O brilhantismo descontente de Jards Macalé

Sem títuloCaso seríssimo o primeiro álbum solo de Jards Macalé. Marcado por parcerias com letristas insuspeitos – os poetas José Carlos Capinam, Torquato Neto, Duda Machado e Waly Salomão, e os compositores Luiz Melodia e Gilberto Gil – o biscoito fino lançado pela Philips em 1972 contou ainda com a participação de dois dos mais expressivos músicos da geração que modernizou a música popular do País na virada dos anos 1960 para os 70: o baterista Tutty Moreno (marido da cantora Joyce) e o incendiário Lanny Gordin, que deixou o posto de guitar-hero da Tropicália para assumir violão e contrabaixo elétrico no LP. Mas, antes de falarmos de Jards Macalé, como singelamente foi intitulado o début do compositor, façamos um breve retrospecto dos caminhos que levaram o artista carioca até este primeiro registro solo impregnado de brilhantismo e do ímpeto de “desafinar o coro dos contentes”.

Nascido na zona Norte, no bairro da Tijuca, em 3 de março de 1943, ele foi batizado Jards Anet da Silva. Aos 8 anos de idade, partiu com os pais e o irmão caçula, Roberto, para Ipanema. Na zona Sul logo ganhou o apelido, em alusão ao nome do pior jogador do clube do Botafogo, que adotaria, depois, como sobrenome artístico. Mas, se nos campinhos de várzea o desempenho do menino Jards era pífio, digno de Macalé, a vocação para craque da música popular foi cultivada e aflorou desde cedo por influência de dois amadores apaixonados por música: o pai, acordeonista, e a mãe, excelente pianista e cantora. Junto a eles e o irmão, Macalé participava em casa de frequentes reuniões musicais, embaladas ao som de foxes e valsas. Além dos gêneros de tradição estrangeira o intruso samba, vindo do vizinho Morro do Formiga, também ia aos poucos fazendo a cabeça de Jards.  

Na adolescência, a amizade com Chiquinho Araújo, filho do maestro Severino Araújo, da Orquestra Tabajara, foi determinante para transformá-lo no aspirante a artista que viria a se consolidar nos anos 1970 – não sem muita turbulência, como veremos. Ao lado de Chiquinho, Macalé teve acesso a espaços restritos da extinta Rádio Mayrink Veiga. Pôde, por exemplo, conferir de perto concertos regidos por Severino, muitos deles impregnados de maracatus, choros e frevos. Pôde também travar contato com registros fonográficos de big-bands de jazz, como as de Billy Butterfield, Ted Heath e Stan Kenton.

Foi ao lado do chapa Chiquinho, baterista, e do amigo Jota, estudante de Engenharia e flautista, que Macalé, assumindo a faceta de violonista, formou seu primeiro grupo, chamado Três no Balanço. De vida efêmera, o trio deu lugar ao Conjunto Fantasia de Garoto. Pouco depois, na primeira metade dos anos 1960, Jards decidiu mergulhar nas partituras: teve aulas de piano e orquestração com o maestro César Guerra-Peixe; de análise musical com Ester Scliar; de violoncelo com Peter Dauelsberg; e de violão com Turíbio Santos e Jodacil Damasceno. A imersão fez de Jards sujeito conhecido entre os pares musicais de zona Sul. Em 1963, no Rio de Janeiro, ele conheceu Caetano Veloso, a quem chamava “Caio”. Sabendo da ebulição soteropolitana – a nascente cena musical daqueles dias incluía Gil, Gal, Bethânia e Tom Zé – lamentou não ter podido seguir com Caetano no retorno deste à Bahia. Dois anos mais tarde, quando o “Grupo Baiano”, como bem definiu Augusto de Campos, partiu para o eixo RJ/SP, Jards passou a assinar a direção musical dos primeiros shows cariocas de Bethânia.

