O transe negroide de Ogum e Xangô

No mais recente post de Quintessência! falamos do inspirado encontro entre Orlandivo e João Donato.  O texto de hoje também jogará luz sobre os bastidores de obra musical feita a quatro mãos (e que mãos!). Duplo, o álbum da semana flagra um par de ícones da MPB e dois dos mais influentes violonistas do Brasil. Diretamente influenciados por João Gilberto, Jorge Ben (conservemos aqui e, ao longo do texto, seu nome artístico de batismo) e Gilberto Gil foram essenciais para definir as sonoridades que o instrumento perseguiria depois que João revolucionou o modus operandi tupiniquim de lidar com as seis cordas de nylon, ao imprimir a elas sua batida diferente e sua miríade de belas harmonias.

Lançado em 1975, Gil & Jorge (Ogum & Xangô) é, seguramente, dos mais anárquicos álbuns da música popular feita nos anos 1970. Tal valor pode ser sustentado por dois fortes argumentos: 1) Trata-se de um disco duplo, cujo primeiro LP tem apenas duas faixas. As quatro faces da bolacha somam quase 1′ 20″, composta de versões de composições de Gil e Jorge, com durações que vão de 6 a mais de 14 minutos! 2) O álbum é repleto de grandes canções, que poderiam ter enorme apelo comercial, mas justamente pela extensão dos registros Gil & Jorge acabou se tornando um fiasco de vendas. Num período de ditadura de canções com, no máximo, três minutos, que rádio ou locutor tocaria uma faixa com 14 minutos? Ou, melhor, quanto custaria o “jabá” para fazer com que tal música explodisse no dial e integrasse as paradas de sucesso? O triplo, quádruplo?!

Lançado pela Philips, o registro foi feito muito mais pelo propósito de celebrar a relevância dos dois artistas do que por mera expectativa comercial da gravadora. No mesmo ano, Gil lançava o primeiro capítulo da trilogia Refazenda, Refavela e Realce. Jorge, que havia acabado de lançar a obra-prima A Tábua de Esmeraldaconcluía o não menos inspirado Solta o Pavão. Quando entraram em estúdio para, em uma noite, registrar Gil & Jorge, tiveram passe livre para fazer dele o que bem entendessem. Tanto que deram ao disco aspecto libertário desde a escolha de não definir arranjos prévios até a decisão de elencar banda das mais enxutas fechando um quarteto com o grande percussionista Djalma Corrêa e o baixista Wagner Dias.

Em julho de 2009, em reportagem em que relembrou 40 anos de sua carreira a partir de momento divisor – sua expulsão do País pelos militares e o exílio em Londres –, Gil, a propósito de Gil & Jorge, confidenciou a este repórter: “Tivemos passe livre. Jorge é muito audacioso, embora possa não parecer, pelo conjunto das coisas, do comportamento dele, do modo como ele reage ao mundo. Não parece, mas, na coisa artística, na realização musical, ele é muito arrojado, muito solto e livre. Ele é um bluesman, como se fosse um daqueles americanos libertários e fortes. Quem conduziu o disco para aquela situação foi Jorge. Lembro muito bem de um momento em que tínhamos preparado uma canção dele pra gravar, nós ali: ‘…vamos ensaiar a tonalidade’. Começamos: ‘…tá gravando!’. Ele ordenou a introdução e entrou em outra música. Entrou em Morre o Burro, Fica o Homem, que não era aquela que a gente iria gravar. Fui seguindo ele, fomos todos o seguindo e ficou assim mesmo. Pra você perceber o grau de liberdade, improvisação e descontração das sessões. É um disco muito celebrado e igualmente querido por nós. Um disco que nos marcou muito, a ponto de, vez em quando, falarmos em reeditá-lo para fazermos um reencontro. Tenho muita vontade e ele também. É possível que ainda aconteça.” A entrevista tem quatro anos e, por enquanto, tão esperado reencontro não aconteceu. 

