Me atrasei muito, passei pra pegá-la e fomos direto pra festa. Não daria tempo de passar na igreja, nem para os cumprimentos. Eu sabia que seria uma festa especial, era o estilo deles. O convite anunciava três atrações principais. House music, que é um inferno; o DJ Thunder Bill, que para mim soou como uma ameaça; e flair bartending, que eu não sabia o que era.

Escolhemos um lugar bem longe das caixas de som. Do outro lado do salão se podia ver que o serviço de bar estava apenas começando. Busquei um duplo nas pedras pra mim e uma marguerita pra ela. Ficamos ali esperando as coisas acontecerem.

As pessoas começaram a chegar, a música entrou forte e logo entendi o tal flair bartending. Rapazes adestrados, vestidos de negro, faziam malabarismos com gelo, frutas e garrafas: preparavam os drinques. Perguntei se ela queria dar uma chegada no bar. Ela apenas meneou a cabeça. Fui sozinho.

Havia muita gente em frente ao bar. Não havia uma fila definida, pensei até em voltar. Mas, as garrafas subiam. Subiam também morangos, gelos e copos. Tudo em meio às luzes coloridas. Um ambiente encantado. Eu comecei a gostar de tudo aquilo.

De repente, para minha surpresa, taparam meus olhos, pelas costas: adivinhe quem é? gritou a voz de mulher em meio à música infernal. Eu disse Diana Krall, imagine. Ela me soltou, me virei e, para minha grande surpresa, vi o lindo rosto da Cris, amicíssima de minha irmã caçula. Eu não a via há muitos anos.

Foi pergunta pra todo lado. Sempre junto ao ouvido, o som estava muito alto. Divertida a Cris. Sempre foi. Eu matei o meu duplo e pedi outro. Ela renovou sua caipiroska de lima. As garrafas continuaram voando, gelos tilintando e as frutas colorindo. Uma beleza. E aí foi ainda mais pergunta e muita lembrança. Quando a Cris pediu mais uma de lima, me dei conta que precisava voltar. Olhei pro outro lado do salão: ela estava de pé me olhando fixamente, de braços cruzados.

Bati em meu coração e fiz com a mão que a Cris era minha amiga desde pequena. Ela, lá de longe, fez um lento não. Eu, com as duas mãos à frente espalmadas para baixo, pedi calma. Ela, de lá , balançou a cabeça, fez um você não perde por esperar.

Eu não podia deixar a Cris ali. Pedi calma com a mão e mais um uísque no balcão. Mas essas coisas demoram, me distraí e o tempo passou. De repente apagaram a luz e, à nossa frente, um dos rapazes fez um inesperado número de engolir fogo. A tremenda labareda assustou a Cris que se acolheu em meu peito.

Quando acendeu a luz, ela estava ali encostada. Pressenti encrenca brava, olhei pro outro lado do salão e disse com o ombro o que eu posso fazer? Ela passou a mão horizontal na própria garganta, claramente sinalizando que iria cortar a minha. Livrei um braço e pedi calma, com a mão espalmada para baixo. Ela, decidida, sinalizou uma tesoura em altura genital.

Assustei e pedi licença à Cris, que esperava uma outra de lima. Mas, ao começar meu movimento de volta, vi lá do outro lado do salão um movimento de punho cerrado à altura do queixo. Parei.

Decidi não olhar mais pra lá. A conversa então foi longe, a Cris me divertia. Quando voltei a olhar pro outro lado do salão, ela não estava mais lá. Não vi quando saiu e nunca mais ouvi falar dela.

Ameaça é mesmo coisa séria e não deixa muitas alternativas. Ou bem se aceita a ameaça, e aí não tem mais jeito. Ou se ignora a ameaça, que é o civilizado e foi o que fiz. Há também a possibilidade de se eliminar quem ameaça. Mas isso dá muito trabalho e, em geral, deixa rastro.

A Cris concorda comigo, mas até hoje fica meio tensa com o assunto.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil pela Escola Politécnica da USP, PhD pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli – USP, na área de Informações Espaciais. Dedica-se também à literatura


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