O outro lado do país que não superou a esquistossomose e a tuberculose

O diagnóstico do médico Marcus Vinicius Guimarães de Lacerda, feito durante a abertura do 52° Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, no domingo (21), em Maceió, foi preciso e dolorido: “O Zika mostrou ao mundo as nossas mazelas mais profundas”, disse Lacerda, que preside a entidade. “Mostrou também que o Brasil tem autossuficiência científica para dar respostas em saúde pública e não precisa da tutela internacional para isso”, enfatizou. “Foi o epicentro da epidemia, mas também o epicentro da resposta”, reforçou ainda Carlos Campelo de Melo, da Organização Pan-americana de Saúde. 

Concordo. A epidemia escancarou as nossas contradições: nossa capacidade de dar uma resposta rápida ao problema, mas também a nossa incapacidade de lidar com a nossa pobreza, nossas moradias precárias, o “nosso” Aedes.  Cedo ou tarde a cobrança dessa negligência viria. E, em 2016, ela veio alta. Além da epidemia de Zika, dengue e chikungunya, muitas cidades e regiões do Brasil enfrentam o desafio de lidar com doenças esquecidas pelos holofotes – como a esquistossomose e a tuberculose. Isso, claro, ao lado de males como as doenças cardíacas e diabetes, as chamadas disfunções da “modernidade” que cresceram na esteira do sedentarismo e do fast food. Não, não é uma tarefa fácil. 

O balé folclórico de Alagoas Transart encerrou a solenidade de abertura do 52° Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Foto: Monique Oliveira
O balé folclórico de Alagoas “Transart” encerrou a solenidade de abertura do 52° Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Foto: Monique Oliveira

E para pensar esses diferentes “Brasis”, o  52° Congresso da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, o MedTrop 2016, como é chamado, acontece entre 21 e 24 de agosto, em Alagoas. Além de todas essas contradições históricas, o evento se realiza em 2016 em meio a um cenário de crise política e econômica, com o maior financiador das pesquisas e tratamentos para as doenças negligenciadas saindo de cena – o governo. Todos os participantes pagaram suas passagens e hospedagens. Em muitos momentos, pensou-se em desistir da realização do evento. Mesmo com as dificuldades, a SBMT conseguiu premiar jornalistas, jovens cientistas e pesquisadores pioneiros na área. Entre os jornalistas, tivemos a honra de receber dessa sociedade o Prêmio Jornalista Tropical 2016 pela reportagem “Herdeiros do Zika”, capa da edição de março da Revista Brasileiros, escrita por Mônica Tarantino e por mim, Monique Oliveira.

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Das 159 reportagens analisadas para a categoria impresso, essa foi escolhida por unanimidade. E em tempos em que o jornalismo não escapa às mazelas do País, agradecemos profundamente esse reconhecimento. Ele é bem-vindo e necessário. Na categoria TV, a reportagem “ “Zika, onde tudo começou”, da TV Bahia, também foi agraciada com o prêmio recebido pela jornalista Susana Santana. Abaixo, o momento da premiação da Revista Brasileiros.  


No campo da ciência, foram premiados pela SBMT o pesquisador João Carlos Pinto Dias, por sua contribuição ao conhecimento da história natural da Doença de Chagas; e o professor Vicente Amato Neto, que ajudou a criar o Programa Nacional de Imunizações e conta com 68 anos de pesquisa dedicados à Medicina Tropical.

A persistente defesa do SUS

O contexto político conturbado foi o pano de fundo de muitas falas. Ainda, a defesa do Sistema Único de Saúde, em meio a um cenário de subfinanciamento e desmonte histórico, foi uma bandeira recorrente. As propostas de planos mais baratos, do ministro da Saúde Ricardo Barros, foi criticada sutilmente. E, em face de tudo isso, a união e a luta foi conclamada. “Não adianta importar caixas-pretas de fora se não fortalecermos o SUS, que tem 50% do financiamento que tinha em 2011”, disse Rodrigo Stabeli, vice-presidente da Fundação Oswaldo Cruz. “É um momento delicado, nós temos que nos unir. Sem ciência e tecnologia, não há desenvolvimento do País. O SUS não precisa de planos baratos. Não precisamos reinventar nada. Temos que resgatar o que construímos.”

A luta em defesa do SUS, no entanto, é tão profunda quanto o País. Para os especialistas, fica o desafio de ir além dos discursos e das bandeiras: será necessário propor soluções, sair do isolamento da pesquisa e somar.  “Que defesa do SUS vamos fazer? Em 30 anos, não conseguimos integrar a atenção básica com a vigilância. E, ainda, com subfinanciamento, desfinanciamento e judicialização. Quem aguenta?”, problematizou Rosângela Wyszomirska, secretária de Saúde do Estado de Alagoas.  

Ela também deixou uma provocação aos pesquisadores: “Vamos continuar separados? Cada um com o seu papel e um só responsável, o estado? Será que é assim que venceremos as nossas dificuldades?”

Rosângela Wyszomirska também mostrou o tamanho das dificuldades do Brasil profundo. Em Alagoas, disse ela, 60% dos municípios estão com endemia de esquistossomose. “E ainda não enfrentamos a hanseníase, a leishmaniose, a tuberculose”.  Afrânio Kritski, presidente da Rede Brasileira de Pesquisa em Tuberculose, aprofunda o debate sobre a defesa do Sistema Único de Saúde. “Para fortalecer o SUS, precisamos ter autossuficiência na produção de medicamentos”, diz.  Ele citou países como China e Índia, que pensaram o seu sistema de saúde integrado à produção de insumos.

Como Rosângela, Kritski também arrematou uma provocação aos pesquisadores, que devem, segundo ele, pensar para além de seus campos de pesquisa e se unirem em torno de prioridades nacionais.

Mazelas profundas e novas missões

Abordar os determinantes sociais da saúde, considerando aspectos como a moradia e a violência urbana como essenciais para o bem-estar, é uma das diretrizes da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical. Esse é um campo que pensa a medicina de forma integrada às condições de vida da população. “Nossa ideia é inserir um temário que esteja relacionado com agravos tropicais, que não precisam ser necessariamente infecciosos”, disse Fernando de Araújo Pedrosa, presidente do congresso MedTrop 2016. Nós, do Saúde!Brasileiros e da Revista Brasileiros, esperamos contribuir para a divulgação desse trabalho e desse Brasil muitas vezes tão longe dos holofotes.


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