O amplo sentido da arquitetura

Paulo Mendes da Rocha na janela de seu escritório, no centro de São Paulo. Foto: Luiza Sigulem
Paulo Mendes da Rocha na janela de seu escritório, no centro de São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

Do mais importante arquiteto brasileiro vivo, vencedor de todos os principais prêmios da arquitetura mundial – Mies van der Rohe (2001), Pritzker (2006) e agora Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza (2016) –, se poderia imaginar que possuísse um enorme escritório, possivelmente em uma área nobre da cidade, com muitos funcionários e computadores de última geração. Não é o caso. No centro de São Paulo, em uma área mais conhecida por seus botecos, boates e hotéis baratos, Paulo Mendes da Rocha, aos 87 anos, trabalha apenas com uma secretária, um computador, uma grande mesa, maquetes e estantes de livros. Para desenvolver seus projetos, o arquiteto se associa a outros escritórios, em geral formados por discípulos e ex-alunos.

O que ele valoriza na região do escritório, que sedia também uma faculdade de arquitetura e o Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), é justamente a vida urbana e o convívio entre pessoas, isso que faz das grandes cidades o “laboratório do homem”. Exatamente as características que, segundo ele, faltam à Brasília, uma “não cidade”, construída para tirar a capital do Rio de Janeiro: “Você não pode construir no meio do mato uma capital. Falta o Copacabana Palace, falta a avenida Rio Branco, falta a Escola de Samba de Mangueira. Quer dizer, você não pode chegar na Itália e dizer que Roma não é mais a capital. Aí escolhe um lugar para construir outra cidade e coloca todos os políticos juntos”.

Em longa entrevista à Brasileiros – sentado à sua mesa poucos dias após receber o prêmio em Veneza –, Paulo Mendes da Rocha não critica apenas Brasília. Capixaba sediado em São Paulo e grande nome, junto a Vilanova Artigas (1915-1985), da chamada Escola Paulista de Arquitetura, ele fala de questões referentes às cidades, natureza, educação, política e arte. Mostra que um verdadeiro arquiteto deve ser, mais do que um especialista em uma área específica, um pensador das sociedades e da condição humana. É preciso “encarar o fato de o planeta ser um pequeno calhau desamparado girando no universo, e pela primeira vez o homem não pode negar isso”.

A constatação, apesar do que parece, não faz de Paulo Mendes um pessimista nem um saudosista: “Para mim, o mundo é sempre novo”. E, se o mundo é feito de problemas, pensar que devemos saber formulá-los e resolvê-los é, na verdade, estimulante. “Eu não sei o que foi e o que será. Só sei que não tenho medo das coisas, muito menos do presente, porque ele é tudo o que temos.” Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.

Pinacoteca do Estado de São Paulo. Foto: Nelson Kon
Pinacoteca do Estado de São Paulo – Projeto de 1998 para a restauração do edifício paulistano. Foto: Nelson Kon

Brasileiros – Como o senhor acaba de receber o Leão de Ouro da Bienal de Arquitetura de Veneza, acho que podemos começar falando de algumas questões colocadas pela curadoria da Bienal deste ano, que tem como eixo apresentar projetos engajados na resolução de problemas urbanos e sociais em vários cantos do mundo, especialmente em comunidades carentes. Quer dizer, projetos que lidam com a questão da moradia, da degradação das grandes cidades, do meio ambiente… Eu gostaria de saber como vê essa proposta curatorial e se concorda que esse é hoje o grande debate a ser feito na arquitetura, sobre as responsabilidades política e social que cabem a ela.
Paulo Mendes da Rocha – Acho que é o mais vivo debate que se pode imaginar para a arquitetura em qualquer época, na essência. É a questão da condição humana mesmo, não uma visão idealista da arquitetura como coisa em si. Nós estamos aqui, em qualquer das nossas atividades, para resolver problemas. O que há são sempre problemas, pois é muito difícil ser qualquer ente vivo na natureza. Você vê o que as espécies tiveram que inventar, desde uma libélula até uma girafa, o negócio é muito complicado. Visto por esse lado, as coisas ficam até certo ponto estimulantes, porque temos que resolver problemas. Ou, para que isso se configure, precisamos saber formular os nossos problemas. Nessa Bienal, particularmente, achei muito inteligente a posição do curador (o chileno Alejandro Aravena), principalmente sendo ele um latino-americano e estando em Veneza, cidade que tem toda essa história de navegação. Então tem essa coisa de trazer notícias, dos navegantes.

