Na cola do prefeito Kassab, gerente da lei e da ordem

Na hora marcada, oito e meia da manhã, já estava à nossa espera, no escritório do amplo apartamento onde mora o prefeito Gilberto Kassab, nos Jardins, atrás do Shopping Iguatemi, o seu fiel escudeiro Alexandre Costa, um jovem jornalista que o acompanha desde os tempos de deputado federal do PFL em Brasília.

Combinamos acompanhar um dia na vida dele para mostrar como é a rotina do prefeito da maior cidade da América do Sul, responsável pelo bem-estar de cerca de 11 milhões de pessoas, por onde circulam 5,5 milhões de carros numa área de 1.530 quilômetros quadrados e que abriga um PIB de US$ 76 bilhões, 205 hospitais, 12,5 mil restaurantes, 1,5 mil agências bancárias, 120 teatros, 71 museus e a maior população de japoneses fora do Japão, de portugueses fora de Portugal e de espanhóis fora da Espanha.
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Para quem não sabe que ele mora no Monfort, um prédio em estilo neoclássico onde morou o governador Franco Montoro, já falecido, nada indica a presença ali da principal autoridade da metrópole, pois não há nenhum sinal de segurança na portaria ou no apartamento. Quinto dos sete filhos do médico Pedro e da professora Yacy, solteiro, o prefeito Kassab estava terminando de fazer a primeira refeição do dia e nos pediu para não ser fotografado em seu ambiente doméstico. Cioso de sua privacidade, não queria abrir uma exceção.

“Pode me chamar de você”
A folhinha sobre a mesa do escritório marcava 26 de julho de 2007. São Paulo ainda estava traumatizada pelo acidente do Airbus da TAM, que nove dias antes deixara 199 mortos ao se espatifar contra um prédio da empresa aérea em Congonhas, do outro lado da Avenida Washington Luís.

Pelos objetos espalhados nas estantes e pelos quadros pendurados nas paredes, entre fotografias da cidade e um mapa do Estado, dá para saber que o prefeito paulistano é são-paulino de cadeira cativa e formado em Engenharia Civil, Economia e Administração pela Universidade de São Paulo, depois de ter estudado do primário ao segundo grau no Liceu Pasteur, um tradicional colégio de classe média da Vila Mariana, do qual seu pai foi por muitos anos diretor.

“Bom dia, tudo tranqüilo?”, vai logo perguntando aos jornalistas ao entrar no escritório, às nove da manhã, sem mostrar qualquer preocupação com o dia que o espera diante do funesto noticiário dos jornais que repousam sobre a mesa. Nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, bochechas vermelhas e olhos muito azuis, não faz pose de autoridade. Parece um tipo bem familiar, desses que a gente encontra nos almoços de domingo na cantina do bairro, nas filas do correio ou do supermercado, sem nos chamar a atenção. Eu não o conhecia, nunca havia cruzado antes com o prefeito da minha cidade. Por isso, embora ele seja bem mais jovem – tem apenas 47 anos -, eu o tratava de “senhor”, mas ele logo me cortou: “Pode me chamar de você”. Em poucos minutos de conversa, já parecíamos velhos conhecidos. Descobrimos que, além de são-paulinos e ex-alunos do Liceu Pasteur, temos outras coisas em comum: já moramos na mesma rua, a Mário Guastini, no Alto de Pinheiros, onde ele nasceu; estudamos na mesma faculdade, a Escola de Comunicações e Artes da USP, que ambos não concluímos; e, por muitos anos, fomos quase vizinhos em ruas próximas à Praça Panamericana, no mesmo bairro.

Feitas as apresentações, pergunto no que ele pensou primeiro ao acordar hoje, uma quinta-feira fria de oito graus, céu nublado. De terno preto, camisa azul, pulôver bege e gravata vermelha com bolinhas amarelas, o prefeito já vai logo falando sobre o acidente aéreo, cujas conseqüências ocuparão boa parte de seu dia.

“Esse acidente vai mudar a história da cidade. Temos de cumprir a lei, acabar com a impunidade. Está vendo esse prédio aí na frente da minha janela? Pois é, é tudo irregular. Já pedi para demolir, mas o processo é muito demorado, continua aí…”

Naquele dia, os jornais publicaram uma lista de 69 prédios que ficam na rota dos aviões, com altura superior à permitida, considerados em situação irregular pela Aeronáutica. Um deles tinha ficado famoso ao ser denunciado pelo Fantástico no domingo anterior: o Oscar’s, erguido ao lado da Boate Bahamas, bem na direção da cabeceira da pista de Congonhas. Por que se descobriu isso só agora, depois do acidente?

