No “Fora Cunha”, mulheres lançam plataforma dos direitos universais

Foto: Rovena Rosa - Agência Brasil
Foto: Rovena Rosa – Agência Brasil

Em reportagem histórica sobre a queda da ditadura franquista, Clóvis Rossi observou que nos cinemas da Gran Vía, a principal avenida de Madri, os cartazes de mulheres nuas aumentavam na medida em que relaxava a censura imposta pelo Estado. A imagem diz muito sobre o moralismo hipócrita sustentado pelos regimes totalitários, mas também sobre a situação de indigência política a que foi relegada a mulher nos anos subsequentes à abertura política.

Diferentemente do que ocorrera nas revoluções de 1968, quando as mulheres tomaram as ruas de Paris, queimaram os sutiãs, ostentaram minissaias e fizeram de seus corpos e da sexualidade uma expressão político-libertadora, fato que reverberou nos movimentos de contracultura por todo o Ocidente, havia algo de obsceno na superexposição do corpo da mulher no avançar dos anos 1980. Projetaram-se tantos holofotes sobre a nudez feminina que seu corpo se desmaterializou. O nu se tornou uma mercadoria. Um grande negócio que alimenta a indústria midiática até a atualidade.

A invisibilidade da mulher teve desdobramentos perversos no âmbito das relações cotidianas e de sua representação na esfera pública. Em pesquisa divulgada pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública, relativo a 2014, constatou-se que 90,2% das mulheres brasileiras temem ser agredidas sexualmente. Dado curioso, 67,1% dos homens alegam viver sob a mesma onda de medo! Registraram-se 47.646 estupros no mesmo ano. Estima-se que essa cifra corresponda a apenas 10% das ocorrências. A essa anomalia social é preciso somar os casos de violência doméstica e outro, não menos preocupante, que diz respeito às mulheres vitimadas pela prática de intervenções cirúrgicas, com fins estéticos, realizadas por profissionais de índole e de formação duvidosas e em condições hospitalares subumanas.

É evidente que as violências praticadas contra a mulher não têm relação direta com a mercantilização de sua imagem, o que seria tomar a parte pelo todo. Ou seja, reduzir a um problema de exposição midiática toda uma cultura machista já bem cristalizada e uma indústria da beleza igualmente consolidada.

Todavia, deve-se ponderar que as estatísticas frequentemente estampadas nos jornais confirmam o grau de fragilidade da mulher muito mais por suas lacunas do que pelas cifras que apresentam. É que, para além da quantificação dos crimes, existe a vontade política de denunciá-los e, claro, de extingui-los. No Brasil, a Lei no 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, aprovada por unanimidade pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tornou-se um marco na luta contra a violência feminina. A lei teve consequências profundas, na medida em que a violência doméstica deixou de ser tratada como caso de polícia para ser enfrentada como um problema do Estado brasileiro, o que conduziu ao acionamento de uma série de dispositivos legais, políticos e assistenciais contra o “feminicídio”.

A reinvenção da Marianne, símbolo máximo dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, apresenta-se hoje de forma organizada e comprometida com os problemas nacionais. É claro que a pauta feminina não desapareceu. Pelo contrário, debate-se hoje abertamente a questão do abuso sexual, da violência doméstica, do direito ao aborto, da equiparação dos salários e das cotas de participação das mulheres no mercado de trabalho e na política (leia-se, no Legislativo). Existe, todavia, a compreensão de que esses problemas não são isolados. De que, na verdade, é impossível superá-los, com justeza, sem o enfrentamento direto de questões estruturais, a saber, o conflito interclassista e o preconceito racial. As manifestações das mulheres contra os abusos de poder e em nome da apuração dos escândalos que assolam a imagem do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, demonstraram, com eloquência, sua presença forte na arena política. A pauta é abrangente e tudo indica que os coletivos feministas vêm pouco a pouco ocupando vazios outrora deixados pelos movimentos estudantis partidarizados, entre secundaristas e universitárias.

Mas a principal vitória não é numérica. É histórica. Não nos surpreende, portanto, que todas essas conquistas sejam tão recentes. A própria figura de uma presidente que destoa por seu passado político, se comparada, por exemplo, a Cristina Kirchner e Angela Merkel, reforça essa ideia. Dilma Rousseff é ex-guerrilheira que conheceu de perto a truculência da polícia. Sua presença faz coro com outras ativistas que renasceram como fênix no movimento pela redemocratização do País e atuam, fortes e altaneiras, em diferentes setores sociais.

Outrossim, a presença da mulher na política – nas ruas, nos palanques e nas tribunas – aponta para a convergência de uma pauta internacionalista. Nesse sentido, como não se mirar no exemplo de Malala, essa jovem que aprendeu cedo que a liberdade se conquista pela via da educação e da força? A presença da mulher na política olha para o futuro, derruba tabus do presente e não esquece as figuras do passado. Ela honra aquelas guerreiras que, sob a divisa “Abaixo a fome! Pão para os trabalhadores!”, enfrentaram a fúria das tropas czaristas na Rússia de 1917. As mulheres operárias que deram a vida na luta por relações dignas e justas no mundo do trabalho. A mulher de hoje é Betty Friedan, é Frida Kahlo, é Simone de Beauvoir – censurada, no Brasil, em pleno século 21! –, é Carolina Maria de Jesus, é Madre Teresa de Calcutá, é Guiomar Silva Lopes… Ela é a própria Utopia. Ela representa aquelas mulheres que queimaram os sutiãs, mas que não se iludiram com a supervalorização de sua nudez nos grandes cartazes de cinema. É também a dona de casa na lida diária. Ela é a presença anônima e bela que recusa rótulos e piadas de mal gosto.

Como a grande Marianne que caminha de peito aberto desfraldando sua bandeira, a mulher brasileira em uníssono desfralda seu grito libertador. Ela é Pagu e, com ela, pode dizer: “Tenho várias cicatrizes, mas estou viva. Abram a janela. Desabotoem minha blusa. Eu quero respirar”.

*Marisa Midori Deaecto é historiadora, professora da Escola de Comunicações da USP


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