O senhor se refere ao título da Bienal, Reporting from the Front, ou notícias do front…
Sim. E, para nós, as notícias da América. E a graça da América, fundamental, é que ela não existe, foi toda inventada. Os países da América, inclusive, são consequências de divisões geográficas estapafurdiamente organizadas. E hoje essa questão, uma visão crítica da política colonial, tornou-se mundial. Não é mais uma questão só dos países que foram colonizados, mas também dos colonizadores. Olha o que está acontecendo na Europa: o que a Espanha faz agora com o seu pessoal do Marrocos? A França com a Argélia? A Holanda com Sumatra, Bornéu? O mundo está se confrontando com isso. Então temos uma notícia do Brasil. E a notícia é a necessidade de nos unirmos no continente. Se você imaginar os projetos que devemos fazer para enfrentar essa tolice da partição que foi feita, temos a navegação dos rios que saem de um país e passam em outro, uma ligação entre Atlântico e Pacífico que nunca foi feita, ferrovias que liguem portos de um lado ao outro. Isso significa que temos de nos unir para projetar uma América comum. Esses problemas, para além de sua materialidade primeira, na verdade envolvem a construção da paz na América Latina, porque são projetos que devemos fazer em parceria. Ou seja, do ponto de vista da gestão espacial do planeta, para torná-lo habitável, é um instrumento de construção da paz.

Faz mais sentido pensar em termos de América Latina do que em Brasil, em um Estado nacional?
Claro! Como pensar o País de modo isolado se toda a bacia hidrográfica amazônica começa lá em cima, nos Andes, e toda a bacia Paraná-Uruguai deságua no rio da Prata e atravessa Paraguai e Uruguai? Ou seja, estamos encarando, acho que pela primeira vez de forma clara, a população do planeta. Então existe uma novidade: encarar o fato de o planeta ser um pequeno calhau desamparado girando no universo, e pela primeira vez o homem não pode negar isso. Nunca foi tão veloz a revelação das evidências da fenomenologia da natureza.

Quando falou que o que há são problemas, mas que isso é estimulante, lembrei da frase de Frank Lloyd Wright, de que as dificuldades são os grandes amigos dos arquitetos.
Faz todo sentido. Aquilo que faz uma pedra cair, que é a força da gravidade, é o que mantém uma catedral gótica em pé, desde que com a geometria adequada. E aí você faz aparecer o homem e a engenharia.

Pensar a arquitetura na linha da resolução de problemas, no seu lado mais funcional, de algum modo a distancia do seu viés artístico? Ou uma coisa não exclui a outra?
Você não pode resolver problemas, no âmbito da arquitetura como forma de conhecimento, do ponto de vista puramente funcional. Aí você no máximo cria máquinas. Justamente a graça da arquitetura é manter o discurso vivo de que, diante da urgência para fazer algo, já se faz também com altos ideais da visão que temos de nós mesmos. É o que os linguistas chamam de a concomitância do surgimento de necessidades e desejos. Você transforma a estrita necessidade, ao mesmo tempo, em desejo. Ou seja, você resolve um problema do ponto de vista prático, quase mecânico, dando uma expressão de que aquilo ainda poderá ser mais bem resolvido no futuro.