Voltemos, então, a história de Gil & Jorge, cuja gênese é contada, à seguir, por aquele que era chamado pelo Babulina de “Chefe Patropi”, o sírio André Midani, um dos mais influentes executivos da indústria fonográfica do País nos últimos 50 anos, em relato que está publicado na sua autobiografia Música, Ídolos e Poder: do vinil ao download. Lançado em 2008, pela editora Nova Fronteira, infelizmente, o livro é dos títulos que estão fora de circulação, por conta de processos judiciais abertos por parentes de personagens. “O Eric (Clapton) chegou com uma magnífica guitarra branca. Gil, Jorge e (Cat) Stevens estavam com seus violões ou suas guitarras. Sentados em círculo no chão, Jorge, Gil, Stevens e Clapton deram início a uma incrível jam session. Cat Stevens foi o primeiro a sair: – Eu não sou guitarrista para enfrentar isso!, disse. Pouco depois, foi a vez de Clapton largar sua guitarra e se transformar num espectador fascinado. De tal maneira que ficaram o Jorge e o Gil tocando um de frente ao outro, visitando mundos musicais estranhos e desconhecidos para mim, um comum mortal que assistia ao concerto como um desafio entre cavaleiros medievais africanos. O Gil improvisava, dava voltas e voltas de assustadora virtuosidade, enquanto Jorge, impávido, conservava sua essência fundamental, que é o ritmo. De vez em quando, à custa de vertiginosas manobras, Gil se apoderava do ritmo por minutos, que Jorge retomava; outras vezes, seguravam o ritmo juntos. Minha sensação era de que tinham se fundido por uma força magnética poderosa… Pedi aos dois que entrassem em estúdio o mais rápido possível para registrar aquela importante colaboração artística, sob a supervisão de seus produtores Paulinho Tapajós e Perinho Albuquerque. Dali nasceu o antológico álbum Gil & Jorge.” (aqui vale um parêntese: infelizmente, em decorrência de um câncer, o grande Paulinho Tapajós morreu no dia 25 de outubro, se você não sabe de sua relevância para a história da música brasileira, comece lendo este breve perfil do Dicionário Cravo Albin). 

A análise do Chefe Patropi reverbera texto escrito por Armando Pittigliani, em 1969. Antecessor do sírio na Philips, Pittigliani foi quem “descobriu” Jorge Ben no começo dos anos 1960, no Beco das Garrafas, e o levou à gravadora para registrar sua estreia triunfal Samba Esquema Novo. Na contracapa do álbum homônimo de Jorge, lançado sob a batuta tropicalista do maestro Rogério Duprat, em 1969, Pittigliani sentencia sobre Babulina: “A rítmica marcante de suas composições aliada ao incrível ‘balanço’ negroide de seu violão ‘suigeneris’ tornaram suas singelas letras meras pontuações de ritmo integradas em um todo essencialmente selvagem e, ao mesmo tempo, lírico.”

E é justamente essa percepção de um lirismo intuitivo e selvagem que impregna as nove faixas de Gil & Jorge, tanto nas interpretações das letras – mesmo nas de Gil, que são mais complexas –, quanto nas dinâmicas livres de improviso dos violões. Quatro canções são de Gil, Essa é Pra Tocar no Rádio, Filhos de Ghandi, Jurubeba e Nêga (versão da canção composta por ele para o disco londrino de 1970); outras quatro de Jorge – Meu Glorioso São Cristovão, Morre o Burro, Fica o Homem, Taj Mahal e Quem Mandou / Pé na Estrada (aliás, ouça também a versão de Wilson Simonal lançada em Alegria! Alegria! Vol. 4). Fecha o álbum duplo a vinheta Sarro (nome mais que adequado), composta por Gil e Jorge.

Em 1992, o álbum foi lançado nos EUA, pela gravadora Verve, com a capa alternativa (confira e leia resenha do portal Allmusic). A arte original do LP duplo, que abre esse post, foi criação do genial artista gráfico baiano Rogério Duarte (leia perfil).    

Ouça a íntegra de Gil & Jorge. Se não conhece o disco, prepare os ouvidos para uma viagem das mais aprazíveis. 

Boas audições e até a próxima Quintessência! 


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