Em 1966, começou a trabalhar para o produtor Guilherme Araújo, assinando a direção musical e tocando em shows na boate Cangaceiro. Um desses espetáculos, Pois É, foi escrito por Caetano e Suzana de Moraes, e reuniu canções interpretadas por Vinicius de Moraes (pai de Suzana), Bethânia e Francis Hime, sob direção de Nelson Xavier. A despeito de tantos atrativos, Pois É não emplacou e Jards embarcou em um período transitório e instável, marcado pela audição compulsiva do jazz produzido entre as décadas de 1940 e 60, e uma imersão pela Bossa Nova, por influência da amiga Silvinha Telles. Mas uma nova parceria artística, com José Carlos Capinam, renderia frutos ainda mais generosos para o compositor. Com o poeta baiano, Macalé fundou a produtora Tropicarte e escreveu uma série de canções antológicas, como Pulsar e Quasars, incluída no álbum de 1969 de Gal Costa – o segundo da carreira da cantora, informalmente conhecido como Cultura e Civilização (ouça a íntegra). Registrado no final do ano anterior, o explosivo álbum de Gal teve arranjos escritos pelo maestro tropicalista Rogério Duprat, que contou com o trabalho de Macalé, como assistente.

Jards Macalé e a banda Os Brazões, durante a controversa apresentação de "Gotham City", no FIC de 1969
Jards Macalé e a banda Os Brazões, durante a controversa apresentação de “Gotham City”, no FIC de 1969

Pouco depois, acompanhado do grupo Os Brazões, de Miguel de Deus (leia post de Quintessência sobre o músico), Jards protagonizou episódio embrionário para sua eterna pecha de “louco” e “maldito”:  subiu ao palco do IV Festival Internacional da Canção de 1969 para defender nova parceria com Capinam, a apocalíptica Gotham City. Longe de despertar a empatia do público – jovem, porém, conservador e patrulheiro de certo anti-imperialismo, diga-se – Macalé foi alvo de uma histórica vaia e manifestação de repulsa (ouça o áudio da apresentação).
“No sentindo do trabalho era fantástico, agora, no sentido comercial, era muito violento. Não dava resultado. Rogério Duprat fez um arranjo que, no final, a orquestra tinha que ficar louca, completamente esquizofrênica. O maestro Tavares – que ia reger – ficou puto. Ele tava levando a sério, mas quando viu que a gente tava cantando aos berros, se recusou a reger. E quem acabou regendo foi o Erlon Chaves”, relembrou ele, em entrevista ao repórter Wilson Moheardui, da revista O Bondinho, em fevereiro de 1972.

Mesmo vaiado e hostilizado, inabalável, Jards seguiu rumo com novo grupo, chamado Soma, que incluiu em sua formação um dos poucos divergentes da caretice da plateia do festival de 1969, o percussionista Naná Vasconcelos. Segundo Jards, logo após a apresentação, ele foi abordado por Naná com a seguinte frase “Meu irmão, eu amo você. Posso entrar nessa?”. Ao que Macalé teria dito: “Você já está, rapaz!”.

A experiência Jards/Naná/Soma rendeu o belo compacto Só Morto/Burning Night, que também continha as composições Soluços, O Crime e Sem Essa. De tão rejeitado nas lojas – “Macalé, aquele louco? Não Quero, não!”, diziam os revendedores – Jards preferiu ordenar a gravadora RGE que retirasse a obra de circulação. Censura mercadológica e gesto reflexivo que colocou o compositor em um longo sabático. “O negócio era levar a um radicalismo total e passar para o outro lado, tanto em relação a minha música, como em relação ao que tava acontecendo. Dava o estouro logo. Mas aí, depois de Gotham City, eu ganhei uma antipatia incrível. Diziam que eu era louco. Passei dois anos, sem nenhuma possibilidade. Nenhuma gravadora queria mais aceitar minha figura”, relembrou Jards na entrevista à O Bondinho.  

Foi nesse contexto letárgico que, acompanhado da mulher Giselda, Macalé foi passar o carnaval de 1971 em Salvador, na companhia de Bethânia. Dias antes, ela recebera do irmão Caetano, exilado em Londres, um recado urgente. O baiano queria que Macalé partisse imediatamente para a capital inglesa para assumir a direção musical de seu novo álbum. Lisonjeado com o convite, porém sem recursos financeiros para aceitá-lo, Macalé mandou agradecer e voltou ao Rio de Janeiro. Mas, uma semana depois do carnaval, veio a boa nova: Caetano arcaria com as despesas dele e de Giselda pois, segundo garantiu a Bethânia, só faria o álbum se fosse com Jards no comando.

