Envelhecer como artista no Brasil não é nada fácil. Ney Matogrosso completará 70 anos em agosto e prova que é possível fazê-lo com coerência, prazer e muita vitalidade, como atesta sua agenda em 2011. O cantor percorrerá os quatro cantos do País com shows da turnê de seu último CD e DVD Beijo Bandido, estará em dois filmes (o longa-metragem Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha e Olho Nu, documentário sobre sua carreira) e também no teatro, como diretor do monólogo Dentro da Noite, que entrará em cartaz em São Paulo. E ainda prepara um novo disco, com canções inéditas. Haja fôlego e tesão, mas Ney vem provando, a cada novo trabalho, que ainda os têm de sobra.

Ao longo de mais de 35 anos de uma carreira com fortes doses de ousadia, liberdade e coerência, ele jurou verdades, assumiu todos os pecados e seguiu sozinho, sem nunca sentir culpas. Nem mesmo quando, em 1974, logo após o lançamento do segundo álbum, deixou o Secos & Molhados, grupo que o projetou nacionalmente. A ausência de culpa já rondava a vida de Ney, muito antes de ele encarnar essa persona artística polêmica e de grande sensualidade que, muitas vezes, o fez achar que era duas pessoas. A relação com o pai, militar de carreira, sempre foi difícil, a ponto de Ney desejar que um caminhão passasse por cima dele. O pai não aceitava as pretensões artísticas do filho, que não aceitava a maneira estreita com que ele enxergava o mundo. Tensões que chegaram a ponto de Ney se alistar na Aeronáutica e sair do jugo do Pai-Patrão. Mas a vida e “os ventos do Norte” iam dar a eles a chance de resolverem as mágoas. Ney seguiu sobrevivendo com alguns arranhões. Deixou para trás uma ditadura militar assassina, a AIDS, que dizimou muitos de seus amigos e parceiros, e o risco de tornar-se artisticamente ultrapassado. “Virou homem e lobisomem”, mas nunca deixou de ser Ney Matogrosso. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Brasileiros, em um hotel de São Paulo, antes de fazer três apresentações do seu último e já consagrado show Beijo Bandido.

Brasileiros – Você está encerrando a turnê Beijo Bandido em São Paulo?
Ney Matogrosso –
Não, de maneira nenhuma.
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Brasileiros – Vai até quando essa turnê?
N.M. –
Eu estou refazendo o Brasil todo. Faço Nordeste ainda, faço Sul, Centro Oeste. Vou trabalhar muito ainda com ele.

Brasileiros – O seu último show Inclassificáveis durou mais de dois anos, entre 2007 a 2009…
N.M. –
Foi.

Brasileiros – Você praticamente, desde que começou a sua carreira, gravou um disco por ano, com alguns intervalos sem gravar, muito em função dos shows que intercalava entre as gravações de estúdio. Foram mais de 20 shows até hoje. Esses anos que você não gravou foi realmente por causa dos compromissos com os shows?
N.M. –
Foi por causa dos compromissos com os shows ao vivo. Por exemplo, fiz um show com o Rafael (Rabello, violonista) que durou dois anos e meio fazendo. Como era mesmo o nome desse show? (Fica tentando lembrar, mas termina perguntando o nome do show ao seu empresário João Mário, que acompanhava a entrevista em um hotel em São Paulo.) Isso mesmo À Flor da Pele.

Brasileiros – O que te leva fazer o mesmo show durante mais de um ano, que geralmente é o tempo de um show?
N.M. –
O que me leva dar continuidade a um show é perceber que ainda o querem. Enquanto quiserem, eu faço. Não tenho por que sair correndo para fazer outra coisa. Enquanto quiserem assistir, enquanto tiver público eu faço. Agora, com essa história desse lançamento do DVD e CD (o DVD e CD Beijo Bandido foi gravado no Theatro Municipal do Rio de Janeiro no segundo semestre de 2009, e lançado agora pela gravadora EMI), deu mais gás para continuar o show. Vou fazer todo o Brasil de novo, não só as capitais, mas as cidades do interior. Eu também não estou com pressa de fazer o próximo, ainda não (risos).

Brasileiros – Em um artigo recente, o cantor e compositor Renato Teixeira disse: “Ando devagar, porque já tive pressa”…
N.M. –
Não desse jeito. Gosto de ter uma produção constante, não é nem por que goste. Essa coisa me invade, eu não tenho sossego, sabe? A coisa vem independentemente de eu querer. Mas este ano estou querendo fazer esse show com calma. Não estar correndo para fazer uma outra coisa. Eu emendo uma coisa na outra e já faz algum tempo que venho fazendo isso. Paro um e já tenho outro.

