[98 de 100] Pecados nada infantis das crianças, segundo Otto Lara Rezende

 

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É compreensível que, depois de lançar o livro de contos “Boca do Inferno”, em 1957, o cronista e escritor mineiro Otto Lara Rezende (1922-1992) tenha recusado uma série de proposta de editoras para relançá-lo nos 35 anos seguintes, isto é, até sua morte. Somente seis anos depois de ele ter partido, a família autorizou sua reedição. Mal compreendido, o livro teve receptividade implacável da crítica moralista e frustrou o autor, que decidiu mantê-lo literalmente às escondidas. A explicação: todas as sete histórias têm como personagens centrais meninos (a maioria) e meninas com, no máximo, 12 anos de idade, que vivem experiências trágicas, quase sempre violentas, a partir de algum fato extraordinário em suas breves vidas. Em um Brasil conservador e cristão, Rezende se mostrava um autor de ousadia impressionante, sem pudores quanto a sexo e outros tabus. E a muita violência também.

Nessa obra de unidade estilística e temática irretocável, talvez o exemplo mais chocante seja a história “Três pares de patins”, sobre a experiência de Bentinho, sua irmã Débora e o amigo Francisco, ainda crianças, que decidem pular o muro do cemitério da cidade em um fim de tarde, depois de brincarem de patins. Bentinho faz sexo com a irmã e a cede ao amigo, que faz o que lhe é ordenado para não parecer covarde, e com certo consentimento da garota. “Boca do Inferno” é o nome de uma gruta onde o órfão Trindade se refugia quando é castigado pelo impiedoso tutor, na história que abre o volume, “Filho de Padre”. Até que, um dia, o garoto decide se vingar para sempre do religioso, assassinando-o sem sentir culpa. “Dois Irmãos” é uma obra-prima da narrativa curta brasileira: Gilson, após fugir de algumas aulas de catecismo para ir ao cinema e tomar sorvete, torna-se a ovelha negra da família. Com a morte de Mauro, o irmão mais velho e tido como exemplo de criança santa, sua vida se torna um inferno por ser cobrado para que imitasse o falecido. Um dia, ele toma uma decisão terrível.

“O Porão” é uma daquelas histórias que deixariam Rubem Fonseca orgulhoso de tê-la escrito, a partir do seu estilo inconfundível de estética do grotesco e da violência, que estabeleceria duas décadas depois. O final absolutamente aterrador antecipa em décadas os filmes hoje tão comuns sobre crueldade infantil. O breve “Namorado morto” conta a obsessão da pequena Doquinha pelo colega Mário, um esnobe que lhe nega atenção. E ela passa de modo alucinado a desejar sua morte e a imaginá-lo no caixão, sem esperar que tivesse, de fato, de enfrentar essa situação.  “O Segredo” mostra o dilema de uma mulher abandonada pelo marido, cujo primo adulto bolina sua filha ainda criança. Puni-lo significa perder uma fonte de renda para sustento delas e da avó. E a dignidade da filha cai para segundo plano. “O Moinho”, história que fecha o livro de modo brilhante, explora a solidão infinita de Chico, um menino órfão de dez anos de idade que tenta fugir das chibatadas diárias do padrinho Rodolfo e inicia uma epopeia em busca da liberdade de da atenção dos adultos.

Sete histórias sinistras, sete tragédias, sete transgressões. Situadas no contexto de uma cidadezinha mineira, onde tudo transcorre no tédio e na mesmice da vida interiorana, tem em comum o mergulho de cabeça no lado mais sombrio da alma humana. E o fato de fazer isso com crianças torna o conjunto ainda mais violento, bizarro ou, como preferem alguns críticos, insólito. Em 2014, politicamente incorreto. A intenção do autor é clara: demolir sem rodeios a hipocrisia das relações familiares e sociais, centrada em rigoroso código de conduta secular, amparada na estrutura da vida comunitária, ritos religiosos e tácitos pactos de família, em que a culpa cristã pode destruir e até mesmo levar crianças a atos extremos. Os protagonistas são menores que, de uma hora para outra, veem-se subtraídas da  felicidade e sugados pela crueldade da existência, no exato momento em que são obrigadas a passar da infância pura e protegida ao inferno da adolescência – que as conduzirá forçadamente à idade adulta e a um mundo impiedoso para quem ousar transgredir.