“Comecei a mexer com esse assunto só agora porque a imprensa me alertou. Eu também errei”, admite, para logo em seguida lembrar que está mudando a postura da população em relação ao poder público.

O prefeito se empolga e vai em frente, sem se preocupar em sair logo de casa para o primeiro compromisso do dia, no Jardim Elisa Maria, na zona Norte. “O cidadão virou fiscal da Prefeitura. Hoje a internet é o grande instrumento para a fiscalização. Na campanha da Cidade Limpa, mostramos que não abrimos exceção para ninguém, que a lei é para todos. A sociedade comprou a nossa idéia. Estamos recebendo cerca de 3 mil denúncias por dia. O paulistano está recuperando a auto-estima, está voltando a acreditar na cidade.”

De fato, o Projeto Cidade Limpa, em apenas um ano, mudou a paisagem urbana, sem ter custado nada aos cofres públicos, com a retirada de outdoors, painéis eletrônicos, faixas e placas de propaganda das fachadas dos prédios. Ao contrário, ele já rendeu mais de R$ 30 milhões em multas pagas pelos que não cumpriram a lei que passou a regulamentar a publicidade nas ruas. Foi só o começo. Agora, o prefeito, que era vice e quase ninguém conhecia ao assumir o cargo no lugar de José Serra – ele deixou a Prefeitura para se eleger governador em meados do ano passado -, já se prepara para novas investidas, sempre “em nome da lei e da ordem”, um mantra que o acompanhará durante o resto do dia, como veremos.

“Eu prefiro ficar ao lado de 11 milhões de paulistanos do que de 60 construtoras. Precisamos bater pesado na Justiça porque os imóveis irregulares terão que ser demolidos. São mais de 500, não podemos mais esperar. Só nesta semana já tirei das ruas mais de mil camelôs, que não são mais os coitadinhos sem emprego, mas pessoas que vendem carga roubada e produtos piratas a serviço do crime.”

Afável no trato, mas firme em seus objetivos, um jeitão mais de delegado do que de engenheiro, Kassab se prepara para sair de casa, já com a agenda atrasada, com a disposição de quem vai enfrentar os fora-da-lei, sua obsessão desde que virou prefeito – e tem dado certo. Em agosto, pela primeira vez, uma pesquisa do Ibope registrou um índice de rejeição abaixo dos 30% (é reprovado por 28% dos eleitores, aprovado por 24% e, para 44%, seu trabalho é considerado regular).

No dia do acidente, lembra, ele foi a primeira autoridade a chegar a Congonhas, e já encontrou um clima de se culpar o governo federal pela tragédia. “Já estavam criticando o Lula. É fácil criticar quem está em Brasília sem saber primeiro o que realmente aconteceu. A primeira pergunta que os jornalistas me fizeram foi sobre o posto de gasolina bem ao lado do prédio da TAM que estava pegando fogo, como se eu fosse culpado por ele estar lá. Mas eu nem tinha nascido quando construíram o posto naquele lugar… No dia seguinte, fui atrás da Lei do Zoneamento para estudar aquilo direito.”

Ao contrário de seu colega de função e partido (agora chamado DEM – Democratas), o blogueiro César Maia, prefeito do Rio nas horas vagas, que passa o dia administrando a cidade pelo computador, Kassab só dá uma rápida espiada na tela para ver se tem alguma mensagem urgente. Prefere ler os e-mails dos secretários no papel que as secretárias imprimem e entregam para ele quando chega ao gabinete.

De carro e helicóptero
São 9h35. Começa a maratona. Entramos todos num Santana preto ano 2004 e vamos direto para o heliponto do prédio do Banco Santander, na Marginal Pinheiros, a poucas quadras de onde o prefeito mora. Por onde passa, as pessoas o cumprimentam por estar mais magro. Kassab perdeu 13 quilos este ano, e tem prazer em ensinar a receita: “É só não comer nada pesado à noite”.

De hábito, ele utiliza um pequeno helicóptero da Polícia Militar adquirido na época do prefeito Jânio Quadros, que o cedeu à PM e só o requisitava em casos de emergência. Mas hoje, como há mais passageiros – quer dizer, nós -, utilizamos um Esquilo particular locado pela Prefeitura.