Brasileiros – Você, de vez em quando, retorna ao seu repertório antigo, grava música de outros cantores do passado. Você já disse que não renega o que já fez, mas não tem saudade. Não tem saudade do passado?
N.M. –
Não. Não tenho saudade de nada.

Brasileiros – De nenhum momento ou época da tua vida, artística ou não?
N.M. –
Não. Reconheço que houve épocas mais interessantes, épocas de uma maior liberdade individual. Mas está lá e eu estou aqui. Interessa a minha atenção estar voltada para esse momento. Não forço a barra para isso. Eu não sou uma pessoa assim. Não tenho saudade, não sou saudosista.

Brasileiros – Isso está relacionado em você sempre declarar que estamos vivendo uma época bastante careta?
N.M. –
Sim. Mas tudo parte de um processo que estamos todos envolvidos e que vamos passar por ele. E aí, estou aqui, vivendo o processo.

Brasileiros – Você se sentia duas pessoas, como se tivesse duas personalidades…
N.M. –
Antigamente.

Brasileiros – Isso foi dito lá atrás. Disse que se sentia duas pessoas e se tornou uma só pessoa. Quem eram esses dois Neys. Qual era esse conflito?
N.M. –
Tinha essa loucura de achar que eu era dois. Aí, fui ver como era se sentir como se fosse duas pessoas ou mais: o nome disso era esquizofrenia. Eu não sou esquizofrênico. Mas por um momento da minha vida, achava que tinha dupla personalidade, porque era tão diverso um do outro. Hoje em dia, eu entendo que aquilo que faço no palco é um outro lado da minha personalidade, mas que faz parte de mim, não é destacado da minha pessoa. Não sou invadido, não sou ocupado por uma força, que me ocupa e me tira de mim, não. É tudo consciente. Sei cada passo que estou dando, sei de cada intenção que coloco. Então, é isso. Hoje entendo isso. É que lá libero uma outra parte do meu ser, que não tenho necessidade de viver com ele na minha vida particular.

Brasileiros – Ter tomado o remédio do Santo Daime ajudou a você se conhecer de fato?
N.M. –
Sim. O Daime é muito útil nesse sentido. As pessoas só pensam que aquilo é uma coisa religiosa. Pode ser que a organização seja, mas a bebida independe da organização religiosa do Santo Daime. O que ela (bebida) te oferece é o autoconhecimento. Isso é o que achei de mais interessante no Daime. É a bebida que te remete a você saber de você profundamente.

Brasileiros – Isso pode ser temeroso para muitas pessoas?
N.M. –
As pessoas têm medo de tudo, muito mais ainda de saber de si.

Brasileiros – Você, inclusive, com o Santo Daime reconheceu uma parte de você, que até então desconhecia. Se não me engano, você não se achava uma pessoa arrogante, não sei se era de fato arrogante ou se era outra característica…
N.M. –
Não foi isso. Acho que falei que eu desconhecia a minha humildade. Hoje me acho uma pessoa humilde, no melhor sentido da palavra humilde. É isso?

Brasileiros – Foi exatamente isso.
N.M –
Foi essa palavra?

Brasileiros – Sim.
N.M. –
É que o Daime… Quando estava lá dentro (participando das reuniões), passei a conhecer o sentido de humildade. Acho que você ser uma pessoa humilde não significa você viver rebaixada e nem com a bunda de fora, se rebaixando para ninguém, não é isso (diz com ênfase). É você respeitar as pessoas. Ter o entendimento de que você não é mais que ninguém. Isso para mim é o conceito que busco de humildade; ser exatamente igual a todas as pessoas. E ali, no meio dos trabalhos, uma vizinha me diz assim: “Mas é isso mesmo. Você tem certeza disso? Você sabe que a gente cria máscaras. Será que não é uma máscara que você está usando?”. Isso foi chegando a um ponto em que eu não tinha saída a não ser dizer assim: “Bom, se for preciso lamber o chão, me jogar no chão e lambê-lo, vou me jogar nele e fazer isso”. Não foi preciso chegar a isso.

Brasileiros – Aproveitando que se falou em máscaras, você usou máscaras no início de sua carreira no grupo Secos & Molhados para se proteger?
N.M. –
Sim. As máscaras eram para me proteger. Mas as máscaras das quais falei anteriormente eram emocionais…

Brasileiros – Sei. Mas elas te ajudaram naquele momento inicial da carreira…
N.M. –
No momento que fiz aquela máscara no rosto, adquiri superpoderes… Eu, que sempre fui uma pessoa tímida, inibida, regatada, não sei mais o quê, deixei de ser tudo isso. Não tinha rosto. Eu oferecia meu corpo, que era um corpo que não mostrava. Era incapaz de trocar de camisa na frente de alguém. Vivia com as mãos no bolso, porque tinha vergonha delas.

