Partituras da floresta

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O compositor e maestro Carlos Gomes. Foto: Reprodução / EBC

Em 2002, após um longo hiato que durou décadas, o Festival de Ópera do Theatro da Paz, em Belém do Pará, voltou à cena com toda força, retomando uma tradição secular. Hoje é parte do calendário operístico do País, chamando a atenção de um público de fora do estado nortista e formando novas gerações de músicos, cantores e artistas. Na edição de 2015, teve a participação do cineasta Fernando Meirelles como diretor cênico de Os Pescadores de Pérolas, de Georges Bizet.

Este ano se realiza sua 15ª edição, com uma programação menos arrojada do que em outros tempos, mas mesmo assim repleta de música de excelente qualidade, que se estende ao longo de quase dois meses. A programação teve início em 6 de agosto, com um concerto da Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz, que teve como convidada especial a soprano paraense residente em Berlim Adriana Queiroz. A programação teve continuidade com Los Pájaros Perdidos – o Tempo do Tango, espetáculo baseado na obra musical de Astor Piazzolla e Carlos Gardel, que contou com a cantora mexicana Eugenia León e o bandoneonista argentino Martín Mirol. O grande destaque do festival é a montagem de Turandot, de Giacomo Puccini, com a soprano Eliane Coelho, nos dias 21, 23 e 25 de setembro. O festival termina em outubro, perto da data maior dos paraenses, o Círio de Nazaré. Paralelamente, haverá ainda lançamentos de livros e palestras.

Isso dá bem a ideia de todo o aparato que envolve a realização de um evento desse porte, tendo em conta a distância dos grandes centros do País. Imaginemos, então, como foi o início de toda essa história, quando o primeiro festival se realizou, quase no final do século XIX.

Na verdade, a presença da ópera nessa região do Brasil é um fato que atravessa os séculos e atingiu tal grau de importância que cidades como Belém e Manaus passaram a fazer parte dos roteiros de companhias europeias; artistas, compositores e instrumentistas viveram nessas cidades, e muitos estudantes receberam bolsas para estudar na Europa.

Presume-se que essa história tem seus primórdios na época colonial, com a ação desenvolvida por jesuítas como Diogo da Costa e Padre Vieira, que atuaram no Pará. Para atingir seus intuitos de catequização, realizavam inúmeras encenações teatrais de cunho religioso, nas quais utilizavam o canto, a dança e a música. Era natural que esse trabalho se refletisse na sociedade, ainda mais considerando-se que não havia grandes opções de entretenimento nessas regiões.

Em Belém do Pará existem testemunhos de que já em 1775 fora construída uma casa de ópera, nos moldes das existentes na Bahia e no Rio de Janeiro. Com a chegada da família real, em 1808, esse processo se intensifica. Mas o auge mesmo ocorre num período que se estende do segundo quartel do século XIX até as duas primeiras décadas do século XX,  com o ciclo da exploração da borracha, que impulsionou tanto o consumo de música, dança e ópera como transformou o traçado urbano das duas principais cidades amazônicas.

O filme Fitzcarraldo (1982), do diretor alemão Werner Herzog, retrata bem a febre que tomou conta da região nessa época. O personagem principal, que de fato existiu, é interpretado à perfeição por Klaus Kinski. Fã de Enrico Caruso, ele sonha construir uma casa de ópera no meio da floresta amazônica. Para isso, se transforma num alucinado transportador de borracha, depois de tentar levantar dinheiro com uma fábrica de gelo, com resultados obviamente desastrosos.

Se essa história tem algo de loucura, fato é que uma genuína revolução aflorou no Norte do Brasil. As “folies du latex”, como ficaram conhecidas essas manifestações culturais, se mesclaram com a “belle époque” amazônica e o que era uma densa floresta parcamente habitada se viu iluminada por áreas de grande fausto e pompa. Com o suporte de capital garantido, as famílias mais abastadas não apenas enviavam seus rebentos para estudar na Europa como consumiam a última moda a partir da capital francesa, e não do Rio de Janeiro; estavam mais informados sobre os acontecimentos europeus do que da própria realidade da capital da colônia.

No território musical isso era flagrante. Como afirmou o mais importante historiador desse tema, o paraense Vicente Sales: “É nesse período que dezenas de jovens paraenses vão se formar nos conservatórios de música europeus(…) entre outros, José Cândido da Gama Malcher, Clemente Ferreira Júnior,  Ernesto Antonio Dias, Meneleu Campos, Paulino Chaves, Henrique Gurjão”. Os jovens músicos obtinham apoio também de empresários e do governo provincial.

Há indícios de que a ebulição maior começou na década de 1840, quando óperas e operetas se apresentavam em Belém, passando a fazer parte do roteiro das companhias estrangeiras  vindas em excursão do Rio de Janeiro. Mas ainda não havia um palco digno para receber o público, que primava pelo gosto sofisticado e era apaixonado por música. Isso só se concretizou em 1878, quando foi inaugurado o atual Theatro da Paz, que veio a se tornar um dos locais mais frequentados pela fina flor do local e de fora, cenário perfeito da glorificação do compositor Carlos Gomes, que havia regressado ao Brasil depois do longo período em que viveu na Itália, assim como da bailarina Anna Pavlova, que lá se apresentou já no século XX.

A primeira temporada lírica decorreu dois anos depois, em agosto de 1880.  Os pontos altos foram a apresentação de Ernani, de Verdi, mas principalmente a première de Il Guarany, de Carlos Gomes, que granjeou um sucesso fragoroso. Começava aí a relação de fascínio do público nortista pelo músico campineiro, que culminaria com a sua mudança rumo à capital paraense, para dirigir o Conservatório de Música, a partir de 1896. Poucos meses depois o compositor morreu; seu funeral reuniu mais de três mil pessoas, o que demonstra como sua obra era admirada na cidade.

O sucesso da temporada inicial foi tão grande que ficou em cartaz por seis meses, e com uma repercussão extremamente significativa, inspirando inúmeras outras iniciativas que acompanhavam o calendário dos eventos líricos. Foi então criada a Associação Lírica Paraense, cuja função era planejar a vinda das companhias europeias, além de gerir os espetáculos em cartaz. Organizavam-se récitas de gala e também gratuitas, beneficentes. Os jornais acompanhavam diariamente o fervilhar cultural; publicavam-se anúncios, críticas, análises, e programas eram distribuídos ao público, além da divulgação em cartazes e várias publicações periódicas.

O mais interessante é que tiveram o cuidado de levar os espetáculos às populações mais simples. Para isso, eram organizados saraus, bandas de músicas foram montadas e até conjuntos de câmara. Este público tinha como predileção as obras de Verdi, Donizetti, Bellini e Rossini.

Com tudo isso, e  apesar da distância, Belém e Manaus se tornaram um ponto incontornável para as companhias que vinham se apresentar no Brasil, sabendo de antemão que encontrariam um público fervoroso e ávido em consumir a boa música. O cenário exuberante também era levado em conta. O que, a despeito de inúmeras intervenções predadoras, vale até hoje.


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