Nesse sentido, o senhor considera que a arquitetura é arte?
Hoje em dia vejo a expressão arte como um tanto reducionista. Não pode ser só arte, e eis aí a graça da arquitetura, que você não sabe bem se é arte, ciência ou técnica. Ou seja, tem que ser tudo isso ao mesmo tempo. É um discurso sobre o conhecimento. A impressão que tenho é que tudo que o homem faz tem uma dimensão artística. A nossa existência exige uma posição daquilo que chamamos de arte, ou de atitude artística. Na fala, no gesto, na expressão, na preocupação com o outro… No fundo, no fundo, arte significa preocupação com o outro. Isso me lembra uma imagem, o quadro Guernica, de Picasso, aquela tela extraordinária. Pouca gente lembra o que há nela, pintado no alto: uma lâmpada elétrica. Ou seja, ele que pintou crianças desventradas, casas pegando fogo, animais aos berros, dilacerados pela bomba, mostrou que a infâmia também consistia em destruir a luz elétrica. A nossa existência depende disso. Você já imaginou o que seria para uma mãe aflita, numa caverna, ter uma criança chorando sem ter luz elétrica? Portanto, a infâmia nazista, da guerra, entre outras coisas, está em destruir o próprio engenho humano, não só a vida natural. Essa revelação de consciência no quadro Guernica, por exemplo, revela justamente que essa dimensão artística consegue exprimir o nosso pensamento de modos nunca vistos antes. Uma revelação de consciência do que há entre arte, ciência e técnica, entre imagem e palavra, entre som e imagem. E assim também é na arquitetura: se você tem de repetir quarto, sala, cozinha e banheiro, como ultrapassar essas situações que podem parecer limitadoras?

Respondendo com essa dimensão artística?
Sim, mas eu acho cada vez mais que não é possível enquadrar esses campos do conhecimento humano. Acho que essas divisões do conhecimento em esferas, como física, matemática, filosofia, cada vez mais parecem não ser verdadeiras, são mais instrumentos de trabalho. É impossível para um matemático que se preocupa com estatística de lógica e repetição de fenômenos não ser também filósofo e não ser também artista.

Física, matemática… E o mesmo podemos dizer da arquitetura, não é?
Há também quem trabalhe a arquitetura como uma disciplina fechada. O que é uma tolice…

Sim, em uma entrevista o senhor disse justamente que a arquitetura não é um campo de especialização profissional, mas uma forma de mobilizar conhecimento. É por aí?
Sim, se você pensar que a arquitetura tem que saber de tudo. Precisa se preocupar com a condição humana, portanto com linguística, filosofia; tem de saber construir, portanto com geometria, matemática, estabilidade. É impossível ser sábio em todas essas áreas… Então, para atingir níveis de excelência, ela tem que ultrapassar tudo isso sendo uma forma peculiar de conhecimento. Por isso se diz muito na FAU (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP), para os alunos, que é impossível ensinar arquitetura, mas é possível educar um arquiteto.

museu dos coches Inaugurado em Lisboa no ano passado, foi projetado junto aos escritórios MMBB (Brasil) e Bak Gordon (Portugal). Foto: Bosc D'Anjou/Flickr
Museu dos Coches – Inaugurado em Lisboa no ano passado, foi projetado junto aos escritórios MMBB (Brasil) e Bak Gordon (Portugal). Foto: Bosc D’Anjou/Flickr

Mas concorda que por vezes a arquitetura se fecha muito “no seu mundinho”, digamos assim?
Há um mercado de uma pretensa arquitetura, espalhafatosa, espaventosa, que, como qualquer embalagem, o mercado produz, com um valor fictício, capaz de ser promulgado como valor. A arquitetura como mercadoria é um erro. A arquitetura não é mercadoria, ela é sempre fruto de necessidades.

Uma vez, comentando a frase do Niemeyer, que disse que a vida é maior que a arquitetura, o senhor respondeu que concordava, mas que para realizar essa vida seria necessário um tanto de arquitetura. O que quis dizer?
A frase dele é muito bonita e verdadeira, mas a vida é feita de arquiteturas, não é? Acho muito bonito usar essa expressão popular “arquitetar”. As pessoas dizem: o que você está arquitetando? E isso é: estar dando forma a uma ideia, a uma vontade, a um desejo. Nós estamos condenados a transformar ideia em coisa, porque senão ninguém conhece a sua ideia. Se você escreve letras em um papel, eis o poema transformado em coisa. Quando estava só na cabeça do poeta, não era nada.