Brasileiros – É inacreditável que sua timidez chegasse a esse ponto…
N.M. –
É. Ninguém via meu pé.

Brasileiros – O uso da máscara tinha alguma relação com a tua preferência sexual. Com a pressão do teu pai, que não o aceitava como artista?
N.M. –
Não. Eu não sei… Acredito que não, porque essa questão é assim… Mas a máscara não era para me esconder do meu pai. Não, absolutamente não. É porque ouvia dizer que artista não tinha vida privada, que não podia andar na rua. Eu já tinha 31 anos (quando começou a carreira nos Secos & Molhados), como é que eu ia perder o direito de andar na rua?

Brasileiros – E fora dos palcos, na sua vida privada, você gosta de observar e nunca ser observado?
N.M. –
Sim. E sempre gostei da rua, sempre gostei de gente. Como ia perder isso, só porque virei cantor? Aí, achei um jeito de continuar andando na rua. E realmente no tempo dos Secos & Molhados ia a todo canto, e ninguém sabia quem eu era e ficava feliz com isso. A única vez que souberam quem era, foi por causa da minha… (olha para mim e pergunta “Como chama isso?”, apontando para uma das suas costeletas).

Brasileiros – Costeleta.
N.M. –
As minhas costeletas eram enroladas para trás. As colocava para trás, quando fazia a barba. Uma vez, estava no interior de São Paulo e um cara veio falar comigo. Eu disse: “Como é que você sabe?”. Ele respondeu: “Ninguém tem costeletas enroladas para trás que nem você tem” (risos).

Brasileiros – Ney, fiquei surpreso, ao fazer a pesquisa para esta entrevista, com a sua origem indígena. Você teve um bisavô índio de 104 anos. Agora fica mais claro a concepção indígena na tua persona artística. Mas de onde vem a concepção africana?
N.M. –
Mas tem africano em mim?

Brasileiros – Não saberia dizer, mas estou falando da concepção artística de alguns shows seus…
N.M. –
É, mas aí, meu filho, o Brasil tem uma influência africana que é inegável e inevitável. Você sabe que a primeira vez que fui a Buenos Aires, isso no auge da ditadura aqui e lá, li uma matéria a meu respeito, não me lembro dela inteira, mas vou te falar o que me chamou atenção. Dizia assim: “Só num país como o Brasil, com uma influência de índios e de negros, é que poderia haver uma manifestação artística como a do cantor Ney Matogrosso”. Isso me chamou muita atenção. E concordo com isso, quer dizer, não tinha essa noção quando fazia. Isso acontecia de forma intuitiva.

Brasileiros – Não era uma coisa pensada.
N.M. –
Não era pensada. Era intuitiva. Na verdade, queria ser uma imagem que não fosse nem masculina, nem feminina, mas que fosse masculina e feminina ao mesmo tempo. Que pudesse ser qualquer coisa, que cada pessoa pudesse me ver de um jeito.

Brasileiros – Isso faz lembrar a história de um show que você, antes de começar sua carreira, viu do Caetano Veloso, quando ele se apresentou todo vestido de rosa…
N.M. –
Só que no meu caso era mais explícito que do Caetano Veloso.

Brasileiros – Claro, mas essa visão do Caetano Veloso todo vestido de rosa lhe causou um grande impacto?
N.M. –
Sim, me impactou, porque naquele momento que eu vi Caetano Veloso vestido inteiramente rosa, homem nenhum usava rosa, nem numa dobradinha escondida da meia (mostra a sua própria meia).

Brasileiros – Estamos falando de um episódio que aconteceu no final da década de 1960?
N.M. –
Exatamente.

Brasileiros – Então, você pensou: “Se um dia fizer um trabalho artístico, gostaria que fosse desse jeito”…
N.M. –
Não. Eu pensei assim: “Se eu fosse artista, queria alguma coisa assim”. Eu não queria ser ele. Vi que aquilo provocou um impacto muito grande, não só pelo fato dele estar vestido de rosa.

Brasileiros – Que show foi esse?
N.M. –
Foi um show que ele fez patrocinado pela Rhodia. Era um desfile de moda que tinha Gilberto Gil, Rita Lee, entre outros.

