Aos 53 anos, casado e pai de duas belas meninas, Fernando Bonassi é um pessimista exemplar. Para ele, as coisas devem ser ditas, doa a quem doer. Daí suas filhas logo aprenderem que “Deus e a Cinderela são da mesma categoria: não existem.” O que não parece tê-las incomodado.
Fato é que não há lugar para a inocência no século 21, segundo o autor de Subúrbio, Passaporte e, entre tantos outros, São Paulo/Brasil.
Inconformado, Bonassi considera: “O nosso projeto político, meu e do meu partido, que por acaso é o Partido dos Trabalhadores, naufragou. É o modelo que entende que você forma cidadãos quando forma consumidores”.
Pensando nisso, criou em Luxúria uma fábula contemporânea na qual um operário padrão decide construir uma piscina no quintal da sua casa e aos poucos vê seu casamento se afundar de maneira trágica. O sexo furtivo e intenso é o único pilar a sustentar a família, completada pelo filho de 11 anos com problemas hormonais, o cachorro moribundo e a diarista que odeia a patroa folgada e depressiva. Um esquema furado de financiamento vai ruindo essa estrutura – por fora e também por dentro, com a escalada da loucura de cada um.
A história, aparentemente simples e um bocado escabrosa, foi baseada em personagens reais, como o irmão, um tio e o próprio autor. Luxúria foi escrito de noite, nas horas vagas, por cinco anos. Teve cerca de seis versões diferentes.
Bonassi escreve muito, sem o sofrimento que se costuma aplicar à figura do escritor. Basta ver sua lista impressionante de obras publicadas, entre contos, romances, peças e livros infantojuvenis.
Filho de um eletrotécnico e uma dona de casa, Bonassi quase teve o mesmo destino de seu personagem central, nunca nomeado. Ex-morador da Mooca, tradicional bairro operário paulistano, chegou a fazer curso de ajustador mecânico, mas conseguiu ingressar na faculdade de Cinema da USP, em 129º lugar – eram 130 vagas. Ana Muylaert, diretora de Que Horas Ela Volta?, era da sua turma. Hoje ele é roteirista da Globo. Em parceria com o amigo Marçal Aquino, também escritor, realizou os roteiros de Força Tarefa e O Caçador. No cinema, trabalhou em Carandiru, Os Matadores e Cazuza – o Tempo não Para. E escreveu e dirigiu vários curtas-metragens premiados. Também se destacou no teatro, com trabalhos ao lado da diretora Cibele Forjaz e do Teatro da Vertigem, notadamente em Apocalipse 1,11.
Como revela na conversa a seguir, seu projeto mais recente é o longa-metragem A Chacina, que ele roteirizou e vai dirigir.
Brasileiros – Chama a atenção o fato de Luxúria abordar temas bastante atuais.
Fernando Bonassi – O livro ficou tristemente atual porque é baseado em fatos reais. Meu irmão tentou, de fato, fazer uma piscina no quintal da casa dele à medida que o casamento ia para o brejo. Meu irmão não é operário, mas a imagem do romance me veio desse problema familiar. Meu irmão era vendedor, foi ficando desempregado e foi fazendo uma piscina à medida que o casamento foi apodrecendo. À medida que o casamento piorava, ele aprofundava o seu buraco pessoal naquela piscina. Eu achava que era uma imagem perfeita. Na última semana antes de se separar, a ex-mulher disse que piscina tinha que ter uma cachoeira. E o idiota foi lá e fez a cachoeira! O cara cavou a própria sepultura no quintal.
Mas e quanto à nossa conjuntura político-econômica, essa coisa do consumismo…
Vejo uma tolerância muito grande ao conservadorismo, de um modo geral, nas relações de trabalho, uma violência policial muito grande, com o beneplácito dos governadores, uma frustração muito grande. Eu sou de uma geração profundamente frustrada. Eu panfletava nas ruas querendo o fim da ditadura e, quando a ditadura acaba, a gente acha que vai eleger o presidente, mas vem o colégio eleitoral. Desde então nunca houve um governo que levou a sério o que pregou na urna. Estou com 53, não tenho a menor esperança, acho que o Brasil vai naufragar. Vamos entrar em guerra civil. Vamos nos miserabilizar como a Venezuela. Moralmente, socialmente, vamos deixar de interessar ao mundo, vamos ser como o vazio da Santo Amaro, um vazio urbano.
Você não está muito pessimista?
Não, o importante é que as pessoas saibam que elas têm uma opção que é deter esse processo. O meu partido reproduziu o modo de governar dos outros partidos e está pagando o preço. E é por isso que eu acho que não temos saída. É que os menos piores já foram testados. Sobraram os piores. É bom que a gente saiba que vai entrar num momento negro da nossa história social e política.