O autor ficaria profundamente magoado por causa da reação negativa que a obra provocou na imprensa, principalmente por causa da sua radicalidade temática. Nesse livro, escreve o crítico Augusto Massi, em posfácio da edição mais recente, “todos os personagens adultos de ‘O Lado Humano’ – seu romance de estreia, de 1952 – são postos à margem, e a infância, período que sempre magnetizou o escritor, passa a configurar o núcleo central de sua ficção. A reviravolta foi de tão ordem que, sem exceção, todos os protagonistas são crianças. Ao que tudo indica, esse projeto era quase uma ideia fixa”. Mas não é só isso, claro. Ousados demais para seu tempo, os contos de “Boca do Inferno” acabaram por se tornar um escândalo literário por outro aspecto, que provocou um profundo mal estar no meio literário brasileiro. Gerou quase uma campanha difamatória contra o autor, como conta Massi, que levantou 35 resenhas, 30 delas negativas.

As restrições iam do questionamento à sua capacidade de ficcionista aos ataques de caráter moral. Como o que escreveu Roberto Simões, na revista “Paratodos”, em 22 de dezembro de 1957: “Não podemos conceber a prostituição na infância. Que ela possua um instinto sexual, que tente descobrir num ato desta natureza o seu sentido de magia, que isso seja, inclusive, o fruto cobiçado por qualquer menino, concordamos plenamente. Com o que não concordamos é que a criança pratique o ato, e que se agrave porque é feito por dois irmãos (casal de irmãos, detalhando melhor) e, em seguida, pela menina e um companheiro do garoto, com a conivência e a aquiescência deste. Este conto chega a ser grave, pelo que tem de falta de pudor, pelo que revela de criminalidade”. Outro grupo de críticos, após fazer elogios ao domínio técnico do contista, fazem restrições como “falta de simpatia humana”, “indiferença” e “frieza” do autor. Antonio Olinto, por exemplo, viu “excessivo alheamento do escritor às suas histórias”. Não ultrapassou muitas vezes o “puro registro”, como observou ele.

Foi tanta confusão que seu amigo Odylo Costa Filho saiu em sua defesa no artigo “Otto, o bom”, publicado no “Jornal do Brasil”, de 17 de março de 1957. Segundo ele, Otto Lara Rezende “está sendo vítima, a esta hora, pela publicação do seu segundo livro de contos, de uma das ondas de incompreensão mais pasmosas que jamais desabaram sobre um escritor brasileiro, e de que me assombra ver participar um crítico da experiência do meu caro Rosário Fusco”. O escritor não respondeu a nenhum dos ataques. Em uma carta que veio a público décadas depois, porém, ao amigo Fernando Sabino, ele mostrou sua indignação contra o que escreveu um famoso críticos: “Acordei com André me entregando um envelope dentro do qual Fernando Lara Resende me mandou o artigo de Wilson Martins. Você viu? Que pausado e frio estilo para dizer que sou uma besta, um mediocrão!”. E ressaltou: “Sei que fui esculhambado deprimentemente pelo tal de Martins, criticozinho filho da puta! Honestidade intelectual é pau no cu!”

Poucos livros brasileiros de contos são tão redondos quanto “Boca do Inferno”, uma obra-prima que faz justiça a esse ficcionista quase nunca lembrado, mas que é um dos maiores contistas de língua portuguesa de todos os tempos. Bastaria ter publicado somente este volume para merecer tal reverência. Mas Otto Lara Rezende fez mais. Embora sua obra seja curta e tenha se destacado como produtivo cronista, ele tinha ambições literárias longe da redação, de escrever peças, contos, novelas e romances e publicar livros. Todos deram certo em seus anseios. Rigoroso consigo, melindrado com a crítica no meio onde vivia, ele produziu apenas um romance, duas novelas e duas dezenas de contos, divididos em livros como “Boca do Inferno”. As novelas que compõem “A Testemunha Silenciosa” reforçam a certeza de que se trata de um autor imprescindível na galeria dos grandes nomes da literatura brasileira. A partir de um aparentemente simples microcosmo interiorano, quase rural, de Minas Gerais, nos anos de 1930, ele universaliza nas histórias “A testemunha Silenciosa” e “A Cilada” temas atemporais, mas com espaço definido – o íntimo de todos nós – como solidão, angústia e medo diante do único futuro certo – a morte. Histórias que formam, com “Boca do Inferno” a obra desse maldito Otto Lara Rezende.

 


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