O prefeito se ajeita rapidamente como se tivesse subido num táxi e seguimos em direção a Santana. “Não, nunca tive medo de voar.” Passamos sobre o Clube Pinheiros, que ele freqüenta desde a mocidade, e ainda hoje, mas já não joga de zagueiro no time de futebol dos sócios. Só vai lá agora para manter a forma na academia de ginástica.

No caminho, o prefeito vai apontando as áreas verdes que ainda restam. “Estamos plantando 200 mil árvores por ano, mas ainda é pouco, né?…” Com o indicador encostado na janela, mostra os postos de gasolina que foram fechados recentemente pela Prefeitura, por venderem combustíveis adulterados, e revela que a maioria deles pertencia à organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital), que infernizou a vida da cidade no ano passado.

Um ano e meio depois de suceder a José Serra, já bem à vontade no cargo que não sonhara ocupar tão cedo, o prefeito lembra que, ao lançar a Campanha Cidade Limpa, ainda havia muita desconfiança. “Acharam que era mais um factóide, mas com o tempo fomos ganhando a opinião pública quando todos viram que a coisa era para valer.” Mal comparando, a história dele lembra um pouco a de José Sarney, que foi dormir vice-presidente na véspera da posse de Tancredo Neves, em 1985, e acordou presidente da República.

O “gosto pela vida pública”, como explica Gilberto Kassab numa linguagem meio antiga, surgiu não faz muito tempo, em 1993, quando se elegeu vereador pelo PL, partido que nem existe mais, levado pelas mãos de Guilherme Afif Domingos e João Mellão, representantes da fina flor do conservadorismo paulistano.

No ano seguinte, os três migraram para o PFL, e Kassab se elegeu deputado estadual. Uma década depois, já como deputado federal, era secretário nacional do PFL, e estava sendo preparado por Jorge Bornhausen, segundo conta com bastante orgulho, para assumir a presidência nacional do partido em seu lugar (cargo hoje ocupado por Rodrigo, filho de César Maia).

“Por isso, a princípio, eu não queria aceitar o convite do PSDB para ser o vice do Serra.” Uma ala dos tucanos, por sua vez, também não o queria como vice, em razão de seu passado como secretário de Celso Pitta, o herdeiro político de Paulo Maluf, preferindo uma chapa “puro-sangue”.

Mas, na campanha eleitoral para a Prefeitura, em 2004, Serra e Kassab acabaram ficando muito próximos, formando uma dupla que, no momento, se mostra inseparável, como se pertencessem ao mesmo partido. Nas raras vezes em que fala de uma possível candidatura à reeleição, o prefeito nunca esconde que seu futuro político está amarrado ao do governador José Serra.

A adesão da petista
Pouco depois das dez horas, o helicóptero desce no pátio da empresa Concremix, no Jardim Elisa Maria, bem próximo do seu primeiro compromisso – a cerimônia de lançamento da terceira fase do programa de recapeamento asfáltico das ruas de São Paulo, que vai beneficiar 81 vias numa extensão de 61 quilômetros. Kassab diz que prefere ir para seus compromissos de carro, “porque assim a gente vai vendo as coisas erradas no caminho”. Como hoje a agenda está bastante carregada, o helicóptero é indispensável.

Em frente à Escola Municipal de Educação Infantil Berta Lutz, não mais que 20 pessoas estão à sua espera. Entre elas, um vereador da região, Claudinho de Souza, do PSDB, que logo vem apresentar a Kassab sua nova conquista. “Esta aqui, a Sílvia, era do PT, agora está com a gente.”

Antiga líder comunitária do bairro, presidente do Movimento pela Moradia, Sílvia Cristina me conta que há 30 anos luta pela regularização fundiária e pela instalação de uma unidade de saúde no bairro. “Agora, com esse prefeito, vai sair”, comemora ela, que chegou a participar das reuniões do Orçamento Participativo na administração de Marta Suplicy. “Eu era petista roxa, mas agora eu sou apartidária. Luto pela minha comunidade, independentemente de partido.”

Valter Rocha, diretor da Usina de Asfalto da Prefeitura, vem informar ao prefeito que a produção destinada à operação tapa-buraco, pavimentação de novas ruas e recapeamento, passou de 100 toneladas/dia para 2,2 mil e, antes do final do ano, chegará a 3 mil. Na atual administração, já foram pavimentados 589 quilômetros em 553 vias da cidade, 86,5% a mais do que tudo o que foi feito nos 16 anos anteriores.