Me parece que você coloca o pessimismo para fazer com que as pessoas se mexam.
É claro que tem um movimento de olhar e dizer: vamos tentar entender isso. Por que a gente é tão atavicamente imbecil? Tão historicamente inepta para fazer as coisas, para se respeitar, para conservar conquistas importantes como a liberdade, bens culturais? Eu li Marx, mas ouvi rock and roll, eu sei o valor do Jimi Hendrix tocando para os americanos daquele jeito, a atitude que aquilo representa. Não sou um velho comunista, acho que tem que negociar, mas em nome das ideias de governança.
Quando terminei seu livro tive a mesma sensação que me dá ao ler Herta Muller ou ao ver um filme do Haneke: quanto sofrimento!
Um primeiro critério para diferenciar obra de arte e bobagem para mim é o incômodo que aquilo me provoca. Quando vejo um filme do Haneke ou leio a Muller ou a Elfirede Jelinek, eles dizem: a solução está fora do livro ou do filme. O que é democrático é dizer: você está na merda, eu não posso te ajudar, eu não sou salvador da pátria. Cada um vai ter que dar a solução para esse estado de coisas. Sim, senão você nem escreveria. Dentre os meus, os piores não estão nem escrevendo, desistiram. Eu ainda não desisti. Acho que é um grande momento para olhar como a gente é cruel e violenta. O Brasil é um país extremamente violento. As pessoas fazem uma ideia muito nobre de si mesmas e muito pobre dos outros. Nós somos todos especiais. Numa sociedade democrática deveríamos dizer: somos comuns, somos uns merdas. É como eu me vejo. Numa sociedade em que todos se acham bons e bacanas acontece o conflito social que está aí.
Um dos aspectos mais interessantes do livro são os trechos em itálico, que podem ser diálogos, pensamentos, desejos reprimidos, voz em off, coro grego…
O que eu acho mais bacana desses diálogos em itálico é que eles são a chave de eu ter escrito o livro. Eu tinha a ideia: “Ah, vou fazer um livro sobre um operário que se ferra, a coisa da piscina, belo arco geral”. Fui para o papel 200 vezes e ficava imbecil, tolo. Quando eu entendi que tinha que virar, digamos, o potenciômetro um grau e fazer aquelas pessoas ficarem um pouco psiquiátricas, eu tinha achado o livro. Mais do que isso: quando eu entendi que as pessoas não falam o que pensam, mas vivem o que pensam. Então, eu te odeio, cara, só que você é meu chefe. Então eu chego de manhã, bato nas suas costas: “E aí, tudo em paz, cara?”. Faço até uma cara dramática, mas saio dali e falo: “Esse cara tinha que se foder. Na hora que esse filha da puta morrer, eu vou ganhar cinco mil a mais”. Isso para mim é um traço desse momento histórico que vivemos. Eu já vivi outros, em que havia mais aparência de solidariedade no ar; mas neste momento, não.
Um ponto que me parece crucial na sua obra é o corpo. Ele sempre aparece de alguma maneira muito forte, seja no sexo, seja na doença ou em alguma bizarrice. As cenas sexuais são muito bem descritas, naturais.
Eu gosto de sexo, gosto muito de sexo. É uma coisa determinante na minha vida. O Henry Miller tem esse discurso, aprendi isso com ele. Eu li o Miller como se lê a Bíblia, e ele diz com a maior clareza que um escritor precisa se conhecer: se você for um covarde, escreva sobre sua covardia. O Dostoiévski é uma prova disso: é um cara que todos os livros dele explicam para você porque ele é um merda; sim, é castigar-se, humilhar-se perante você para provar o mais baixo degrau a que se pode chegar e dizer: “Olha o que você é se espelhando em mim”. É um projeto, está tudo certo. Um traço disso é você conhecer a sua sexualidade: você pode ser um punheteiro, pode não gostar de mulher, pode gostar de orgias, mas conheça-se sexualmente. É uma coisa determinante na vida.
E é determinante em “Luxúria”.
