sendo 15 espécies vegetais ameaçadas de extinção no município de Barroso e dois novos registros para o Estado de Minas Gerais.
Fora o mínimo necessário para tocar os projetos, o retorno financeiro para toda essa trabalheira é bem mirrado. Marcos contou e conta com a ajuda temporária das bolsas de pós-graduação para reforçar o salário de professor de cursinho. Mas a maior parte das viagens, dos materiais e das colaborações só sai à base de permuta.
Ainda assim, ele continua inclinado a concordar com a superstição “casa de marimbondo na porta de entrada é sinal de que o dono vai ficar muito rico”. O tipo de riqueza é uma questão de interpretação pessoal. Bem particular.
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