E esse poema seria um exemplo dessa arquitetura necessária na vida?
Claro, arquitetura é coisificar ideias.

O senhor sempre diz que o habitat dos homens é a cidade, não a natureza. Ideologias que criticam as cidades, que falam de reaproximar o homem da natureza não fazem sentido para o senhor?
Ué, pode fazer: experimente e morra na floresta! Na verdade, a ideia de cidade não é de amparo físico, no sentido de proteger do vento e da chuva. É a de um lugar onde você possa conversar. A cidade é o laboratório do homem. Ele precisa estar junto. E para viver junto é preciso transporte público, é preciso a escola das crianças, etc. Isso não quer dizer que a cidade de São Paulo, com 20 milhões de habitantes, fruto da decadência advinda de uma política colonialista, seja a cidade ideal. Isso é fruto de um atraso do Brasil, onde só em São Paulo havia trabalho, e todos vinham para cá. É um desastre. Ninguém sabe o tamanho da cidade ideal, mas me parece que é algo mais perto de um ou dois milhões de habitantes. E estou pensando inclusive na dimensão de áreas destruídas para construir as cidades, nas relações com reservatórios de água, etc. Veja a questão dos lençóis freáticos, por exemplo. Em São Paulo se bloqueou uma espacialidade dos subsolos e se fez um represamento das águas que é terrível. E com isso você destrói uma reserva. E essa contradição precisa ser enfrentada: se nós temos necessidade, para viver, da transformação da natureza em cidade, essas cidades têm que ser planejadas de acordo com esses desejos, que parecem razoáveis, de ligações entre mares, de navegação dos rios, etc. Muitos países se preocuparam com isso, nós não. Então nosso atraso já se configura como degenerescência diante do conhecimento.

Não é o homem contra a natureza, é o homem caminhando junto a ela?
Nós estamos aqui experimentando, não temos como saber antes, a priori. Hoje já fica claro que o planeta não resiste a uma superpopulação, e a grande revolução que estamos vivendo é oriunda dessa consciência e do controle da fecundidade humana, que mudou completamente as relações do masculino e feminino. Essa é a grande transformação na natureza. Porque existe essa tendência de pensar que falar em natureza é falar no verde. Não, natureza é, inclusive, a condição masculina e feminina do ser humano, e nunca se enfrentou isso com tanta evidência quanto diante da questão da impossibilidade de uma superpopulação no planeta. Nós não somos nada. Sempre temos que imaginar o que seremos. E quando você indaga isso, eis a dimensão política da nossa existência. O que seremos se pudermos tomar decisões sobre os nossos rumos? É evitar o desastre. No fundo é isso.

O senhor falou isso do “verde”. Existe o discurso de uma arquitetura sustentável, ou de uma arquitetura verde, que está muito em voga. Como vê essa questão?
É mais um modismo desses que se tornam mercadoria. O que é menos desejável é você fazer uma plantação que trepe pela fachada do prédio. Não faz sentido, só serve para encobrir o desastre que é a destruição da Floresta Amazônica, por exemplo. Você destrói a Amazônia para criar boi e planta uma trepadeira na fachada do prédio. Isso aí é uma visão jesuítica já bem conhecida: é o espelhinho que engana o índio. Estão vendendo essa tolice.

E existe esse uso batido da palavra sustentável, que já não se sabe bem o que significa. Não é claro que toda arquitetura deveria ser sustentável?
Ela deve, antes de mais nada, sustentar a si mesma, senão cai.

E o que pensar desses milhares de prédios e casas cheios de muros e cercas, que têm academias, piscinas e tudo para a pessoa não precisar sair para a rua. Isso é a negação da cidade, da urbanidade?
É a negação, porque a cidade é um espaço democrático. Você pode dormir na calçada, mas não em um condomínio fechado, onde você nem entra. Fica patente a negação da dimensão democrática da cidade, de sua dimensão discursiva. Porque a cidade é o lugar onde você encontra e fala.