Eu achei que sim porque o personagem tem interesse pelo sexo, mas nem sempre isso ajuda ou faz com que ele o pratique da maneira como ele queria. E eu não queria que ele fosse a caricatura de um operário. Quanto à coisa do corpo, a gente vive uma época em que isso nem é uma escolha. O corpo está na rua como nunca esteve. O que eu acho mais legal nesse caso é relação com o tempo. Até hoje no meu trabalho eu sou chamado pelo meu chefe e espero. E eu sempre penso assim: “Olha esse cara me dizendo como o tempo dele é mais importante que o meu” e o meu corpo pode ficar aqui enrijecendo enquanto o dele está tendo uma coisa produtiva lá. É uma relação de poder. É uma relação de poder ficar numa escola pública de merda, como eu fiquei. É uma relação de poder você trabalhar em condições insalubres, em pé, numa máquina. A única coisa verdadeira daquele documentário sobre o Lula, do João Moreira Sales, é quando o Lula fala que só um tolo pode imaginar que a gente está numa linha de produção, ralando, e que isso é gostoso. Não é. Porra, você fica atrás de uma máquina, de um torno, treme o chão no seu pé, e você está sempre fazendo um esforço, não é a máquina que faz, você tem que empurrar o negócio que perfura. Meu tio, por exemplo, era ferramenteiro, é o cara do livro, ele tinha o Itamaraty, o carro do Juscelino, e um sobrado em São Bernardo, era o burguês da família. Um cara que, como os engenheiros, andava de capa, não sujava as mãos. A primeira máquina que entrou na linha de produção dizimou essa função.
Aliás, você descreve em detalhes o trabalho nas máquinas e mesmo outros aspectos da vida operária, o serviço de saúde, o trabalho da diarista. Além das histórias reais do seu irmão e do seu tio, você fez algum trabalho de pesquisa?
Sim, eu comecei a estudar piscina, fui comprar a piscina, sentei em frente do cara, pedi explicação, desenhei a casa na minha cabeça e dava as medidas para ele. Comprei umas 30 piscinas. Você vai para pegar um detalhe, como o cara tenta te vender, como o cara te explica uma coisa desagradável de um produto que tem aspectos desagradáveis, transmite doenças… Aí eu tentei doar um cachorro pela internet (como acontece com o personagem no livro) e fui massacrado, foi maravilhoso. Eu acho que vou ter mais problemas com esse livro por ter matado um cachorro do que, digamos assim, por abordar uma certa radicalização evangélica.
E aquele filho de policial, que se machuca na frente dos outros em troca de dinheiro?
Sou eu mesmo. Quebrei o braço quando tinha uns sete anos, no pré-primário. Quando eu cheguei, meus amigos fizeram uma roda, cara. E eles ficaram tão excitados, foi a primeira vez que percebi que tinha público. Então, subi na árvore, me joguei e quebrei o braço de novo. Juro.
E os cobradores meganhas, que ficam perseguindo o operário?
Meu pai fez muita coisa errada com dinheiro e uma das minhas cenas da infância é um cara ir cobrar minha mãe com revólver, fazer um discurso na porta de casa. Eu me lembro disso, eu era menino, o cara chegou na porta, e disse: “Vou contar para senhora quem é seu marido. É um filha da puta que pega dinheiro das pessoas e some”. Minha mãe chorando, o cara com o revólver. “Se eu pegasse ele aqui, matava. Como a senhora tem filho…”. O Brasil é o país da ficção pronta. Outro dia, eu e o Marçal vimos uma história maravilhosa na internet, tem um seis meses. Um PM em São Paulo troca tiros com um grupo de meninos numa cena de sequestro, mata os três moleques e o PM se aproxima e vê o próprio filho. Se você escreve essa história, vão dizer que você é mentiroso. No entanto, ela é de uma força trágica do caralho. Para você levar para o leitor com a potência do real é difícil. Precisa de forma, não precisa de realismo.
Quem são seus alvos no livro? Há o chefe da fábrica, o pastor evangélico, os cobradores…
Como eu sou um cara de esquerda, diria que são aqueles que têm dinheiro para modificar a situação que está aí. Acho que as pessoas ganham mal, acho que a margem de lucro é excessiva. Então é elite econômica, cultural e política, de um modo geral. São aqueles que acham que devem economizar com impostos, são aqueles que acham que devem economizar com seus funcionários, são aqueles que acham que devem economizar liberdade com seus correligionários, aqueles que centralizam poder, aqueles que não perdoam aos jovens por serem jovens e quererem ir além do que eles, velhos, foram. Então, o escritor que não tem uma escuta com a juventude está morto. O Rubem Fonseca tem aos 90 anos. Aliás, não haveria narrativa urbana brasileira sem o Rubem Fonseca. Isso é indiscutível, não dá. Você olha aquilo e diz: “Caralho, alguém já fez isso antes”.