Kassab, claro, adora ouvir esses números. Guarda de cabeça alguns deles: construção de 54 novas escolas para substituir as vexaminosas “escolas de lata” que sobreviveram a várias administrações, além de outras 70 para acabar com o terceiro turno de aulas, mais 23 novas unidades dos Centros de Educação Unificada. “Precisamos cuidar da educação e da saúde. O resto é o resto. Se for preciso parar tudo para cuidar da educação e da saúde, nós paramos.”

Enquanto todos aguardam a chegada de Andrea Matarazzo, um ex-ministro do governo Fernando Henrique Cardoso que agora ocupa o cargo de secretário das Subprefeituras, e na prática é uma espécie de lugar-tenente de Kassab, o prefeito atende à imprensa e tira fotos ao lado da máquina de recapeamento de asfalto. Um bêbado que discursa para si mesmo é discretamente retirado por policiais militares.

Chega pelo ajudante-de-ordens a informação de que Andrea Matarazzo não vem mais. Ele foi direto para outro compromisso, em Congonhas, na zona Sul, que não estava previsto na agenda: a interdição do Hotel Bahamas, para onde o prefeito voará em seguida. De novo no helicóptero, Kassab lembra, a meu pedido, o pior momento de seu governo até agora.

Nem precisa pensar muito. Foi em fevereiro deste ano, durante a inauguração de um posto de saúde em Pirituba, na zona Norte, quando ele expulsou aos gritos o microempresário Kaiser Paiva da Silva, que fazia discurso protestando contra a Campanha Cidade Limpa porque prejudicava seus negócios.

“Aquilo me deixou muito magoado. O sujeito fez um discurso político dentro de um ambulatório, desrespeitando os pacientes, e eu me excedi, errei, reconheço.” Para espanto de seus assessores, o cordato Kassab simplesmente partiu para cima do morador e o expulsou da sala, aos gritos de “Sai daqui, vagabundo, vagabundo, vagabundo!”.

Duas semanas antes, no dia do aniversário da cidade, 25 de janeiro, o prefeito já havia reagido a outro protesto, na Praça da Sé. Diante das palavras de ordem de “Fora, Kassab! Fora, Kassab!”, ele gritou mais alto o nome da cidade: “São Paulo! São Paulo!”. Mas foi só. Os jornais chegaram a especular que aquela teria sido uma nova estratégia para mudar sua imagem de pacato escudeiro do governador José Serra, e que ele teria “exagerado na dose”.

Hoje Kassab acha até graça dessas interpretações. “Eu apenas fiquei indignado naquele dia, não sou assim. Até começaram a me perguntar, ao chegar aos lugares, se eu estava mais calmo… Mas aquele episódio foi uma exceção.” Cuidadoso ao falar de seus adversários, faz sempre a ressalva: “Não estou criticando, só comparando”, ao citar os números da economia que fez nas licitações de uniformes escolares (R$ 37 milhões) e leite da merenda servida a 1,1 milhão de alunos da rede municipal.

“Não falta dinheiro para educação e saúde. O que falta é gestão”, foi a principal constatação feita em seu aprendizado de prefeito. Outra é a de que não dá para misturar política com administração. Embora ninguém acredite, já que recentemente começou a investir pesado em propaganda, Kassab garante que não está pensando na reeleição. “Não dá para administrar pensando na urna. Na hora certa, o Serra vai resolver isso.”

É um jogo de xadrez complicado. Se dependesse só do governador José Serra, a questão já estaria resolvida a favor da candidatura de Kassab à reeleição, mas o PSDB continua dividido, com uma ala defendendo o lançamento do nome do ex-presidenciável Geraldo Alckmin.

“Tolerância zero”
Do helicóptero dá para ver o prédio do Bahamas pontificando bem em frente à cabeceira da pista principal de Congonhas, onde pousamos agora, às 10h50. Cinco minutos depois já encontramos a muvuca armada diante do império dos sentidos plantado às margens da Avenida dos Bandeirantes por Oscar Maroni Filho, o poderoso dono da Boate Bahamas e do Hotel Oscar’s que se orgulha de seu plantel de 150 garotas de programa.

