O Sérgio Mendes que o Brasil desconhece

 

Se você engrossa o coro de milhares de brasileiros que insistem em atribuir a Sérgio Mendes o papel de vilão, com epítetos reducionistas e preguiçosos, como “diluidor da bossa nova”, “pasteurizador da música brasileira”, dispa-se de seus preconceitos e perca (ou melhor, ganhe), alguns minutos do seu dia para ouvir o álbum lançado por ele, em 1964, com o poderoso sexteto Bossa Rio.

O título superlativo do LP adverte: Você Ainda Não Ouviu Nada!. Por mais cabotino que possa parecer, ouvintes brasileiros e músicos de todo País não haviam mesmo escutado algo, de fato, semelhante a esse inspirado registro do pianista, nascido em Niterói, em 1941. Além do time de craques que Sérgio reuniu para a gravação, o LP teve o auxílio luxuoso de ninguém menos que Tom Jobim. Ao lado de Sérgio, o maestro carioca assinou, a quatro mãos, todos os arranjos de Você Ainda Não Ouviu Nada!. A epifania promovida pelo time de feras do Bossa Rio, que por oito meses ficou trancafiado no estúdio carioca da Philips para concluir o registro iniciado em 1963, justifica o ineditismo defendido no título do LP. A orquestração de Jobim e o piano econômico e preciso de Sérgio, em detrimento da imponente unidade sonora do combo, também tornaram-se referência para centenas de músicos que surgiriam depois. Como um livro, didático e atemporal, o álbum é objeto de estudo em conservatórios, dentro e fora do País. Sem incorrer em exagero, sucessivos críticos musicais também atribuíram a Você Ainda Não Ouviu Nada! o mérito de ter sido um dos títulos que ajudou a definir estatutos do nascente samba-jazz, e também de ser um dos mais importantes álbuns do jazz brasileiro.

Obcecado pelas teclas brancas e pretas do piano desde a primeira infância, quando iniciou os estudos com a professora Carmelita Lago, Sérgio precocemente amadureceu como músico. Já nos primeiros dias de adolescência tinha a percepção de que a crescente paixão pelo jazz o levaria a se dedicar muito mais à música popular do que a formação clássica que todo pai e mãe, como os seus, aspiravam para seus rebentos. Em 1960, aos 18 anos, ele passou a frequentar a boêmia do Beco das Garrafas e era assíduo nas jam sessions do histórico Little Club, inferninho, dos empresários e irmãos italianos Alberico e Giovanni Campana, que foi decisivo para a construção do mito em torno do estreito beco da Rua Duvivier em Copacabana. 

No ano seguinte, liderando o Hot Trio e inspirado por grandes pianistas do hard bop, como Horace Silver e Bill Evans, Sérgio também passou a ser músico dos mais requisitados no não menos histórico Bottle’s Bar (também dos irmãos Campana). Naquele mesmo ano, com outro de seus combos, o Brazilian Jazz Sextet, o pianista participou do III Festival Sul-Americano de Jazz em Punta Del Este, no Uruguai. Respeitado por seus pares e pelos frequentadores do Beco, não tardou para ele também despertar o interesse das gravadoras. Em 1962, com o Hot Trio e a convite do diretor artístico e produtor da Philips, Armando Pittigliani, Sérgio lançou seu primeiro LP Dance Moderno (ouça a versão de Tema Sem Palavras, de Johnny Alf). Meses mais tarde, em novembro, liderando a primeira formação do sexteto Bossa Rio – Paulo Moura (sax), Pedro Paulo (trompete), Octávio Bailly Jr. (contrabaixo), Dom Um Romão (bateria) e Durval Ferreira (violão) – Sérgio se apresentou na histórica noite da bossa nova, no palco do Carnegie Hall, em Nova York, onde brilharam as estrelas de João Gilberto e Tom Jobim.  

Divulgação Cia. das Letras A primeira formação do sexteto Bossa Rio, na histórica apresentação do Carnegie Hall, em novembro de 1962, nos EUA

Em 1963, ainda mais próximo de Pittigliani, e reverenciado pelo poderoso chefão da Philips, Sérgio reformulou o Bossa Rio para as longas sessões de gravações de Você Ainda Não Ouviu Nada!. Foi então que o combo passou a ser integrado pelo saxofonista tenor argentino Hector Costita, o contrabaixista Tião Neto e o baterista Edison Machado (a poderosa cozinha do Bossa Três, do pianista Luiz Carlos Vinhas), e os trombonistas Raul de Souza e Ed Maciel. Em duas músicas, Coisa N° 2 (Moacir Santos ) e Noa Noa (do próprio Sérgio), há também a participação do saxofonista tenor Aurino Ferreira.

Além dos dois temas, o álbum é repleto de clássicos da bossa nova, que ganharam arranjos até então inimagináveis, especialmente no vigor dos solos e nos ataques dos metais, de uma beleza sem precedentes. Estão também em Você Ainda Não Ouviu Nada! releituras: Ela é Carioca, O Amor em Paz e Garota de Ipanema (Tom e Vinicius); Desafinado (Tom e Newton Mendonça); Corcovado (Tom); Nanã (Moacir e Mário Telles); e Neurótico, pérola do samba-jazz, composta pelo maestro J.T. Meirelles, líder do Copa 5 (leia post inaugural de Quintessência dedicado ao álbum O Som). Primitivo, outra inspirada composição de Sérgio e um standard do samba-jazz, completa os dez temas.  