Brasileiros – Onde foi esse show?
N.M. –
Foi em Brasília, que era mais careta ainda. Embora Brasília, por mais careta que a gente possa achar da cidade, nesse momento fosse… Nesse momento não, porque o Golpe Militar, destruiu tudo. Mas antes do Golpe, Brasília era 50 anos à frente, em todos os sentidos: na ciência, nas artes, na educação. Lá, você assistia a uma Orquestra de Nuremberg, não em um Teatro Municipal, que não tinha, mas no gramado da Universidade de Brasília (UnB). Era uma cidade pulsante.

Brasileiros – Mas sempre teve uma cena musical fértil…
N.M. –
Tinha, tanto é que foi lá que eu comecei. Foi lá que começou essa história. Eu fui da primeira leva. Cheguei a Brasília em 1961. E Brasília, não esqueça, foi inaugurada em 1960. Ter participado da primeira leva da manifestação artística da cidade, que saiu pelo Brasil afora, foi muito importante para a minha história.

Brasileiros – Para sair de casa, você se alistou na Aeronáutica e foi morar no Rio de Janeiro…
N.M. –
Exatamente. Fiquei dois anos lá, até 1961, quando fui para Brasília, porque tinha um primo, que era médico, trabalhava no Hospital de Brasília, que estava sendo inaugurado naquele ano. Havia muitas ofertas de trabalho no hospital. Eles laçavam a gente na rua (risos). Foi meu primeiro emprego fora a Aeronáutica.

Brasileiros – Você saiu de casa, porque existia uma necessidade de sair da pressão que teu pai fazia por não aceitá-lo como artista e, consequentemente, na visão dele, como homossexual. Você se lembra do primeiro encontro que vocês tiveram depois disso?
N.M. –
Eu tive contato com meu pai várias vezes, depois de sair de casa. Lembro da primeira vez que ele foi me visitar no Rio de Janeiro…

Brasileiros – Foi visitá-lo numa boa?
N.M. –
Numa boa. Apesar das ameaças que ele me fez, quando decidir sair de casa, que não ia me ajudar e tal. Eu disse: “Olha pai realmente não quero nada seu. Estou querendo viver minha vida, não quero nada e não vou pedir nada, quero apenas procurar meu caminho e ser feliz por isso”. E fui embora de Mato Grosso do Sul. E acho que pelo fato de eu ter feito isso, fez ele me respeitar.

Brasileiros – Uma decisão difícil para um jovem de 17 anos?
N.M. –
Sim. Naquela época ninguém, com 17 anos, saía de casa. Você saía de casa com 21 anos para casar, era a regra.

Brasileiros – Teu pai não aceitava nada que fosse artístico, porque a bem da verdade você nem queria ser ator e sim pintor…
N.M. –
Ele não aceitava filho artista de jeito nenhum. Era uma mentalidade militar que até hoje perdura. Conversa com qualquer artista, filho de militar, e existem vários. Nenhum pai militar queria um filho artista. Militar é militar, e arte não combina com o código deles. Meu pai achava assim: “Artista homem é veado e mulher é puta”. Essa era a visão. Ele dizia isso. Não é uma conclusão minha, ele dizia isso e pronto.

Brasileiros – Em um depoimento que vi de Chico Buarque, que tinha avô militar, ele lembra que certa vez o seu avô o recriminou porque viu uma foto dele ao lado de um negro. O avô chegou para ele e disse: “Como é que você anda com preto”.
N.M. –
Para você ver como era duro ser filho ou parente de militar.

Brasileiros – Você guardou mágoas do seu pai?
N.M. –
Olha, eu… (fica pensativo por uns segundos). Eu odiava ele, quando morava em casa. Era explícito, era claro…

Brasileiros – Como você manifestava esse ódio?
N.M. –
Eu o odiava, e ele me odiava. Ele saía de casa e eu dizia para a minha mãe: “Tomara que um caminhão mate esse desgraçado”. Agora, como eu não sentia culpa pelo meu ódio…

Brasileiros – Era justificável?
N.M. –
Era justificável e recíproco. Então, eu não tinha culpa. E como não tinha culpa por isso, do meu ódio por ele, tive a possibilidade de limpar essa coisa com ele, de resolver esse sentimento. Isso foi durante vários encontros que a gente foi tendo. Depois, ele foi me visitar em Brasília, e quando larguei tudo e fui viver como um hippie aqui em São Paulo. Ele chegou certa vez aqui e veio me oferecer um emprego, para ganhar bem. Eu disse: “Pai, você não está entendendo nada. Vivo pobre, desse jeito que o senhor está vendo, mas sou feliz. A felicidade não é você comer todo dia, não é ter roupa nova todo dia. Não é isso. Sou feliz e você tem de entender isso, tem de aceitar isso”.