Assim que o prefeito chega, a operação começa. Sob o comando de Orlando de Almeida, um corretor de imóveis levado por Kassab para a Secretaria de Administração, máquinas e caminhões começam a se movimentar colocando blocos de concreto em torno da obra para que seja cumprida a ordem de interdição do imóvel de 11 andares e 223 apartamentos. Almeida, que lembra muito o ex-governador Mário Covas, é o homem forte de Kassab na Prefeitura para colocar em prática a política de “tolerância zero” com quem desrespeita a lei.

Enquanto Kassab conversa com o secretário Andrea Matarazzo sobre as providências jurídicas que pretende adotar para demolir o hotel o mais rápido possível, a atenção da imprensa é desviada para a chegada triunfal de Maroni Filho. Cabeça raspada, de óculos escuros, porte de segurança de boate, o empresário estaciona sua Mercedes-Benz branca na contramão. Deixa “Docinho”, seu poodle branco, tremendo no banco do carro e, armado de um microfone, brandindo um maço de documentos, já vai logo avisando que está dentro da lei e não vai acatar as ordens do prefeito.

“Eu vivo num Estado de direito, lutei muito por isso na época da ditadura, fui perseguido… Fiz aqui um investimento de US$ 27 milhões, não dá para colocar rodinhas no prédio e levar para outro lugar. Está tudo aqui, aprovado pela Prefeitura, pela Aeronáutica…”, grita o empresário com entonação de locutor de rádio ante a perplexa platéia formada por autoridades, policiais, jornalistas e curiosos que não param de chegar.

Impassível, Kassab finge nem perceber que Maroni está se aproximando dele, cada vez mais irado, empurrando quem encontra pela frente. Depois de distribuir aos repórteres um energético que ele mesmo produz, o empresário vem oferecer uma garrafinha ao prefeito, que continua dando sua improvisada entrevista coletiva à imprensa: “São Paulo tem que fazer a sua parte. Cabe a cada um de nós dar o exemplo. Nós mudamos a cara da cidade em poucos meses porque somos implacáveis na aplicação da lei. A lei será cumprida nos mínimos detalhes…”.

Kassab explica que o proprietário do imóvel cometeu várias irregularidades. Entre elas, a de apresentar projetos diferentes para a Prefeitura e para a Aeronáutica.

A poucos passos do prefeito, cercado por seguranças, Maroni tenta interromper a entrevista. “Prefeito, escuta aqui, prefeito, o senhor não vai me chamar de vagabundo, não! A sua polícia está me intimidando! Não tenho todo esse batalhão pago com meus impostos, estou sozinho…” A entrevista prossegue. Os repórteres querem saber do prefeito quando o prédio será demolido. “Se depender de mim, amanhã. Isso pode ser uma ação exemplar…”

Kassab informa também que a Prefeitura vai construir uma praça no local do acidente. Os repórteres ficam divididos. É difícil acompanhar os dois discursos ao mesmo tempo. Para descrever a cena, só mesmo chamando Gabriel García Márquez num dia inspirado.

Maroni desiste de falar com o prefeito e volta para o carro. Coloca “Docinho” sobre o teto da Mercedes e desabafa: “Me sinto numa festa onde todos estão vestidos de pênis e eu de vagina…”. O secretário Almeida manda a polícia tirar o carro de Maroni do meio da rua e ameaça chamar o serviço de zoonose da Prefeitura para recolher o cachorro.

Duas semanas depois dessas cenas, a Justiça concederia liminar revogando a interdição do hotel, no mesmo dia em que decretaria a prisão preventiva de Oscar Maroni Filho, acusado de formação de quadrilha, tráfico de mulheres, exploração de prostíbulo e favorecimento à prostituição. Foragido, Maroni avisou que pretende se candidatar a prefeito nas eleições do próximo ano. No dia seguinte, ele foi preso.

Almoço com Serra e FHC
O prefeito olha o relógio e se despede dos secretários às 11h30, pois tem um compromisso com o governador José Serra daqui a pouco: a inauguração de uma passarela para pedestres junto à Ponte Cidade Jardim, ligando a estação da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) na marginal do rio Pinheiros ao Parque do Povo.

Como costuma acontecer nessas ocasiões, o governador Serra está atrasado. Kassab aproveita para acionar seus assessores pelo celular para que tomem as providências necessárias no Judiciário que permitam a derrubada do prédio do hotel. Virou uma questão de honra para ele. Cercado pela fina flor do tucanato que aguarda o início da cerimônia, o prefeito do DEM conversa com parentes de Miguel Reale, jurista morto no ano passado que dá nome à passarela.