Ao mesmo tempo, parece estar crescendo um tipo de uso mais democrático dos espaços públicos urbanos, por meio de atividades culturais, manifestações, ocupações e uso de transportes alternativos, por exemplo. O senhor concorda? Quer dizer, percebe uma crescente tomada de consciência da cidade enquanto espaço público?
Acho que sim, como já se viu em outros momentos de crise, quando fica explícita a agudeza dos problemas. E nesses momentos a cidade se transforma para dizer justamente o que ela pretende ser. Quando se ocupam espaços, quando a rua assume um caráter de assembleia, é também uma visão arquitetônica da transformação. Porque nem sempre arquitetura exige que se construa algo. Ela pode ser realizada com as atitudes humanas simplesmente.

E pensando nisso, mais propriamente na construção de casas, o senhor já disse que o morador passa, a casa fica. Ou seja, projetar uma casa não é ceder a todas as demandas e exigências de um cliente, mas saber que ela é parte de uma cidade?
Você diz que está construindo uma casa – quarto, sala, cozinha e banheiro – como pretexto. Na verdade você está construindo a cidade. Então eu sou um traidor dos meus clientes (risos). É muito difícil você usar o planeta para construir a casa de um só. Aí só serve a ele.

casa butantã Residência que o arquiteto projetou para si mesmo em 1964, no bairro paulistano, que teve a obra concluída em 1966. Foto: Annett Espiro
Casa Butantã – Residência que o arquiteto projetou para si mesmo em 1964, no bairro paulistano, que teve a obra concluída em 1966. Foto: Annett Espiro

E a ideia de casa popular, ou habitação popular?
Não existe habitação popular. A expressão casa popular, hoje, é a aplicação de uma ideia de modo estúpido. Como fazer uma casa popular? Não vai ter água encanada? Essa água não vai ser potável? Não vai ter eletricidade? Telefone? E o esgoto, não vai ter? Portanto, em que medida ela é popular se não existe esgoto popular, se não existe kilowatt popular? Você vai construir uma casa ruim?

Falando em cidades, e agora em uma cidade mais específica, o senhor afirmou recentemente que Brasília foi um tropeço histórico. O que quis dizer?
Na minha opinião, construir na América uma nova capital é uma estupidez em qualquer situação, em qualquer país. Porque não existe horizonte ou programa estimulante o suficiente para se desenhar uma cidade na ideia de capital, de centro administrativo. É uma forma de fazer uma não cidade.

E é isso que Brasília virou, uma não cidade?
Não é que virou, a ideia já é. Você não pode construir no meio do mato uma capital. Falta o Copacabana Palace, falta a avenida Rio Branco, falta a Escola de Samba de Mangueira. Quer dizer, você não pode chegar na Itália e dizer que Roma não é mais a capital. Aí escolhe um lugar para construir outra cidade e coloca todos os políticos juntos…

Talvez fosse do interesse desses políticos se isolar do restante do país, do povo…
Talvez inconscientemente eles soubessem que isso iria abrir porteiras para o que está acontecendo agora. Nada melhor para o ladrão do que se esconder.

E isso tem a ver com a arquitetura de Brasília?
Nada a ver com a arquitetura do Niemeyer, que é muito inventiva. A questão é que você não pode desmantelar uma cidade como o Rio dizendo: agora você não é mais uma capital. O assunto está aí na nossa cara para vermos: o que é você sair do Senado, na posição de senador, e não ter para onde ir, a não ser voltar para o bar do Senado? Não é uma cidade. O centro administrativo de um país se organiza pouco a pouco em uma de suas cidades, não o contrário. Não pode haver esse pretexto de que para se administrar um país é preciso fazer uma capital. Isso não faz sentido. Fica faltando a importância do lugar. Aquele conversar, que faz uma cidade, já existia antes, e lá deveria ficar a capital.

Para além do fato do deslocamento da capital, Brasília representou o sonho de um Brasil moderno, o ideal de um homem novo, de liberdade.
A propaganda realmente foi feita em torno disso.

E aí a gente assiste hoje àquela lastimável votação no Congresso, que seria a casa do povo, onde predomina o oposto daqueles ideais…
Eu não quero comentar nada disso, porque vai além da minha capacidade. A coisa já foi longe demais.