Brasileiros – Ele aceitou?
N.M. –
Aceitou. E foi nessa conversa que falamos pela primeira vez de família, a respeito de sexualidade. Ele veio falar que pegou a minha irmã se esfregando com o namorado, minha irmã tinha 15 anos. Eu disse: “Mas você já conversou sobre sexo com ela?”. Ele retrucou: “Como é que vou falar isso com a sua irmã?”. E continuei: “E mãe, já conversou com ela?”. E me olhou espantado: “Sua mãe?! Como ela vai falar sobre isso?”. Eu olhei para num misto de incredulidade e revolta: “Se vocês não falarem sobre isso com ela, certamente ela irá descobrir fazendo. Então, é mais simples vocês tocarem no assunto, porque era vai descobrir de um jeito ou de outro. Eu descobri tudo sozinho na rua”.

Brasileiros – Não é à toa que você decidiu dirigir a peça Dentro da Noite, baseado em dois contos do jornalista e escritor João do Rio, o cronista das ruas, e que agora está em São Paulo. A rua sempre lhe atraiu?
N.M. –
A rua sempre me atraiu.

Brasileiros – Mas você disse que gosta mais da vida diurna, até porque você toma remédio para dormir cedo…
N.M. –
Sim, não sou da noite, apesar de gostar das ruas, que está muito relacionada à vida noturna.

Brasileiros – Nunca foi da noite?
N.M. –
Fui. Quer dizer, nunca fui da noite. Frequentei para saber. Ia a boate, mas nunca gostei. Não gostava dos ambientes enfumaçados. Se você foi a uma boate, sabe que era um inferno. Você saía de lá com a cueca fedendo a cigarro. A meia fedia a cigarro. Então, nunca gostei disso. Não gostava de ter que gritar para conversar. Nunca gostei, mas fui.

Brasileiros – Nem dos prazeres da noite?
N.M. –
Mas os prazeres da noite, você pode ter durante o dia (fala com malícia). Não são apenas restritos à noite.

Brasileiros – Você falou a pouco que conversou certa vez com seu pai sobre assuntos de sexualidade, quando falaram sobre o caso da sua irmã. Mas você chegou a revelar a sua homossexualidade para ele?
N.M. –
Não, nunca, porque não precisava. Ele sabia, demonstrava que sabia. Você sabe a única vez que ele tocou nesse assunto comigo?

Brasileiros – Não.
N.M. –
Foi quando ele percebeu que tinha movimentos de mulheres, além de homens, ao meu redor. Aí, ele ficou muito incomodado. Ele veio falar comigo: “Isso está errado”. Eu disse: “O que está errado, pai?”. “Você tem de se definir.” Olhei para ele e falei: “Eu não tenho que me definir nada pai”. Aquilo tinha chocado ele mais do que eu transar com homens, porque ele achava que isso era uma indefinição. Mas eu não via dessa maneira. Achava que estava no lucro. Não estava restrito a uma coisa ou a outra. Estava desfrutando de tudo que era possível. Esse era meu enfoque, perante isso que hoje em dia se chama bissexualidade ou não sei mais lá o quê. Nunca achei nada. Sou uma pessoa normal, que gostava de sexo e que gostava de praticar sexo com homens, com mulheres, com… Para mim, se pudesse, praticaria sexo com bananeira, eu praticaria. Eu dizia, na década de 1970, que queria que tivesse mais sexos para eu poder brincar mais. Mas nunca tive culpa por essa atitude libertária sobre a prática do sexo.

Brasileiros – E para melhorar mais ainda, não havia culpa religiosa?
N.M. –
De maneira nenhuma. Não tinha culpa religiosa, Deus me livre (risos).

Brasileiros – Depois que teu pai te aceitou como artista, ele passou a demonstrar afeto sobre sua carreira. Admirava você como artista. Ele chegou a te dizer isso?
N.M. –
Ele admirava, mas nunca me falou isso. Ele falava para minhas irmãs e elas contavam. Elas diziam que ele me achava um grande artista e que tinha muito orgulho de mim. Para mim não falava, mas sabia que ao contar para minhas irmãs, elas me diziam.

Brasileiros – Você é um artista que fala sobre tudo em suas entrevistas. Mas percebi, nas diversas entrevistas que li, que não gosta de falar sobre os motivos que levaram você a deixar o grupo Secos & Molhados. Ficou um assunto desgastado para você…
N.M. –
Muito desgastado.

