Os pracinhas e o olhar estrangeiro

Um tenente da Alemanha nazista foi perpetuado em crônica do escritor Rubem Braga, que acompanhou a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália como correspondente de guerra. No campo de batalha, o tenente surgiu no final da tarde de 11 de março de 1945, logo depois de os brasileiros atacarem um ponto de apoio alemão em uma pequena igreja, a Capilla il Monte, próximo ao Monte Belvedere, nos Apeninos, a cadeia de montanhas que percorre a Itália continental de noroeste a sudoeste. “Choveram sobre a posição cinquenta tiros de morteiro e 25 de artilharia. Minutos depois o fogo ardia sobre os escombros. E uma bandeira branca emergiu”, descreveu Rubem Braga no livro Com a FEB na Itália, em 1945. Quando os alemães já haviam se rendido, contou o escritor, surgiu do nada um tenente de outra companhia que “quis agarrar as armas que já estavam em poder dos nossos homens e convencer os seus homens a continuar lutando”.

Com apenas 20 anos, o tenente alemão acabou levado preso junto com o grupo que se entregava aos soldados da FEB, conhecidos no Brasil como pracinhas. Na crônica de Rubem Braga, o tenente entrou anônimo, mas, décadas depois, ganhou nome, sobrenome e teve parte de sua história recuperada pelo jornalista William Waack, no livro As Duas Faces da Glória – A FEB Vista por Seus Aliados e Inimigos, que foi publicado em 1985 e acaba de ser relançado pela Editora Planeta. O antigo tenente é Klaus Dietrich Polz, um dos 28 homens que combateram contra a FEB e foram, muito tempo depois, entrevistados por Waack, para relatar como os adversários alemães e os aliados americanos percebiam os soldados brasileiros durante o conflito.

Cerca de 25 mil brasileiros foram enviados para o front na Itália. Eles começaram a desembarcar na Europa em julho de 1944, para lutar ao lado dos Aliados, incorporados ao V Exército dos Estados Unidos. Haviam sido arregimentados e treinados no decorrer dos oito meses anteriores, a partir da criação da FEB, que tinha adotado o lema “A cobra está fumando”. Era uma resposta ao ditado popular que dizia ser mais fácil a cobra fumar do que o Brasil entrar na guerra. Quando isso aconteceu, as tropas aliadas na Itália tinham como objetivo combater as tropas do Eixo estacionadas na península. Na França, os Aliados preparavam sua ofensiva final. Como Waack lembra em As Duas Faces da Glória, os soldados da FEB atuaram em um cenário secundário do teatro da guerra. Ainda assim, chegaram a participar de conquistas expressivas, como a de Monte Castelo e de Montese, no começo de 1945. Ao final da guerra, que completa 70 anos em maio, a FEB havia perdido 454 homens.

Para construir a narrativa alemã a respeito dos soldados brasileiros, Waack entrevistou antigos integrantes do Exército alemão e trabalhou com a documentação oficial que restou sobre o conflito nos Apeninos. Os diários de guerra das tropas que combateram contra os brasileiros, assim como outros documentos, desapareceram em um incêndio em Potsdam, subúrbio de Berlim, poucos dias antes de a guerra acabar. Sobreviveram, porém, alguns registros, como uma coleção encontrada pelo jornalista em arquivo do Exército em Freiburg, sudoeste da Alemanha. Eram comunicados internos, mencionando a presença de brasileiros na tomada da cidadezinha de Massarosa, ao norte de Pisa.

No campo de batalha, no entanto, poucos se deram conta de que tinham brasileiros diante de si. Alguns souberam disso 40 anos depois de terminado o conflito, quando procurados por Waack. “Em um dos casos, a ignorância sobre os brasileiros não deixa de ser irônica: o oficial em questão tornou-se milionário depois da guerra e, entre diversas atividades econômicas, assumiu o controle majoritário de uma fábrica de termostatos em São Paulo”, registrou o jornalista. Waack também apontou um detalhe instigante: embora oficiais da linha de frente ignorassem a presença brasileira no embate, panfletos em português chegaram a ser jogados pela artilharia alemã nos Apeninos. Havia também emissões de rádio em português, com propaganda antibrasileira.

