Criar uma companhia de teatro partindo do zero não é tarefa fácil. Muito menos quando não há apoio – público ou privado – e o time reunido é formado por jovens atores com uma proposta de linguagem radical e independente. Mas foi assim mesmo que surgiu, em 2011, o 28 Patas Furiosas, grupo que se articulou aos poucos e apresenta agora um consistente trabalho de estreia. “A falta de dinheiro nos provoca a dar respostas criativas e até influencia na nossa estética, mas essa falta de estrutura tem um limite”, explica Wagner Antonio, diretor de Lenz, um outro, que fica em cartaz no espaço da companhia até 4 de maio. Nesse sentido, ter um espaço próprio na Vila Clementino, em São Paulo, – cedido por pessoas próximas – se tornou o grande possibilitador da continuidade do trabalho.
Lenz, um outro se inspira na novela escrita pelo alemão Georg Büchner (1813-1837) sobre o poeta e dramaturgo esquizofrênico Jakob Lenz (1751-1792). A trajetória de Lenz – tanto em suas andanças pelos campos quanto na casa do mestre Oberlin, que o recebe – surge em meio aos surtos, devaneios e questionamentos do personagem. A narrativa fragmentada funde real e imaginário, tratando a esquizofrenia não como patologia, mas como a possibilidade de uma outra existência. Os outros personagens que surgem no enredo dão dinâmica ao espetáculo e criam usos dinâmicos do espaço cênico, cercado por plateia dos dois lados. Além disso, a cada apresentação há um ator diferente convidado, que surge da plateia como um estrangeiro que chega para tentar levar Lenz de volta para a família.
Para falar sobre a nova companhia e sobre a peça em cartaz, a Brasileiros entrevistou Wagner Antonio, 28, que estreia na direção após uma série de trabalhos como iluminador (com nomes como Roberto Alvim, Caetano Vilela e Cibele Forjaz) e alguns como ator. Leia abaixo:
Brasileiros – Como surgiu o 28 Patas Furiosas? Quer dizer, qual foi a motivação para criar um grupo teatral novo, do zero?
Wagner Antonio – O 28 Patas Furiosas surge em 2011 do encontro entre dez artistas que vieram de diferentes escolas de teatro de São Paulo com o desejo de criar uma dramaturgia própria. Estamos em busca do nosso próprio treinamento para conquistar um experimento cênico que esteja aliado as nossas propostas dramatúrgicas.
Nessa linha, quais as principais buscas e propostas do grupo?
A nossa busca é sintonizar nossa dramaturgia a uma encenação inventiva que proporcione um cruzamento efetivo do ator com uma arquitetura cênica, ou seja, um ator em composição direta com o espaço e todos os elementos que constituem uma cena (texto, cenário, luz, música etc.). Além das questões que dizem respeito a cena, a nossa proposta é também investigar a linguagem teatral a partir de projetos que não se limitem a estrear espetáculos, mas a pensar alternativas para viabilizar e articular os nossos projetos na cidade. Estamos em atividade permanente no “Espaço 28”, lugar que vem sendo fundamental para nossa existência artística e que vem alimentando muito o nosso imaginário criativo.
É muito difícil se estabelecer e criar uma identidade própria em meio a uma cena com tantas companhias? Quais tem sido os grandes desafios?
Sem dúvida nenhuma que, no nosso caso, o maior desafio é conseguir manter nossas atividades sem verba nenhuma. Estamos ativos desde 2011 e nunca ganhamos um edital ou algo parecido. O que nos mantém ativos hoje para driblar a falta de incentivo financeiro é a oportunidade de ter um espaço próprio e o apoio de muitas companhias e parceiros – que muito provavelmente vivem ou viveram essa mesma dificuldade. A falta de dinheiro nos provoca a dar respostas criativas e até influencia na nossa estética, mas essa falta de estrutura tem um limite. Estamos tentando uma série de ações pra não ficar na dependência de uma “aprovação” e ter verba pra continuar com as nossas produções, mas isso não quer dizer que não queremos receber apoio financeiro. Ganhar algum prêmio ou edital nos daria mais gás para produzir projetos mais ousados e maiores.
De onde vem o nome 28 Patas Furiosas?
Uma das primeiras atividades do grupo foi um estudo do Boca de Ouro, do Nelson Rodrigues, que fizemos com direção da Sofia Botelho na USP. Nesses estudos nos deparamos com a seguinte frase do Nelson: “Em verdade, aberto o pano, Boca de Ouro se revela, desde o primeiro momento, uma peça de 28 patas furiosas. Poderão elogiá-la, e eu diria – outro equívoco…”
Com a primeira peça, o 28 Patas surge já com uma linguagem radical, experimental, digamos assim. Isso é também uma influência que você traz dos seus trabalhos de iluminador com outros diretores, como Roberto Alvim, Caetano Vilela e Cibele Forjaz?
Sim, essas três figuras me influenciam muito. Acho que direta ou indiretamente eles me incentivaram a experimentar como encenador. O mais curioso – ou não – é que os 3 são uns baita iluminadores e a luz é um ponto radical no trabalho deles.