Brasileiros – O problema do rompimento foi apenas financeiro?
N.M. –
Olha, o financeiro… Quando tem um problema financeiro, você descobre o caráter das pessoas, além do financeiro, não é? Então, é uma coisa assim: já estava fora antes de sair, já tinha avisado que não estava mais, já tinha avisado à gravadora que não ia continuar. E a gravadora me pediu que ficasse até lançar o segundo disco (a formação dos Secos & Molhados com Ney Matogrosso lançou dois discos). Eu disse: “Tá bom”. Não estava nem gravando o disco quando falei. Fiz esse aviso à gravadora quando voltamos do México e nosso empresário não era Moracy do Val, aí entendi tudo.

Brasileiros – Ficou difícil continuar na banda?
N.M. –
Ficou difícil porque eu via o que estava acontecendo e falava: “Estou vendo o que está acontecendo. Não pensem que sou ingênuo”. Eles pensavam que eu era ingênuo, mas não era, e aí deu no que deu.

Brasileiros – João Ricardo, fundador e principal compositor do grupo Secos & Molhados participou de um disco da tua carreira solo?
N.M. –
Uma vez, porque eu o convidei. Mas dali para frente nunca mais a gente se viu, nunca mais a gente se falou. Mas realmente fui eu que o convidei para tocar comigo.

Brasileiros – Você acompanhava, mesmo que a distância, a carreira dos Secos & Molhados? (O grupo, que trazia somente João Ricardo, da formação original, lançou disco em 1978. Esse disco lançaria o último hit de sucesso do grupo Que Fim Levaram Todas as Flores?, como uma espécie de frase-questionamento-testamento de um dos mais fecundos grupos musicais brasileiros. Em 1980, já com outra formação, João Ricardo lança o quarto disco dos Secos & Molhados. Em 1988, João Ricardo, encabeçando uma nova formação do grupo, lança o quinto disco A Volta do Gato Preto. Seria o último disco do grupo Secos & Molhados. Em 1999, sozinho, João Ricardo lança Teatro?, como a indagar se tudo que tinha acontecido foi apenas uma encenação da vida, com prazo de validade.)
N.M. –
Sim, claro que eu sabia, que prestava atenção neles, queria saber do que se tratava.

Brasileiros – Tem um trecho de uma música Eu Queria Ter Uma Bomba, do Cazuza, na época que ele era do grupo Barão Vermelho, que diz “Solidão a dois de dia, faz calor depois faz frio…”. Você nunca quis ter relacionamentos sérios, por ter medo de uma solidão a dois, de estar com alguém a teu lado e se sentir sozinho?
N.M. –
Olha, eu experimentei. Tive uma relação de 13 anos.

Brasileiros – Depois do relacionamento com o Cazuza?
N.M. –
Sim. No sétimo ano do relacionamento houve um rompimento. Ele mudou da minha casa, mas aí foi que ficou bom. Eu entendi que não é a minha viver casado com alguém, morando junto, eu não gosto.

Brasileiros – Você não tinha percebido isso nas outras relações que teve, do problema ser por viver com a pessoa no mesmo teto?
N.M. –
Tinha percebido, mas todo mundo falava que estava errado, que tinha de morar junto, para se considerar casado. Eu fui experimentar. Não podia falar que não queria, que não queria, que não queria, sem jamais ter experimentado. Concluir que não era a minha viver assim, com alguém dentro da mesma casa. Não gosto. Gosto assim: cada um morando no seu apartamento; eu em uma rua, a pessoa na outra. Perto, mas nunca na mesma casa.

Brasileiros – Solidão não te causa medo?
N.M. –
Não, não tenho solidão. Gosto de… Não sou uma pessoa solitária. Não vivo jogadinho no mundo, sem ninguém. Não sou assim. Tenho amigos, tenho minha vida. Agora, a minha vida, essa minha vida é particular e essa vida você jamais vai ver em uma revista.

Brasileiros – É engraçado você falar sobre isso. A cantora Marina disse em uma entrevista que teve um caso com Gal Costa, e a Gal tinha ficado decepcionada, inclusive ameaçando processar a Marina. Na época, você ao comentar o episódio disse: “Olha, não sei por que a Gal ficou chateada, já que todo mundo do meio sabia”. Como você disse anteriormente, não interessa a ninguém saber sobre seus relacionamentos, agora a Marina podia revelar na imprensa sobre o seu caso com a Gal. Por que a sua lógica não se aplica para a Gal, que se sentiu prejudicada e traída com a revelação da Marina?
N.M. –
Mas porque era público. Não era uma novidade aquilo. Quem morava no Rio de Janeiro sabia disso (risos).

