Os 50 metros que separam o camarim do Bar Brahma – no centro de São Paulo – do pequeno palco improvisado, no salão principal, parecem quilômetros quando passa um dos maiores mitos da música popular brasileira: Cauby Peixoto. Aos 77 anos (não declarados nem confirmados), vestindo calça preta com listras brancas, camisa preta, gravata prata e um paletó branco, amparado e protegido por três seguranças enormes, ele cruza com dificuldade no meio da platéia, como aqueles astros do pugilismo americano a caminho do ringue. Sob aplausos de um público histérico, de pé, o cantor dá autógrafos, posa para fotos e começa a cantar antes mesmo de se juntar aos três músicos que já dão os primeiros acordes: “Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha…”
Essa cena acontece invariavelmente toda semana, às segundas-feiras, na temporada que já dura quatro anos e marca o renascimento artístico de Cauby, que já foi do topo ao limbo em várias fases de sua carreira de 60 anos. O renascimento, no Bar Brahma, teve um gosto especial. “Foi aqui, no centro de São Paulo, que tudo começou”, conta Cauby, pouco antes de mais um show, numa segunda-feira de dezembro, quentíssima (os termômetros marcavam 30 graus).
A lembrança do cantor remete ao final dos anos 1940, quando, a convite do irmão Moacyr, que já tocava na noite paulistana, ele deixou a cidade natal, Niterói (RJ), para tentar a sorte como crooner, na recém-inaugurada boate Oásis, também no centro da capital. Nas primeiras apresentações, imitava Nat King Cole. Como não sabia inglês, decorava os fonemas, vencia a timidez e ia em frente. O timbre o ajudou logo de cara e vieram outros convites. Foi chamado para a sofisticada boate Arpège, na Avenida São Luiz, e dava canjas no Nick Bar, ponto de encontro de artistas e jornalistas, ao lado do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, na Rua Major Diogo. Pouco depois, incluiu em seu currículo também a boate do Hotel Excelsior, na Avenida Ipiranga, ao lado do Bar Brahma.
“Quando acabavam os shows no Excelsior, na madrugada, comíamos um picadinho aqui no Brahma, exatamente neste salão onde canto hoje”, recorda Cauby. E foi ali, na boate do Excelsior, já sabendo explorar bem os graves de sua voz – incentivado pela mestra, a cantora Leny Eversong, outra veterana da noite paulistana – que sua vida mudaria para sempre. Foi apresentado ao maranhense Edson Collaço Veras, o Di Veras, que se tornaria seu empresário e responsável por golpes de marketing essenciais na construção do mito Cauby. Como, por exemplo, segurar a voz do cantor em três milhões de cruzeiros da época, isso no começo dos anos 1950. “Conheci o Di Veras, voltei para o Rio e aí começou a grande festa”, lembra.
O cantor entrou para o cast da Radio Nacional, que tinha mais ou menos o mesmo prestígio da TV Globo de hoje, gravou sucessos como “Blue Gardenia” e nunca mais teve privacidade na vida. Vieram os fãs-clubes e histórias de seguidoras fanáticas, que entre outras loucuras colecionavam ossos de galinha, caroços de azeitona e até pontas de cigarros que haviam passado pela boca do ídolo.
Enquanto conta detalhes do começo da carreira, o público que lota o Brahma nessa noite vai ficando impaciente. A platéia é formada quase que só por mulheres, entre elas as senhoras de uma associação beneficente, que praticamente preenchem todas as mesas para a chamada “Noite do Bem”. É hora de entrar, enfrentar a difícil travessia pela platéia e, sentado numa poltrona vermelha, arrebatar os ouvintes com um repertório de 18 músicas, que inclui sucessos como “Travessia”, “Eu sei que vou te amar”, “Samba em prelúdio”, “Corcovado” e, é claro, sua marca registrada, “Conceição”, o famoso samba-canção de Dunga e Jair Amorim, que inicialmente foi oferecido ao cantor Silvio Caldas e depois acabou acontecendo na voz de Cauby. Ele consegue a proeza de cantar e ao mesmo tempo fazer poses para a fotógrafa Luiza Sigulem, que fica agachada embaixo do palco para buscar os melhores ângulos.
Mas, antes de entrar, Cauby faz uma revelação – quando lhe pergunto de onde tirou o estilo extravagante de se vestir e se portar em público – que me deixaria intrigado pelo resto da noite: “Tive uma influência do Ney Matogrosso no meu renascimento artístico”, diz ele, referindo-se ao início dos anos 1970, quando caiu no ostracismo e sua voz poderosa já não empolgava mais as menininhas. “Fui ver o Ney para isso, para saber um pouco mais. Uma amiga me convidou. Ela disse: ‘você tem de ver o Ney Matogrosso. Eu vi e adorei’. Isso me influenciou muito, é claro.”
Naquela época, Ney Matogrosso acabava de surgir com os Secos & Molhados, quase sem roupa, muita maquiagem e um jeito afeminado de cantar, que escandalizaria platéias Brasil afora. Inspirado pelo artista, Cauby adota um estilo mais excêntrico, alimenta especulações sobre suas preferências sexuais. “Sou um personagem, uma mulher no palco. O Cauby do palco é realmente uma mulher, que entra, me toma e canta. Quando estou cantando não sei mais de mim”, declarava naquela época à imprensa.
