O trânsito de final de domingo na Domingo de Moraes, uma das principais avenidas – artérias? – da Vila Mariana paulistana, é frenético. Poucos têm tempo de voltar a cabeça para aquele prédio com cara de associação de aposentados. Para uma juventude que ouve axé e eletrônica a milhão de decibéis no carro é quase isso. À frente tem a Avenida Paulista, o frenesi. Ali do lado, a Associação Beneficente dos
Provincianos de Osaka – Naniwa. Um prédio branco, impessoal, com escadarias na frente. Postado altivo, seguro, a configuração máxima do bem-apessoado, alguém que atende pelo nome de John James Reynaud Woodward, casado, pai de dois filhos, aguarda. Terno e camisa escuros. Gravata dourada. Impecável. Sobre ele a faixa, 1º Concurso Kaoki Karaokê Kyoshitsu. A seu lado Sandra Pierre. Bonita, esguia, segura. Aguardam. Japoneses entram e saem.

Para quem liga karaokê a um monte de garotos e garotas ocidentais excitados berrando hits passados e presentes em ambientes enfumaçados, lendo letras em monitores de televisão, sendo saudados a cada desafinação, esqueça. Quem se deu ao trabalho de entrar no Naniwa encontrou o contrário. Seriedade. Senhores de terno. Japoneses. Senhoras empetecadas à Hebe Camargo. Japonesas. Eles distribuindo o programa das apresentações. Elas recebendo os playbacks com o acompanhamento das músicas sobre as quais os candidatos se apresentarão. Não há banda. Apenas playbacks, acompanhamento de músicas, sem voz. Importados do Japão, onde a maioria dos discos pop já sai com faixas “para karaokê”. Os programas têm várias páginas. Muitos anunciantes. Pois são muitos os concorrentes. São várias as faixas enquadrando os participantes. Estes são muitos. O número de James é 315.315! Pudera. O evento começou às 7 horas da manhã. Velhinhos japoneses cantaram, velhinhas também. São categorias especiais. Mas a competição mesmo se dá em um nível mais alto. Entre japoneses, ou não. Desde os iniciantes Shinjin, passando por Tibiko, Infantil, Juvenil, B, A, Especial, Extra, Super Extra até chegar a Star, categorias que se subdividem somando 34 passos. John James de ficha na mão pertence à categoria Especial 2. Funcionário de um cartório, olha para o programa disfarçando o nervosismo. Sandra, massagista, Extra 2, não vai cantar nesse dia. Veio ver os amigos. Japoneses em sua maioria. Ou um “rival” como Pedro Vasconcelos, contador, categoria Extra 1, que veio acompanhado da namorada, Akimi. Este é um taikai entre os mais de cinco que se realizam a cada fim de semana em São Paulo.

Taikai é um concurso de karaokê, onde os candidatos são avaliados, pontuados, apreciados. No Brasil os taikais existem desde meados dos anos 1980. Começaram com poucos candidatos, bandas ao vivo, só japoneses. Um endossistema da comunidade nikkei. O surgimento exponencial desses taikais, aliado ao desenvolvimento tecnológico, entenda-se os playbacks, levou à formação de entidades como a Associação Brasileira de Canção Japonesa (Abrac) e a União Paulista de Karaokê (UPK), e a campeonatos, o paulistão, o brasileirão. Ao hábito. À organização. Hoje são mais de 300 associações filiadas, mais de dez mil inscritos. Tal mobilização pode ser vista como uma disseminação da cultura japonesa, uma forma de manutenção da cultura para os próprios, imigrantes por natureza, negócios, lazer. Para nós brasileiros a categoria máxima, Star, diz respeito a gravar, a ser um artista no sentido “aparecer na mídia”, ser convidado para eventos, programas de televisão. Ou ir para o Japão. E concorrer no Nippon Amateur Kayo Sai Grand Prix Taikai, realizado em maio. “Brasileiros” como Hiroishi Yudi e Yoshikawa Toshiyaki já venceram esse concurso. Ou o Nippon Taishu Ongaku Sai, caso de Sayuri Tsutiya. E há Joe Hirata, um paranaense de Maringá que depois de vencer campeonatos nacionais foi para o Japão. Em 1988. Ralou muito como dekasegui – empregado estrangeiro – até vencer em 1994 um concurso realizado pela NHK, televisão estatal japonesa. No ano 2000, após gravar no Japão, voltou ao Brasil onde se tornou um cantor sertanejo de relativo sucesso.
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VÍDEO DE JOHN WOODWARD CANTANDO:

Embora a comparação seja forçada, pensar em música sertaneja é útil para a compreensão do fenômeno. O canto do cantor típico do karaokê japonês está mais para o virtuosismo de Leonardo, Daniel e Zezé Di Camargo do que para a doçura de Caetano Veloso, os sussurros de João Gilberto, os grunhidos de Mick Jagger dos Rolling Stones ou os miados de Thom Yorke do Radiohead. A técnica vocal conta muito. São tons, semitons e vibratos muito peculiares. As passagens entre uma e outra das diversas categorias formalmente obedecem ao número de vitórias. O candidato precisa vencer duas vezes na categoria B para elevar-se para a A. Três vezes para a Especial. E assim por diante. Quem está na faixa Super Extra precisa vencer 20 vezes para chegar à Star. John James sonha ser campeão no Japão desde que começou a frequentar a Associação Okinawa de Patriarca, bairro paulistano onde mora. Para isso precisa ganhar o Grand Prix do Taishu Ongakusai que oferece a viagem àquele país. No seu caso, foram 22 vitórias em 46 participações. Na qualidade de Especial 2, o dois referindo-se à faixa etária acima de 40 anos, necessitaria de cinco vitórias para adentrar o Extra. Já venceu nove vezes. O que o segura? Mario Chibana, seu professor.

A musa de Clodovil

*Ícone da beleza dos anos 1960, a carioca Mariza Woodward desfilou para Denner e Clodovil e foi a primeira modelo a protagonizar uma novela, A Gata, de Ivani Ribeiro, exibida pela extinta TV Tupi em 1964. Participou de Noite Vazia (1964) e Corpo Ardente (1966), filmes de Walter Hugo Khouri, entre outros. Hoje vive em Teresópolis (RJ).

Tanto Sandra, como John e Pedro, envolveram-se com a cultura japonesa de uma maneira oblíqua. Em primeiro lugar veio o canto. Onde mais cantar com prazer? Em programas de calouro? Em segundo, o meio. Um taikai é uma confraternização que, ao envolver centenas de pessoas, aciona um esquema de alimentação, acomodação, arbitragem, sonorização, raramente visto no chamado lazer familiar. É gostoso “estar” em um taikai. E onde entra o Chibana? Ele é a interface com esse mundo. A exemplo de Mario Chibana, praticamente duas centenas de professores, em sua maioria ex e atuais candidatos, preparam cantores. Postura, entonação, pronúncia, envolvimento, distanciamento. John, antes de se apresentar cantando “Jyu”, do repertório de Fuse Akira, estava mais preocupado com Mario do que com os jurados postados no mezanino. Em se tratando de música japonesa sua voz potente por vezes atrapalha. Não venceu naquele domingo. À sua frente vieram duas irmãs, nisseis, ou seja filhas de japoneses, que já foram grandes e depois de um período afastadas retomavam a escalada. Apesar das nove vitórias, Chibana prefere mantê-lo como Especial porque sabe que na categoria Extra John será comido vivo. Com palitinho. Melhor sorte teve Pedro, que cantou “My Way”. Em japonês. Sandra a tudo acompanhava com um sorriso enigmático. Semana que vem tem mais.


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