Memórias de uma traição imaginária

Ao construir Bentinho, seu personagem mais célebre – um homem atormentado pela dúvida de ter sido traído ou não pela mulher, Capitu -, teria Machado de Assis se inspirado em uma história real?

Marco Lucchesi, com pós-doutorado em Filosofia da Renascença na Universidade de Colônia, Alemanha, e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que sim.
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Autor de O Dom do Crime, romance que traça paralelo entre um crime passional ocorrido no final do século XIX e a obra Dom Casmurro de Machado de Assis, Lucchesi chegou a essa constatação enquanto pesquisava sobre o autor na Biblioteca Nacional. “Quando comecei a folhear processos judiciais do período no acervo da instituição, li sobre um crime passional, ocorrido no Rio de Janeiro em 6 de novembro de 1866, que acabou sendo o ponto de partida para meu romance”, afirma.

O crime envolvia pessoas influentes da sociedade carioca, como o médico-cirurgião José Mariano da Silva – que trabalhou para o pai do escritor e poeta Olavo Bilac – e o conceituado criminalista Busch Varella, tio do poeta Fagundes Varella.

Silva, o assassino, executou seu plano no começo da noite de uma terça-feira. Matou a mulher Helena Augusta, usando um de seus instrumentos de trabalho, um bisturi, com o qual perfurou uma veia do pescoço de Helena. Após golpeá-la, foi para seu quarto e deixou a esposa sangrando em um dos aposentos da casa onde moravam. Helena foi socorrida pela escrava e confidente Esperidiana, mas não resistiu ao ferimento. Seguro de sua absolvição, o médico se apresentou às autoridades policiais e confessou o assassinato, argumentando defesa da honra, prática comum naqueles idos de 1860. “O Império passava por uma epidemia de crimes passionais, cometidos por homens que tentavam lavar a honra com sangue”, atesta Lucchesi.

O crime cometido por Silva foi amplamente divulgado pela imprensa e repercutiu em toda a sociedade. Na época, Machado de Assis trabalhava no jornal Diário do Rio de Janeiro e, provavelmente, tomou conhecimento do fato, como revela Lucchesi: “Machado era jornalista do Diário, e não estava nada satisfeito com o seu emprego – que pagava mal e não o deixava escrever seus livros. Na redação, ele fazia um pouco de tudo, inclusive escrevia obituários, e deve ter tomado conhecimento desse crime”.

Assim como Bentinho em Dom Casmurro, Silva foi influenciado por insinuações de terceiros, no caso, os empregados e, principalmente, a escrava e confidente Esperidiana, a desconfiar da mulher. Helena é acusada de adultério por Silva no tribunal.

Fato e ficção que retratam a condição da mulher na sociedade patriarcal brasileira do final de século XIX. Um dos poucos casos desse período em que uma mulher não teve a vida ceifada foi o de Ana de Assis, esposa do escritor Euclides da Cunha, que morreu assassinado por Dilermando Assis, amante dela. Se Helena Augusta traiu ou não José Mariano da Silva, não há como saber.

Em O Dom do Crime, Lucchesi usa elementos desse crime real. O narrador do livro é um advogado, contemporâneo aos acontecimentos e desafeto de Machado de Assis, que escreve sobre o homicídio e deposita seus manuscritos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) para que fossem abertos após a sua morte – era comum na época personalidades depositarem manuscritos na IHGB, como fez Visconde de Taunay.

Lucchesi justifica por que preferiu escrever uma obra ficcional a uma documental: “Um fato da realidade jamais esgota o universo literário”. O uso de recursos romanescos para recuperar uma história real lhe deu liberdade para indagar, mais que explicar o que de fato aconteceu. “A história nada mais é que um mar de Botafogos eternos onde muitos Escobares acabam se afogando”, conclui o autor, fazendo referência ao personagem Escobar, amigo de Bentinho e suposto amante de Capitu, em Dom Casmurro.

O Dom do Crime, Marco Lucchesi, Editora Record

As canções de Machado de Assis


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