Surpreso com a humildade de Cauby, que se inspirou num iniciante para recomeçar sua carreira, observei-o com outros olhos. Além do perfil exótico, onde não faltam base nas unhas, anéis de cristais suíços Swarovski e muita maquiagem, Cauby exibe no palco uma jovialidade que não demonstra quando está fora dele. Quem o vê não diz que aquele homem já precisou colocar duas pontes de safena e duas pontes mamárias. “Eu gosto muito de cantar, nasci pra cantar, não tem outra coisa que faça brilhar os meus olhos”, confessa. “Quando venho pra cá eu renasço. Isso mantém o que há de melhor em mim. Me perguntam como é que eu vivo. Eu vivo aqui, cantando. Depois vou pra casa. Em casa sou mole, sem graça, pijaminha velho, chinelinho. Gosto só de dormir.”
Nessa noite, Cauby resolveu abrir o repertório para pedidos e essa foi a única hora em que a idade o traiu. Algumas letras, ele já não lembra de cor, mas o constrangimento inicial é logo quebrado pelo pianista que o acompanha há anos, Jair Sanches. Ele saca o microfone e termina a canção sem dar tempo para o público reclamar.
A única que nota o “lapso” do cantor é a fiel amiga e protetora Nancy Lara, companheira desde 1986, que o conheceu numa apresentação, jogou uma flor no palco e depois disso nunca mais saiu da vida de Cauby. Nancy o leva para todos os shows, senta na primeira mesa, perto do palco, recebe os pedidos de músicas, fiscaliza para que tudo saia bem. É a pessoa que faz contato com a imprensa, breca as fãs mais atiradas, enfim, seu anjo da guarda. “Sou apaixonada pela música, como o Cauby, e essa é nossa afinidade, mais nada”, afirma ela, a todos que especulam sobre uma suposta relação afetiva entre eles.
Foto: Eric Brochu |
A trajetória de Cauby, em seis capas de publicações históricas da história da Era do Rádio |
Pouco antes de terminar o show, o público vibra ao ouvi-lo cantar “Granada”, mexendo as mãos como se tivesse nelas castanholas. Quando levanta da poltrona e deixa o microfone sobre a mesa, o segurança Valdemar José de Lima, o Val, aproxima-se para a hora mais difícil: retirar o astro do palco e levá-lo de volta ao camarim. Andando com dificuldade, em função de problemas na coluna e de uma labirintite que o persegue há anos, Cauby segue lentamente, dando as mãos para as fãs mais exaltadas. “Tem umas mais afoitas, que querem tocar nele e a gente fica com medo de machucar”, diz Val.
Já no camarim, Cauby tira o paletó, toma um gole de água. Está com a voz intacta, depois de mais de uma hora cantando sem parar. Pergunto qual o segredo. “As pessoas que apertam muito a voz são pessoas que falam e cantam fora do tom”, ensina. “Cada um tem um tom para falar. Eu tenho a sorte de falar num tom que não prejudica minhas cordas vocais. Conhecimento também ajuda (faz um exercício com a voz para mostrar). É preciso cuidar. É preciso pensar que uma voz é uma coisa superdelicada. Tem gente que vive rouca, desafinada. Tem gente que gasta a garganta demais, eu olho assim e fico com pena (mostra cantando). Tem gente que canta fora do tom.”
Pergunto também de quanto em quanto tempo seu repertório é alterado, já que está há quatro anos em cartaz, sempre com músicas diferentes. “Quando sinto que meu repertório está feito demais, aí eu mudo”, explica. “Primeiro, quando aprendo uma música, fico cantarolando em casa. Depois levo os músicos para lá, ensaiamos uns 40 minutos e pronto”. Cauby conta que costuma tomar nota das canções mais pedidas, ensaia e inclui no próximo show.
Ensaio, aliás, é a alma do negócio. “Gosto de ensaio”, afirma, enquanto saboreia frios e frutas servidas no camarim pela copeira Zilda Fernandes, uma das poucas funcionárias do Brahma a ter consentimento para privar da intimidade do cantor, com direito até a selinho na boca, na chegada e na despedida. “É no ensaio que a gente vai melhorando certas músicas, vai sendo coautor delas.”
O assunto é a deixa para Cauby se lembrar dos anos em que morou nos Estados Unidos, onde gravou discos e se apresentou com o nome de Ron Coby. Lá conheceu ídolos como Frank Sinatra, a quem foi apresentado como “o maior cantor brasileiro”. Estudou música e se profissionalizou. “O que eu gostaria é que aqui no Brasil fosse como nos grandes países: eles ensaiam muito, gravam e regravam, até sair bom. Isso nós não temos ainda. Aqui às vezes sai mais ou menos. A cultura do quase.”
Nos Estados Unidos, lembra Cauby, os empresários o colocaram até numa escola de dança. “Eu não pedi para dançar. Mas eu teria de dançar, porque estavam precisando de um cantor que soubesse dançar um pouquinho. Outra coisa: queriam que eu cantasse em muitos idiomas. Aí aprendi alemão, hebraico (canta um trecho de uma canção). Aprendi espanhol. Foi fundamental na minha formação essa passagem pelos Estados Unidos.” E, com um certo ar melancólico, reflete: “Se tivesse ficado por lá teria ido muito mais longe. Ensaiando, até que eu faço direitinho.”
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