Brasileiros – Mas somente as pessoas do meio sabiam…
N.M. –
Não, aquilo era público. Você não sabia dela (Marina) com a Gal e a Simone? Todo o Brasil sabia, elas saíam fotografadas (nesse momento pede para desligar o gravador). Elas eram fotografadas no carnaval juntas, em bailes gays.

Brasileiros – Eu falei isso, porque achei contraditório de sua parte. Para você não interessa a ninguém saber dos teus casos, mas a Marina podia revelar um caso íntimo com a Gal…
N.M. –
O que te digo é que ninguém sabe mim. No Rio de Janeiro ninguém sabe com quem estou vivendo, porque não é para saber mesmo. Não interessa que saibam. Eu também não fico no avião beijando ninguém, não fico na rua de mãozinhas dadas, me agarrando com ninguém. Não vão ver isso da minha parte, porque não gosto disso.

Brasileiros – Você inclusive não gosta de Movimentos Gays, da Parada Gay, de boate gay, de lugares onde só tem homossexuais…
N.M. –
Não, não e não. Então, vamos esclarecer essa história de Movimentos Gays. Na Parada Gay, de São Paulo são três milhões de pessoas, três milhões que podem decidir uma eleição. Se fosse levado um pouquinho mais a sério, provavelmente eu me aproximasse. Agora essa história só para ficar em cima de carro, dando pinta, isso não me interessa.

Brasileiros – Como não te interessa ir para uma boate frequentada apenas por gays homens?
N.M. –
Lugares Gays? Acho chata essa coisa específica. Gosto de boate onde tem gay, onde não tem gay, tem hétero, lésbicas, tem todo mundo misturado. Acho que a revolução é isso: a revolução é todos conviverem em harmonia, independentemente da sua preferência sexual. Agora, você sair em cima de um carro de som, de tapa sexo, isso não farei nunca.

Brasileiros – Mas isso no palco é permitido?
N.M. –
No palco é permitido, na rua não.

Brasileiros – Então, jamais encontraremos o Ney em uma sauna gay?
N.M –
Já fui.

Brasileiros – Já foi?
N.M. –
Já fui, sim, e não gostei. Não gosto, como eu havia lhe falado antes desses lugares exclusivamente de gays homens. Quer dizer, fui para entender que não me atraía. Ficava na sauna assim; duas, três horas. Entrava no vapor, saía do vapor, e entrava novamente. Andava dentro da sauna. Via tudo que estava acontecendo, mas aquilo não me atraía mesmo, não tinha vontade de participar daquilo, você acredita?

Brasileiros – Acredito. E isso, sem nenhum pudor com o corpo?
N.M. –
Isso, peladinho para lá e para cá (risos). Mas não fazia nada, porque não me interessa. Não me excita. Excita-me, isso sim, estar em um lugar com várias pessoas e de repente bater um olho em uma pessoa, que não estou esperando, e aquela pessoa ser interessante e me corresponder de alguma maneira, no meio de uma multidão de pessoas variadas.

Brasileiros – Quando o filme Cazuza – O Tempo Não Para, de Sandra Werneck e Walter Carvalho foi lançado, em 2005, você deu algumas entrevistas acusando o filme de ter inverdades, porque não mostrava a sua convivência e importância na vida do Cazuza…
N.M. –
Não na vida do Cazuza, não acho que tive importância, mas na carreira do Barão Vermelho sim, porque o grupo não tocava em rádio, até eu gravar a música deles Pro Dia Nascer Feliz. Esse é meu único questionamento sobre o filme. Da nossa relação, não. Não havia necessidade, mas da coisa profissional era um dado importante dentro da trajetória do Barão Vermelho, sim. E por que tirar isso? Aí, ficam tentando me jogar contra Lucinha (mãe do Cazuza e que escreveu um livro contando de sua relação com o filho famoso), que foi ela. Eu disse na época: “Ela escreveu o livro dela e falou de mim nele”.

Brasileiros – Foi o problema do roteiro do filme…
N.M. –
Pois é, pois é. Sabe o que a diretora me disse que eu era tão importante que não cabia em duas entradas do filme. Eu disse: “Então, tá bom, o que é que você quer que eu diga? (fala de forma irônica)”.

Brasileiros – Aceitou essa justificativa na época?
N.M. –
Disse: “Então, tá bom”. Ia dizer o quê?

Brasileiros – Quer dizer que nunca teremos uma cinebiografia sobre o Ney Matogrosso, pelo menos você vivo, como já revelou. Mas permitiu fazerem um documentário sobre você, que é Olho Nu, dirigido por Joel Pizzini (o filme deve estrear no final do ano)…
N.M. –
É sobre a minha carreira.