Lanny Gordin, Macalé e Tutti Moreno, em foto da contracapa do álbum de 1972
Lanny Gordin, Macalé e Tutty Moreno, em foto da contracapa do álbum de 1972

“A gente não tinha nem material para trabalhar. Era tudo improvisado: Caetano com o violão dele e eu com o meu para sustentar harmonicamente o dele. Houve uma grande transa. E não só no sentido musical, que ficou mais apurado. Em termos individuais, o meu enriquecimento foi muito grande. Assistia a tudo e ouvia muito o papo de Gil e Caetano. Aguentava toda a barra da relação de grupo, segurando as pontas pra manter o grupo unido.”

Foi assim, nesse ambiente descompromissado, de criação gradativa, que nasceu uma das obras-primas da discografia de Caetano, o álbum Transa  (ouça a íntegra), concluído no Brasil, logo após o baiano retornar do exílio, no início de 1972. Transa também tornou-se célebre por dois motivos. Um deles, pouco nobre: o rompimento da amizade entre Macalé e Caetano, pois o baiano, supostamente, não teria creditado a ele no encarte do álbum a direção musical (Caetano até hoje diz que foi um erro de impressão da Philips). Fato positivo: o álbum serviu de aquecimento para a trinca de ases Jards, Lanny e Tutty. A aproximação, o convívio regular e os intensos diálogos musicais permitiriam a Macalé, logo na sequência, entrar em estúdio para colocar pouco depois, no mercado, seu primoroso álbum-solo, sem dúvida, uma das estreias mais marcantes da geração de artistas de música popular que surgiu na segunda metade do século 20 no Brasil.

Com arranjos escritos por Macalé, Lanny e Tutty, o álbum reúne repertório cinco estrelas. Compostas a quatro mãos com Capinam: Farinha do Desprezo, 78 rotações, Meu amor, Me Agarra e Geme e Treme e Chora e Mata e a emocionante Movimento dos Barcos. Escritas com Waly: Revendo Amigos e Mal Secreto. Única, porém memorável parceria com Torquato: Let’s Play That; Pérolas de Gil e Luiz Melodia: Farrapo Humano e A Morte. Duda Machado assina “apenas” uma, a arrebatadora  Hotel das Estrelas, revelada, meses antes, na interpretação pungente de Gal durante o show Fa-Tal – Gal A Todo Vapor (leia post de Quintessência).

Apesar do álbum ter propiciado maior visibilidade, e maior compreensão com a obra de Macalé, por parte do público jovem e desbundado daquele começo de anos 1970,  ele continuou seguindo à margem, sem abrir concessões. Entre seus trabalhos mais significativos estão álbuns plenos da mesma energia e inventividade, como Aprender a Nadar (o segundo, de 1974), Contrastes (1977) e Let’s Play That (de 1983, este, feito em parceria com o amigo Naná). Em 1973, Macalé idealizou também um concerto em celebração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. O encontro resultou no álbum duplo O Banquete dos Mendigos e reuniu artistas como Paulinho da Vila, Milton Nascimento, Gal Costa, Edu Lobo, Chico Buarque, Raul Seixas, o baterista Edison Machado (leia post de Quintessência), entre outros. Obrigatória também, é a parceria e reverência de Jards ao mestre Kid Morangueira, ou melhor Moreira da Silva (ouça a íntegra do álbum Jards Macalé Canta Moreira da Silvahomenagem póstuma ao Pai do Samba de Breque).

Em janeiro de 2011 este colunista teve o prazer de acompanhar, durante uma semana, as filmagens do espetáculo Sinfonia de Jards, apresentado em novembro daquele ano no Teatro Oficina. A experiência de proximidade com Macalé, que inclusive rendeu a revelação do verdadeiro motivo da briga entre ele e Caetano Veloso, foi relatada na reportagem Diários de Macalé (confira a íntegra).
        
Ouça á integra de Jards Macalé

Boas audições e até a próxima Quintessência!  


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