Pílula antiesquecimento

Em 2008, a diretora Helena Tassara venceu o prêmio de melhor média-metragem na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com Bode Rei, Cabra Rainha. O filme, que tem Ariano Suassuna como um dos entrevistados, caiu nas graças do público e mostrou a importância dos caprinos para a população do Nordeste do País. Seu novo projeto, Vou Tirar Você Desse Lugar, será um filme sobre cantores populares, especificamene aqueles que tiveram grande sucesso na década de 1970 e sofreram vários tipos de censura, desde os mais severos e arbitrários, praticados pelos militares, passando pela condenação moral e estética de críticos musicais e um público intelectualizado, que jamais engoliu a turma liderada por artistas como Odair José, Luiz Ayrão, Fernando Mendes, Vanusa e Antônio Marcos.

Na contramão de sucessos recentes, como Simonal – Ninguém Sabe o Duro que eu Dei ou Lóki, dedicado ao gênio louco dos Mutantes, Arnaldo Baptista, Tassara não quer fazer do filme várias minibiografias. Focada no decênio de 1969 a 1979, busca discutir a importância de canções emblemáticas, como Vou Tirar Você Desse Lugar, de Odair José – que fala sobre a difícil vida das prostitutas e, não por acaso, dá nome ao projeto – ou Eu Quero Ser Negro, de Marcus Pitter, um cantor branco e loiro que levava para uma massa alienada pela ditadura importantes questões, como a igualdade racial.

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Na primeira quinzena de junho, o filme começou a ser rodado no estúdio do cantor Zeca Baleiro, fã confesso de muitos artistas que serão retratados e diretor musical do projeto. Brasileiros vai acompanhar todas as etapas de produção do documentário e dedicará perfis para cada um dos entrevistados. O primeiro deles, Odair José, é campeão de vendas – e eternamente conhecido pelo sucesso Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula) -, chegou a vender tanto quanto o Rei Roberto Carlos no começo dos anos 1970. Confira nas próximas páginas a entrevista com Helena Tassara e os bastidores das filmagens com o “Terror das Empregadas Domésticas”, como era chamado o cantor goiano antes de virar cult.

Brasileiros – Com esse novo projeto, você pretende mensurar a relevância de cada um dos artistas que vai abordar?
Helena Tassara –
Busco algo além disso. Algumas questões sem respostas me preocupam mesmo. Esses artistas sofreram tanta censura política quanto outros, mas também foram vítimas de uma patrulha moral e ideológica. Não podemos restringir a discussão ao consenso do bom gosto. Ter quase um milhão de discos vendidos, em 1973, como fez Odair José, não é pouca coisa. Esses artistas e essas canções estão na memória afetiva de muitos brasileiros até hoje.

Brasileiros – Em nome do bom gosto, esses artistas foram duramente condenados, mas, curiosamente, correntes de vanguarda da MPB, como a Tropicália, defendiam o mau gosto.
H.T. –
Exatamente. O Caetano colocou o Vicente Celestino, que era tido como de muito mau gosto, no disco Tropicália ou Panis et Circencis. Foi relido pelo Tropicalismo, ganhou nova roupagem e ninguém ousou dizer nada. Lógico que havia quem fosse contra os tropicalistas, pois os acusavam de colonizados. Eles também sofreram censura ideológica, mas ninguém foi tão jogado no limbo como esses artistas.

Brasileiros – E quais valores você defende para a obra deles?
H.T. –
O mais importante é que se reconheça que eles eram voz e expressão do povo brasileiro. Ninguém faz tamanho sucesso sem significar tudo isso. O próprio André Midani (mitológico executivo da indústria fonográfica brasileira) admitiu que as gravadoras tinham dois selos. O que ganhava dinheiro e o selo cult. Caetano, por exemplo, não vendia nada comparado a Odair José, e ele bancava os discos de Caetano, que ganhou reedição de seus álbuns em CD’s, e caixas com todos os títulos relançados. Sua obra está sendo perenizada e, enquanto isso, esses artistas continuam excluídos. Quando muito, aparecem em alguma coletânea.

Brasileiros – O que você tem a dizer sobre os nomes que pesquisou. Tem prediletos?
H.T. –
Acho que não. Tenho canções preferidas de cada um. Adoro as canções do Odair. Vou Tirar Você Deste Lugar, acho muito linda. Gosto muito do Waldick Soriano. Um grande cantor. Se tivesse cantado fora, não teria pra ninguém. Seria ele e o Sinatra. O Luiz Ayrão tem canções de fina ironia. O Wando com aquele jeito sem vergonha – uma opção mercadológica -, começou a carreira como sambista e fazia canções de cunho político. Benito Di Paula é único ao piano. Antônio Marcos e Vanusa cantando em dueto era uma coisa sublime.

Brasileiros – Com a canção de protesto, a patrulha ideológica foi ostensiva com essa turma, não é? Eram tidos como alienados?
H.T. –
Exatamente. Veja o exemplo de Dom & Ravel. Fizeram Você Também é Responsável, uma canção classificada como ufanista, pois eles cantavam sobre pessoas semialfabetizadas, que tinham de aderir ao Mobral. Foram acusados de fazer propaganda militar. Jorge Ben fazia canções que diziam coisas como: “Moro num País tropical, abençoado por Deus”, e ninguém o perseguia. Marcos Valle e Nelson Motta escreveram: “Hoje é um novo dia, de um novo tempo que vai nascer”. Isso também podia ser facilmente classificado como ufanismo e não foi.

Brasileiros – Nos últimos anos, vários documentários musicais brasileiros obtiveram grande êxito de público. Acha que essa atual empatia pode contribuir para o sucesso de sua proposta?
H.T. –
Quando esses documentários começaram a pipocar, tive uma crise. Todos iam pelo mesmo caminho. Concluí que tinha de procurar outra saída e vi que muitos deles têm estruturas parecidas. Contam o apogeu, a queda e o resgate. Minha intenção não é resgatar ninguém. Meu mote é falar de patrulha ideológica e censura moral. Essa turma tem um lugar na história da música brasileira e não teve reconhecimento, por questões que ainda não me parecem claras. Quero colocá-los no lugar deles.


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