Brasileiros – Li que falará sobre sua infância também…
N.M. –
Não, que dizer, eu fui gravar na casa em que nasci, fui gravar na fazendo do meu avô. Mas isso é tudo liberdade poética. Isso não significa que vai… Não é cronológico, não é isso. São liberdades, aberturas.

Brasileiros – Por isso você quer que o filme comece com uma cena de vocês dos Secos & Molhados?
N.M. –
É o que eu acho.

Brasileiros – Chegou a ver trechos do filme?
N.M. –
Já vi um primeiro esboço. Eles agora me chamaram para ver uma coisa já mais organizada. Quando eu voltar (para o Rio de Janeiro) vou ver.

Brasileiros – Você disse se considera um sobrevivente. Passou pela ditadura, pela mortandade da AIDS no início dos anos 1980, pelas mudanças no cenário musical, de viver em um País sem memória cultural, e de tantas outras perdas. A que você atribui essa sobrevivência?
N.M. –
Talvez… A questão da ditadura eu te juro que ignorava mesmo toda aquela gente. Era como eu não vivesse aquela ditadura. Ignorava os militares. Enquanto mais recadinhos eles me mandavam, mas loucuras eu fazia. Eu os ignorava (diz em tom de raiva). Agora nunca me interessei por política partidária, que era o grande problema deles. Como não era envolvido com política (diz batendo nas mãos), ignorava aquilo tudo. Atravessei não sei como, porque eles tinham o poder de me fazer desaparecer, não é? Mas não fizeram. E a AIDS também não tem explicação, porque estava exposto, assim como todos estavam. Não existia camisinha. Camisinha, olhe lá. Esporadicamente alguém usava para não fazer filhos, só. Não existia essa história de camisinha, não existia doença. Existiam doenças tratáveis e não era essa doença. Não existia isso, todo mundo transava normalmente sem camisinha. Camisinha não fazia parte do contexto.

Brasileiros – Passou a fazer parte automaticamente, depois que você soube que não tinha contraído o vírus da AIDS?
N.M. –
Sim, à medida que eu fiz o primeiro teste e que tinha dado negativo, porque tinha certeza que estava contaminado. Falei na ocasião: “Bom, não vou me ariscar”. Embora ninguém me explique por que escapei.

Brasileiros – Antes de protagonizar Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha, dirigido por Ícaro Martins e Helena Ignez, que deve estrear nos cinemas no segundo semestre, você já havia trabalhado em alguns filmes; como Sonho de Valsa, de Ana Carolina, e alguns curtas-metragens. Mas você não se sentia ainda testado como ator. Depois desse filme, você se acha agora um ator?
N.M. –
Sou ator.

Brasileiros – Sim, mas você se achava ainda insatisfeito como ator, se sentia inseguro…
N.M. –
Não. O único que fiquei inseguro foi o da Ana Carolina. No filme de Joel, Caramujo-Flor já me sentia seguro, assim como no outro curta Depois de Tudo, de Rafael Saar. E agora com esse filme de Ícaro e Helena estou totalmente seguro. Você viu o filme?

Brasileiros – Vi trechos, pois não deu para vê-lo, quando passou dentro da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em outubro do ano passado.
N.M. –
Não estou passando vergonha. Então, tenho certeza de que eu posso, posso, posso, fazer mais trabalhos como ator.

Brasileiros – Você é muito teatral em seus shows, isso muito fruto da tua vontade e das tuas primeiras experiências como ator de teatro amador, no início da tua carreira. Sendo assim, esse recurso que você utiliza nos shows, agradando ao público e à crítica, não funciona no cinema, que exige uma interpretação mais próxima da naturalidade…
N.M. –
Concordo. Dentro da minha mentalidade de ator… Se sou ator, que me considero… Na verdade, queria ser ator lá atrás, como mesmo você lembrou. Cheguei a exercitar, mas não fiquei conhecido por isso. Mas sei que o cinema é o extremo aposto do palco. O ator no palco deve chegar até a última fila, o cinema não. O cinema é aqui (mostrando o rosto, os olhos). Com o Bandido, do filme Luz nas Trevas, fiz o meu melhor resultado, já que é um personagem completo. Eu tive a naturalidade e a contenção que o papel exigia. E repito, não estou passando vergonha (risos).

Brasileiros – Para encerrar, você vai entrar agora em estúdio para gravar um CD com músicas inéditas…
N.M. –
Não será esse ano. Para, chega. Muitas coisas vão acontecer; o filme vai rolar, assim como o documentário, tem a estreia da peça Dentro da Noite, em São Paulo, e que depois seguirá para outras capitais do Brasil.

O grande Cauby

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