O sucessor da geração Buena Vista

Roberto Fonseca é espiritual, quase místico. Ao entrar e sair do palco do SESC Pompeia, em São Paulo, onde se apresentou no dia 23 de junho, ele se agacha, faz o sinal da cruz e beija a mão. Ao redor do braço e do pescoço, são incontáveis os amuletos da Santeria, religião de raízes africanas que, como o Candomblé baiano, tem origem na mitologia Iorubá. Sua música, no entanto, não é só espírito. De formação erudita, o pianista – herdeiro de uma linhagem que passa pelos nomes de Bola de Nieve, Rubén González e Chucho Valdés – compõe e arranja de forma cerebral, mesclando música clássica, jazz e elementos tradicionais e folclóricos.Depois de conviver quase dez anos com a geração do Buena Vista Social Club, grupo responsável por reconduzir Cuba ao lugar que ocupara no passado, ele descobriu que a música é desfrute. Foi também, a partir de seu relacionamento com Ibrahim Ferrer, Cachaito López, Omara Portuondo, Compay Segundo e outros tantos nomes do Buena Vista, que ele atingiu a maturidade como músico. O pianista excursionou pelo Brasil, do dia 17 a 25 de junho, passando por Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Não foi sua primeira passagem pelo País e, provavelmente, não será a última. Desde 2006, quando gravou parte do álbum Zamazu no estúdio de Carlinhos Brown, em Salvador, ele já tocou várias vezes em palcos nacionais. Sereno, ele conversou com a Brasileiros pouco antes de sua apresentação no SESC.Brasileiros – Quando começou sua história musical e como você define seu estilo?R.F. – Comecei a estudar música aos oito anos. Na verdade, comecei na bateria aos quatro e depois mudei para o piano quando entrei na escola de música. Eu defino meu estilo como “música aberta”. Tem presença de elementos folclóricos, jazz, música árabe, funk, rock…Brasileiros – A música Bulgarian do disco Akokan me chama muita atenção. Por que a Bulgária?R.F. – Eu fiquei impressionado com essa parte do mundo e, especialmente, com a música tradicional da Bulgária. Ela é tão forte e importante. É uma lástima que não se conheça muito. Ela tem uma complexidade rítmica e harmônica que é muito forte, não tem igual em nenhum país do mundo.Brasileiros – Você é uma pessoa religiosa? E qual a relação entre a Santeria e sua música?R.F. – Sou bastante religioso. Em Cuba, temos uma festa tradicional chamada Festa dos Santos. É um evento de uma espiritualidade muito grande, em que são usados tambores batá, um incrível instrumento de percussão. Nessa festa, se canta e se toca muito e tem um momento que você chega a um clímax, que é um universo de espiritualidade muito grande. Minha música tem a ver com tudo isso.Brasileiros – Você já veio várias vezes ao Brasil, qual é sua relação com o País?R.F. – Eu sempre disse que, para mim, o Brasil é como a casa do meu tio. Ou seja, não é minha casa, mas eu me sinto muito bem, muito cômodo, porque apesar de não sermos iguais, somos muito parecidos. Eu respeito muito a música brasileira e o Brasil. Sempre pensei que tocar aqui é como uma prova. Existem muitos pianistas e músicos cubanos, mas, ao longo da história, não foram muitos que estiveram aqui. Isso mostra que o Brasil é muito forte musicalmente para mim.Brasileiros – E musicalmente? Como enxerga a relação entre Cuba e Brasil?R.F. – Temos elementos rítmicos muito similares. A música é uma linguagem universal e nós temos a mesma atitude, estamos ligados à espiritualidade e esse é um traço muito comum. A música brasileira é muito nostálgica e nós cubanos também somos. Isso faz com que a Bossa Nova nos comova muito, pois nós temos o mesmo espírito de cantar a mulher e as coisas bonitas, mas não necessariamente felizes, da vida.Brasileiros – Como é o ensino musical em Cuba?R.F. – Dizem que Cuba é uma fábrica de música. Isso acontece porque nós temos a sorte de ter um ensino musical com uma qualidade muito boa, com muitos professores bons. O mais importante é que o ensino de música é sobre os compositores clássicos europeus, como Bach e Mozart. Por isso, quando crianças, temos de aprender a tocar a música clássica europeia e isso faz com que o nível instrumental e de interpretação seja muito alto. Por isso, a música em Cuba é de alta qualidade.Brasileiros – E por isso Cuba forma tantos pianistas?R.F. – A música erudita europeia tem muito piano, talvez seja por isso que temos essa tradição de bons pianistas.Brasileiros – Como era sua relação com a geração de músicos do Buena Vista Social Club?R.F. – Foi uma coisa muito bonita quando entrei no grupo. Eles queriam um pianista para fazer todo tipo de gravação, porque Rubén González já estava se sentindo um pouco mal. Então, eles me chamaram e foi uma grande surpresa quando entrei no estúdio e todos estavam lá: Ibrahim, Cachaito, Guajiro Mirabal… Isso foi uma prova que eles fizeram, para saber se eu continuaria nas gravações. Felizmente, eu passei e foi aí que comecei meu relacionamento com eles. Foi a minha verdadeira escola de música tradicional cubana. A convivência com essas pessoas que me fez entender que não importa se você é muito famoso ou muito bom em um instrumento, o que nunca vai mudar é de onde você vem. Foi uma experiência linda. Tocar com eles foi como tocar o céu.Brasileiros – Você era muito próximo de Ibrahim?R.F. – Sim, nossa relação era incrível. Por isso, eu fiz uma música chamada El Niejo (está no disco Zamazu), que é a junção de niño com viejo. Ao unir as duas palavras, pretendi mostrar a união que eu tinha com Ibrahim. Às vezes, ele era como meu avô, às vezes como meu pai, como minha mãe e até como meu filho. Isso porque tínhamos uma relação muito bonita e sempre estávamos fazendo brincadeiras um com o outro. Por causa dele, comecei a estudar mais e me entreguei à música. Seu sonho era cantar boleros, mas as pessoas diziam que ele não servia para isso. O que é um absurdo. De qualquer jeito, quando ele concretizou seu sonho, ele confiou em mim para fazer a edição musical do disco Mi Sueño. Fiquei muito contente, porque fui responsável por ajudá-lo a tornar seu sonho realidade. E me senti muito, muito mal quando ele faleceu.Brasileiros – Está trabalhando em um novo álbum?R.F. – Acabei de gravar. Ele é um pouco mais espiritual que o Akokan e tem a mesma força do Zamazu. Fizemos uma fusão com música africana, principalmente do Mali. Estou contente com o resultado e espero vir ao Brasil apresentá-lo.


Colaborou Ricardo Carvalho, de Carta Capital – Clique aqui para ler entrevista prévia publicada no site da revista semanal

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