Entre os entrevistados por Waack, quem se lembrou em detalhes do contato com os brasileiros foi o tenente Klaus Dietrich Polz, aquele oficial de 20 anos preso ao tentar impedir a rendição dos colegas. Depois da guerra, Polz tornou-se professor de uma escola agrícola na antiga Alemanha Oriental, onde foi localizado por Waack, em 1995. Contou então que ainda se recordava do prato de feijão com salsinha que recebeu logo após a prisão e de só ter entregue as armas que carregava ao comando do batalhão brasileiro. As outras lembranças que marcaram o antigo tenente são relativas ao trajeto em um caminhão dirigido por um motorista negro. “Era uma grande novidade para mim. Eu nunca tinha visto um homem negro”, contou Polz.

Também localizado por Waack, o ex-coronel Heins Herre desdenhou da FEB: “Nós não levávamos os brasileiros a sério”. Dois outros antigos oficiais das forças alemãs, Lotar Mull e Herbert Gärtner, revelaram impressões bem mais positivas dos soldados da FEB. Terminada a guerra, Mull e Gärtner integravam um grupo de prisioneiros que atravessava a pé a cidade de Parma quando começaram a ser ameaçados por moradores. “Os soldados brasileiros que nos guardavam foram muito enérgicos e nos protegeram da fúria da população”, disse Mull a Waack. Gärtner acrescentou: “Ao meu lado, um soldado negro ainda disparou sua arma para o alto para conter o povo”.

Os relatos de Mull e Gärtner são exceções. No campo inimigo, a presença brasileira foi, na maioria das vezes, ignorada. Entre os aliados, por sua vez, o contato foi complicado desde o desembarque dos brasileiros e piorou após as derrotas amargadas pela FEB nas primeiras investidas contra os alemães, em novembro e dezembro de 1944. No Arquivo Nacional, em Washington, nos Estados Unidos, Waack encontrou relatórios que, se divulgados durante o conflito, teriam abalado de vez as relações entre os “irmãos de armas”. Em um desses relatórios, o oficial é implacável: “Um contingente de oficiais brasileiros que demonstraram incompetência ao executarem suas tarefas teria sido despedido caso estivesse no Exército americano”.

Em outros dois documentos localizados por Waack no Arquivo Nacional, as queixas dizem respeito à manutenção de veículos e armamentos. “Três entre cada cinco veículos observados nas estradas operam com correntes, desgastando necessariamente os pneus, são dirigidos a velocidades excessivas por oficiais e soldados, nas mais irregulares manobras, os livros mostram que muitos veículos não foram lubrificados nem revisados periodicamente”, diz o primeiro relatório. “Uma inspeção em uma das companhias de armas pesadas e duas de fuzis revelou que 90% das armas menores estavam sujas nos canos. O pessoal não parecia saber da necessidade de manter limpas as armas, nem estava familiarizado com os métodos de limpeza”, acrescenta um segundo documento.

As críticas atingiam todos os setores. “Inspecionei o posto médico do batalhão, localizado num curral, onde haviam estado galinhas, vacas etc., e encontrei suprimentos médicos jogados ao redor, caixas abertas e instrumentos deixados a descoberto”, registra um oficial americano. “Há um absoluto desrespeito pela higiene de qualquer tipo. Embora haja algum esforço para construir latrinas e ver se então sendo usadas, defeca-se nas estradas, caminhos ou prédios vazios.” Com o decorrer dos meses, as críticas foram amenizadas. Coincidência ou não, a mudança aconteceu depois de as tropas brasileiras terem melhor desempenho no campo de batalha.


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