O discurso de Kassab não chega a durar dois minutos. Faz apenas uma breve saudação e passa logo a palavra ao governador, que também é econômico nas palavras. Em seguida, os dois atravessam a passarela e, do outro lado da Avenida Cidade Jardim, Serra concede uma rápida entrevista à imprensa, em que faz críticas ao governo federal, por não concordar com a construção de um novo aeroporto em São Paulo, obra anunciada na véspera pelo presidente Lula. Kassab só assiste.

Após a inauguração da passarela, Serra e Kassab vão almoçar juntos no Palácio dos Bandeirantes. Guardado em sigilo, o almoço reunirá também o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-ministro da Aeronáutica Mauro Gandra. O objetivo do encontro é discutir possíveis soluções para a crise aérea e para a situação dos aeroportos de São Paulo. Os jornais do dia seguinte nada publicariam sobre o almoço.
Como ainda falta algum tempo para o encontro no Palácio dos Bandeirantes, marcado para a uma da tarde, Kassab nos acompanha até a Casa da Fazenda, um bucólico restaurante junto ao Portal do Morumbi, onde vamos almoçar com seus assessores Alexandre Costa e o veterano Sérgio Rondino, coordenador de imprensa da Prefeitura que foi meu colega de redação nos anos 60 (Estadão/JT) e 90 (TV Bandeirantes) do século passado.

O prefeito só pretendia tomar um café com os jornalistas, mas se esqueceu do regime e não resistiu aos simpáticos pasteizinhos do couvert. Pelo celular, que não pára de tocar, ele vai dando instruções à sua equipe sempre no mesmo tom ameno de voz. Certamente, se pudesse, Kassab preferiria almoçar com a gente naquela varanda do antigo casarão da fazenda a enfrentar a bóia palaciana – mas quem mandou querer ser prefeito?

Em nenhum momento do dia, porém, ele reclamaria do destino, que lhe entregou de bandeja a cadeira de prefeito de São Paulo. Kassab parece feliz na função, como o zelador de um prédio que herdou a função de um colega que foi embora. Após o almoço, vamos nos reencontrar nos estúdios da Rádio e TV Bandeirantes, também no Morumbi, aonde o prefeito vai uma vez por mês para prestar contas da administração no programa Ciranda da Cidade, apresentado por Milton Parron, que é mais antigo no ofício do que o Rondino e eu juntos.

Prestando contas
Alguns diretores da emissora aguardam, ao lado da portaria, a chegada do prefeito, que está bastante atrasado. Ao serem informados de que Kassab está com o governador no Palácio dos Bandeirantes, todos sorriem – sabem que ele vai demorar. O programa é ao vivo e acaba às quatro da tarde. Faltando apenas 20 minutos, ele chega e vai rápido para o estúdio. Como não poderia deixar de ser, Parron entra direto no tema da tragédia do avião e do bafafá da manhã em frente ao Bahamas.

“Existem leis para serem respeitadas. O dono cometeu um emaranhado de malandragens. Chegou a hora do basta, aquilo tinha que ser fechado…”, explica Kassab, sempre batendo na tecla da lei. “A campanha da Cidade Limpa foi uma vitória não da Prefeitura, mas da cidade. Temos que fazer valer a lei, recuperar a auto-estima… A fiscalização não cabe só à Prefeitura, mas a todos os cidadãos…”

Parron aproveita a deixa e começa a fazer as perguntas de ouvintes que estão armazenadas em seu laptop. Do outro lado da mesa, ao lado do prefeito, o assessor Sérgio Rondino já organiza suas fichas por assuntos que certamente serão perguntados. Uma professora municipal aposentada reclama que a Prefeitura só concedeu gratificação recentemente para quem está na ativa e ela também quer a parte dela. Kassab promete estudar uma forma de transformar a gratificação em aumento para todos os professores, mas não dá prazo.