Como você colocaria o Luxúria na sua obra? Ele parece ter pontos de contato fortes com “Subúrbio”, “Apocalipse 1,11″, “Prova Contrária”…
Sim, acho que com Luxúria eu volto a um rigor que eu não tinha há algum tempo, que se deveu ao fato de eu, nos últimos 15 anos, atender a diversas encomendas. Fiz muita coisa ruim em literatura, em cinema, podia ter insistido mais na qualidade das coisas. Durante um tempo na minha vida, eu achei que tinha que dizer sim a todas as encomendas, especialmente dos 35 até os 40. Até pouco tempo atrás, eu achava que eu funcionava na quantidade, que eu era capaz de fazer qualquer coisa. E acho que escrevi muita besteira. O Luxúria demorou. Quando acabou a primeira versão eu falei: grande livro, mas como ele é gordo, como ele está deformado, ainda é uma pessoa que precisa de muito trabalho. Foram seis versões, o livro tinha pelo menos o dobro do tamanho na primeira versão. Aí você vai emagrecendo, e se perguntando: “O que é importante dizer aqui?”. Isso tem a ver com o trabalho ao lado do Marçal Aquino, fazendo roteiro para TV, que tem uma exigência de rigor muito grande. Ele é um cara muito mais rigoroso do que eu com relação a resultado. A coisa mais linda do mundo é estar dentro de um livro e saber, depois que você acaba: “Bom, é esse”. Não é uma coisa de grana, o livro nunca é. Você não tergiversa com o mercado, no caso da literatura. Você tergiversa com a sua fraqueza, com a sua coragem intelectual. Um cara que eu amo é o Thomas Bernhard – aprecio escritores que cospem na cultura em que vivem. Acho isso importante, gosto disso. Dizer que não temos saída, para mim, é de uma evidência e necessidade cristalinas. O que você faz com isso é problema seu. Não sou seu pai. Eu escrevi um livro, vou fazer um filme, e até quando sento para fazer coisas de televisão me preocupo, falo: “Não vou fazer bosta, não”. Não quero só divertir os caras, quero que eles sofram também. Se puder sofrer é melhor.
Falando nisso, e o longa que você está preparando?
O meu projeto se chama A Chacina e é a história de oito homens que você nem sabe se são policiais ou não, e, se eu acertar o que estou escrevendo, nem vai saber a razão pela qual eles fazem o que fazem. Eles saem uma noite e matam umas 30 pessoas. Você só vê isso por dentro do carro, vê o momento que eles combinam, você ouve algo acontecer e eles voltam depois excitados com o que fizeram. É um filme que se passa em dois carros com oito pessoas. Enquanto eu não achei essa forma, enquanto eu não entendi que eram caras que em 12 horas iam fazer uma coisa impensável, enquanto eles eram apenas fascistas, enquanto eles não viraram gente normal, eu não tinha o filme. Agora eu entendi que são oito caras como eu que à noite saem pra caçar gente. Não é estetizado, não é o Tarantino, festival de sangue. A expectativa é de que isso ocorra menos, é a coisa mais tola, mas porque eu vou mostrar oito caras se divertindo em matar os outros? Na perspectiva de dizer que matar é ruim, é simples assim, de certa maneira; mas o que eu gostaria é que as pessoas que estão pensando em fazer isso ou que fazem ou que acham que isso deve ser feito tivessem o entendimento de que sentimentos estão em jogo. Quando o poder se transfere para gente igual a essa, o que a gente está fazendo? Quando você permite que gente como essa faça justiça, o que está em movimento? Acho que é a nossa cara permitir que bandidos ocupem posições de mando, e não estou falando do PT exclusivamente, estou falando do estado das coisas.
Pergunta básica, mas essencial: por que você escreve?
É um incômodo enorme. É o fato de que nascemos nus e morremos sozinhos. Dar conta da finitude. Por que você quer ser bacana? Porque você quer aproveitar ao máximo a sua presença aqui. Eu sou um cara que acha que o mistério da vida está aqui. Não há nada fora daqui, apaguem a luz quando acabar. Lidar com isso, que parece tão bonitinho dito assim, não é fácil. A finitude, a decrepitude. O processo de decadência, Michel
Houellebecq escreve muito bem sobre isso, a decadência física agora aos 50 anos… Que é maravilhoso, do caralho. Eu nasci nos anos 60, eu tenho essa ligação com a minha época, sou um cara do século 20 e desse ambiente em que é melhor ser livre do que proibir, não há mistério, tudo é possível de ser explicado e compreendido. O conhecimento ocupa o centro do meu altar, não é um mito, é uma interrogação. A Origem, do Bernhard, é isso. Na primeira página ele fala: “Entendi que eu precisava me destruir”. Porque experiência não é de construção, é de decadência. E a gente devia ter uma compreensão talvez melhor disso, como os orientais. Então, por que fazer isso? Porque a experiência da vida é incompleta e a imaginação é infinita.
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