Bom, responda só se quiser… Mas, na sua visão, há um golpe em curso?
Pensando na língua, no valor das palavras, golpe tem um valor político de contraposição violenta, rapidamente estabelecida. E eu estou vendo, muito mais, um lento apodrecimento. A mesma coisa, tomando forma de podridão, bolor, apodrecendo aos poucos. Difícil que isso não tivesse acontecido diante, por exemplo, do que estávamos falando, da tolice de se fazer uma Brasília. Você vê que essa movimentação demagógica de fazer um novo centro administrativo foi repetido agora em Minas Gerais, pelo ex-governador (Aécio Neves, do PSDB, em 2010), que criou a 20 quilômetros de Belo Horizonte a sede oficial do governo. É uma forma de confinamento desta classe administrativa e política, no mesmo sentido daqueles conjuntos habitacionais que você falou, de se isolar. E uma cidade não pode ser exclusivista de nada. É querer fugir não sei do quê, porque a graça de uma cidade é a sua vida, e a convivência dos vários tipos de atividades.

O senhor disse certa vez que é um absurdo as crianças não estudarem urbanismo desde cedo, nas escolas, já que a cidade é tão importante quanto à língua. Precisamos mudar urgentemente o currículo escolar?
O sistema educacional está todo errado. Nós devíamos ensinar física, mecânica elementar junto com a alfabetização. Uma criança brinca com peão na palma da mão, empina papagaio, solta foguete, joga bolinha de gude. Ou seja, ele sabe o que é uma esfera que toca um plano só em um ponto. Não se joga gude com paralelepípedo, mas com esferas perfeitas. E você amarra uma pedra num barbante e qualquer criança vai entender o que é força da gravidade, conservação da energia, etc. É mais fácil ensinar física elementar e mecânica a uma criança do que ensinar o que é o Dia das Mães. O difícil, para uma criança, é entender as besteiras que falam. E aí estou falando do mundo inteiro, não só do Brasil. A educação hoje é feita para submeter o camarada aos desfrutes do mercado e da ideologia que está posta aí, de um capitalismo estúpido.

Falta uma educação mais intuitiva, digamos assim, mais ligada à realidade da vida?
Sim, é mais fácil a criança entender o que é um coração se você colocá-la para sentir a pulsação com a mão, no próprio corpo, do que colocá-la para desenhar um negócio vermelho no papel, tão abstrato. O filho do pescador sabe tudo sobre vento, tempo, etc. O confronto com a natureza no seu conjunto de fenômenos educa, ainda hoje, de uma maneira que serve um pouco de contraponto a essa educação oficial que temos.

Para concluir, voltando ao Leão de Ouro com o qual abrimos esta entrevista. Olhando para trás, com tudo que realizou e viveu, e agora com os mais importantes prêmios da arquitetura mundial em mãos, como o senhor se sente?
Bem, é sempre um pouco espantoso ganhar esses prêmios, você não está esperando. Mas eu não sei dizer. Não tenho muita experiência, para mim o mundo é sempre novo. Eu não sei o que foi e o que será. Só sei que não tenho medo das coisas, muito menos do presente, porque ele é tudo o que temos.

Quando entrevistei o arquiteto português Álvaro Siza, ele me disse que ganhou prêmios porque mereceu, mas também por um tanto de sorte. Ganhar Pritzker, Mies van der Rohe e agora o Leão de Ouro, entre outros, tem a ver com sorte?
Isso que ele disse é interessante, porque estes não são prêmios a que você concorre, não são concursos. São instituições que dão esses prêmios, então eu penso que toda vez eles têm um problema para resolver: escolher alguém. E se o diabo, como eu, não morre nunca, acaba ganhando todos os prêmios (risos). É uma questão matemática, estatística, de probabilidade. Então em vez de concordar com o Siza, que fala em sorte, eu prefiro dizer que, se o cara dura muito, acaba amadurecendo.

O senhor continua com vários projetos, não dá sinais de querer parar…
Tenho alguns projetos sim. Agora, acho que eu preferia sair sem dar sinais…


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