Chover no molhado é falar do que aconteceu a Sérgio Mendes depois de 1966, quando, radicado nos EUA, o pianista lançou, pelo selo A&M Records, Herb Alpert Presents Sérgio Mendes & Brasil’ 66. Impulsionado pelo sucesso da versão de Mas, Que Nada! (assista vídeo de Sérgio se apresentando com o Brasil 66’ no programa de TV americano Eartha Kitt’s Something Special, em 1967), do amigo e colega de gravadora Jorge Ben, Sérgio rapidamente ultrapassou a vendagem de mais de um milhão de cópias e pavimentou o caminho de sucesso que fez dele uma estrela mundial – caminho este que tanto desagradou aos milhares de brasileiros que mencionei no parágrafo de abertura deste texto, muito embora Sérgio tenha sido uma espécie de embaixador, para ouvidos estrangeiros, da boa música feita no País, além de, generoso, ter aberto o caminho para o sucesso mundial de outros dois gigantes, o próprio Ben Jor (ouça a íntegra do LP A L’Olympia, de 1975, gravado ao vivo, em Paris) e Marcos Valle (assista vídeo do compositor tocando Samba de Verão no programa de TV Andy Williams Show, nos EUA, em 1967).       

Aos 72 anos, o pianista já lançou quase 40 álbuns autorais e um sem-número de coletâneas. Sérgio, que se apresentou no réveillon de 2007, na praia de Copacabana, vive até hoje em Los Angeles, onde, no início dos anos 1970, construiu uma imponente mansão, com direito a um belo estúdio de gravação, que teve, como carpinteiro, pasmem, um jovem aspirante a ator, chamado Harrison Ford. Nos anos 1980, Ford tornar-se-ia uma das maiores estrelas de Hollywood ao personificar o aventureiro Indiana Jones.

Ouça a íntegra de Você Ainda Não Ouviu Nada!. Em 2002, por insistência de um ilustre fã, o cantor e compositor Milton Nascimento, o álbum foi relançado em CD, pelo selo Dubas.  

Boas audições e até a próxima Quintessência!    


Comments

10 respostas para “O Sérgio Mendes que o Brasil desconhece”

  1. Avatar de Paulo Mauricio Pimenta
    Paulo Mauricio Pimenta

    Melhor disco instrumental lançado no Brasil junto com o Samba Novo de Edson Machado.
    Parabéns pela lembrança e comentário.Sergio merece…

    1. Caro Paulo,

      Obrigado! “Edison Machado é Samba Novo” é outra obra-prima do período. Aliás, foi tema desse outro post da coluna Quintessência.

      http://brasileiros.com.br/2013/12/a-cadencia-selvagem-do-pai-do-samba-no-prato/

      Forte abraço.

  2. Nina,

    Excelente referência. Não por acaso, você também faz um belo trabalho. Obrigado.

  3. O disco Sergio Mendes e brasil 66
    Que me fez ser Cantora.
    Meus mundos se juntar am Ali
    E me intendi.
    AMO!
    Quero comprar esse disco .
    Texto muito bom!
    Obrigada

    1. Avatar de Airto Moreira
      Airto Moreira

      nao consegui ouvir o lp de Sergio Os bossa Rio pois nao tem um icon Play. definitivamente ou foi um descuido ou esta defeituoso. conheci o Sergio no Brasil e tive a oportunidade de tocar no beco muitas vezes com muitos musicos da epoca e em shows, televisao em shows produzidos por Mielle e Boscoli… por favor mande um Emai falando alguma coisa.
      Obrigado. Airto

      1. Caro Airto,

        Acabo de mandar um e-mail para você. Infelizmente, o link para audição postado originalmente – o texto é de 2013 – não está mais disponível para audição gratuita na Rádio UOL, somente para assinantes do Spotify.

        A propósito, esse texto faz parte de uma coluna em que procurei contar a história de 50 álbuns brasileiros lançados entre 1960 e 1980, entre eles está “Fingers”, um de seus clássicos e o primeiro Sambalanço Trio.

        Segue o link do texto sobre Fingers:

        http://brasileiros.com.br/2013/12/de-itaiopolis-para-o-mundo/

        Aqui, o texto sobre o Sambalanço

        http://brasileiros.com.br/2013/08/samba-jazz-a-paulistana/

        Por aqui, é possível acessar os textos sobre os outros 48 álbuns.
        http://brasileiros.com.br/colunas-e-blogs/blog_quintessencia/

        Uma honra tê-lo por aqui.

        Forte abraço

  4. Avatar de Gustavo Aguiar Rocha da Silva
    Gustavo Aguiar Rocha da Silva

    Até hoje ouço com muito prazer “Nanã”, “Coisa n°2”, “Primitivo” e as demais faixas deste disco. Quanto a “O Som”, do quinteto de J.T. Meirelles, outro músico talentosíssimo, gostaria de destacar a faixa “Contemplação”, onde Luís Carlos Vinhas faz o solo mais bonito de toda a sua carreira.

    1. Gustavo,

      Dois álbuns essenciais e atemporais.

      Obrigado por prestigiar a coluna.

      Abraço.

  5. Avatar de Rafael Cavalheiro Espindola
    Rafael Cavalheiro Espindola

    Obrigado Marcelo pelas dicas a respeito de música, especificamente sobre o disco: Primitivo – Sérgio Mendes e Bossa Rio. Indiscutível a qualidade destes músicos; só feras! Na época existia um certo preconceito em relação ao trabalho do Sérgio Mendes quanto a internacionalização da Bossa Nova fora do País. E o que sobra hoje em dia? Os tradicionalistas devem estar literalmente se “revirando no caixão” pela pobre qualidade da música vista hoje.

    1. Rafael,

      Concordo com você. Sergio foi tido como vilão, mas prestou grande serviço à música brasileira ao levar nossos sons para os lugares mais remotos do mundo.

      “Você Ainda Não Ouviu Nada” segue com força intacta, 50 anos depois.

      Abraço

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