Reclamações sobre poluição sonora, problemas causados pela reforma das calçadas na Avenida Paulista, favelização em áreas de preservação permanente, camelôs, falta de iluminação pública – para cada tema do varejo da administração, Kassab tem uma resposta na ponta da língua sobre tudo o que já foi e será feito, desfiando números e mais números, que lhe são repassados nas fichas do eficiente assessor, sempre preparado para municiar o prefeito de dados. “Vocês sabiam que São Paulo tem 550 mil pontos de luz nas ruas e Paris só tem 200 mil?…”

O programa já está terminando, mas logo um diretor vem avisar que a entrevista de Kassab continuará no programa seguinte, o Jornal em Três Tempos, comandado por Felipe Bueno. O apresentador informa que não param de cair perguntas de ouvintes em seu computador e aproveita para fazer um agrado. “O prefeito está ficando popular…”

“E as perguntas são positivas?”, quer saber Kassab, tão entretido em não deixar nenhuma pergunta sem resposta que nem repara no entra-e-sai no estúdio das belas moças da produção. “Em dois anos, contratamos mais 1,1 mil guardas municipais e agora estamos criando a guarda ambiental para cuidar da Serra da Cantareira e das represas Guarapiranga e Billings… Acabamos com os contratos de emergência e tiramos o serviço de coleta de lixo das páginas policiais… Fechamos 180 bingos; só restaram dez que sobrevivem com liminares…”

Se pudesse e se deixassem, o prefeito certamente passaria o resto do dia prestando contas na rádio, mas, pela agenda, ainda o aguardam oito audiências no gabinete a partir das 16h30, e ele já está bem atrasado. Embarcamos no heliponto da Bandeirantes e em dez minutos já estamos pousando na sede da Prefeitura, no belo edifício construído pelo conde Francisco Matarazzo no Viaduto do Chá, que ainda preserva os jardins na cobertura. No caminho, Kassab vai apontando os prédios agora livres dos imensos painéis de propaganda proibidos pelo Projeto Cidade Limpa. “Alguns síndicos reclamaram que os condomínios perderam receitas, mas a cidade ficou mais bonita, todos saíram ganhando.”

Antes de receber na primeira audiência da tarde o secretário adjunto da Habitação, Elton Santa Fé Zacarias, às 16h50, para tratar do processo do Hotel Oscar’s, o prefeito concede-se uma pausa para o café em seu gabinete. Mas logo é interrompido por um telefonema do novo ministro da Justiça, Nelson Jobim, que acabara de assumir o cargo. O ministro avisa que virá a São Paulo no dia seguinte e quer lhe fazer uma visita no gabinete. “Não precisa se preocupar, ministro. Nós já vamos nos encontrar no Palácio dos Bandeirantes na reunião que o senhor terá com o governador. Também estarei lá…”

Muito zeloso no trato de suas relações com o governador José Serra, Kassab só se permite uma brevíssima especulação sobre os rumos da política nacional, mesmo garantindo que no almoço com o governador e Fernando Henrique na ala residencial do Palácio dos Bandeirantes só houve uma troca de informações sobre a situação dos aeroportos paulistas. “Eu tenho a impressão de que nós vamos ter mesmo uma chapa Serra e Aécio em 2010, você não acha?…”

Pelo resto da tarde, Kassab fica circulando entre seu gabinete e a sala de reuniões ao lado, onde vários secretários estão reunidos com representantes da sociedade civil para discutir assuntos como o Dia Mundial sem Carro e a Virada Esportiva, com 24 horas de atividades físicas.

Entre os convidados está o empresário Oded Grajew, ex-assessor especial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que agora comanda o Movimento Nossa São Paulo, organização que se propõe a recuperar para a sociedade “os valores do desenvolvimento sustentável, da ética e da democracia participativa”.

O Dia Mundial sem Carro, marcado para 22 de setembro, explica Grajew ao prefeito, “visa estimular a reflexão sobre os impactos negativos gerados pelo uso do carro e organizar o processo participativo na elaboração de políticas públicas de transportes coletivos de boa qualidade”. Objetivo e rápido nas decisões, Kassab promete comparecer ao lançamento da campanha, dali a duas semanas, e volta para seu gabinete, onde já o aguardam os secretários da Cultura do Estado, João Sayad, e do Município, Carlos Augusto Calil, para cuidar da organização de um evento ligado ao Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. O prefeito não gasta mais de 15-20 minutos em cada reunião ou audiência e já passa para o assunto seguinte.

Antes de encerrar o expediente, como de costume, Kassab despacha com o secretário de governo Clóvis Carvalho, outro ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso, com quem decide as medidas que serão publicadas pelo Diário Oficial no dia seguinte. Passa das sete horas da noite e ainda falta cumprir dois compromissos na sua agenda: ir à missa de sétimo dia da mãe do governador José Serra e à festa de aniversário do Bairro de Santana na zona Norte.

Ufa!


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