Estrear como diretor era uma vontade antiga? Como tem sido a experiência?
Antes de ser iluminador eu me formei como ator na Escola Livre de Teatro de Santo André. Acho que a soma entre o ator e o iluminador é que fundiram esse caminho para dirigir um espetáculo. Prefiro pontuar minha primeira direção como mais uma possibilidade ao invés de uma vontade antiga. Mas confesso que a experiência é forte e quero me apropriar mais dessa função.
Entrando mais na peça. Lenz, um outro é a primeira montagem do 28 Patas. Como foi a escolha deste texto? O que dele “pegou” em vocês?
A primeira percepção que eu tive da novela foi a impossibilidade de transformar aquele mundo em teatro. Lendo os outros textos de Georg Büchner é que o convite para Lenz se firmou. Se para montar Büchner o desafio é encarar o seu labirinto dramatúrgico, Lenz se destaca como um prato cheio para se encontrar como encenador. A novela se desenvolve em um emaranhado de questões, passando por provocações estéticas, filosóficas e religiosas que se configuram como um olhar político quase que enigmático, muito diferente dos seus outros textos onde sua visão ideológica é mais exposta. Levantar a discussão de um artista que questiona uma ordem estabelecida – em um primeiro momento filosófica, depois espiritual – deflagrando uma série de problemáticas que vão se acumulando em uma explosão psicológica é algo que se relaciona profundamente nesse mundo esquizofrênico que vivemos.
Jakob Lenz viveu no século 18, e o texto de Georg Büchner é do século 19. A peça no entanto, parece fazer muito sentido hoje. Como você vê isso? Qual é a atualidade desta história?
A atualidade está no encontro entre Lenz e Büchner. É impressionante como essas duas figuras reverberam no nosso tempo, sendo ela como obra ou personalidade. Não é a toa que eram incompreendidos no tempo em que viveram, cada um no seu século. A nossa vontade é que essa dupla ressoe no nosso tempo, século 21, com toda a explosão que eles causam na ordem vigente. Sinto que o encontro entre esses dois artistas (duplos) nos indica uma nova possibilidade de percepção dos sentidos, os dois viveram no limite e com muita urgência, naturalmente eles exigem algo de novo, algo que ainda não foi experimentado. Eles são uma provocação a linguagem. “Era como se atrás dele algo o seguisse, e como se algo horrível devesse atingi-lo, algo que seres humanos não podem suportar, como se a loucura o perseguisse a galope” (Lenz, de Georg Büchner).
A esquizofrenia é um tipo de sofrimento psíquico grave, e assim é tratada de modo geral. Mas me parece que a peça trabalha este transtorno mental de um modo diferente, tirando inclusive uma beleza daí. Como é isso?
No nosso espetáculo não estabelecemos o Lenz como um homem esquizofrênico expondo ou até tentando discutir a patologia. Na nossa montagem nós levantamos essa questão como procedimento criativo e a esquizofrenia aparece de maneira poética, como um apelo para uma nova possibilidade de existência. Quase que como uma abertura para um “outro” nascer desse “eu” em crise. A loucura e o delírio aparecem formalmente na tentativa de construir e destruir os fluxos das cenas. Existe um deslocamento contínuo do espetáculo onde as cenas nascem delas mesmas, nunca fechando uma ideia. É um grande jogo de relações que se desenvolvem infinitamente.
Delírios e alucinações que surgem deste ponto de vista, mais como possibilidade do que patologia, nos mostram também que a fronteira entre real é imaginário é muito menos clara do que costumamos pensar…
A poética da nossa montagem é justamente esse encontro entre o real e o imaginário se afirmando, se fundindo sem limites. Acompanhamos um homem que vai assumindo a sua subjetividade e sua fragilidade como forma de existência. Em um certo sentido o espetáculo afirma (mesmo cheio de dúvidas) esse salto no desconhecido pra encontrar alguma nova forma de encarar esse mundo tão duro e rígido. Acreditamos que essa também pode ser uma boa sugestão de ponto de vista para a arte.
Por fim, a cada apresentação um ator convidado participa. Qual é a ideia?
A ideia de ter um ator convidado em cena surge da nossa vontade de sempre buscar uma relação viva com outros artistas, outras histórias. Nesse espetáculo essa vontade se concretiza na medida em que a cena exigia a presença de um estrangeiro que chegasse para levar o Lenz de volta pra sua família. Formalmente era perfeito ter um ator que chegasse com outras referências dentro do espetáculo, causando um ruído nesse encontro entre o Lenz e um suposto estrangeiro. Foi perfeito, chamamos um monte de atores que admiramos e que queríamos muito trabalhar.
Serviço – Lenz, um outro
Espaço 28 (Rua Dr. Bacelar, 1219 – Vila Mariana)
De 22/03 a 04/05/2014; sábados e domingos, às 19h
R$ 30 e R$ 15 (meia)
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