O quarentão moderno de Marcos Valle

Nesta quinta-feira, o compositor e arranjador Cesar Camargo Mariano completa 70 anos. A efeméride rendeu post no site da Brasileiros, que remete a reportagem publicada na edição 50 (leia a nota). Como Cesar já foi protagonista de Quintessência, com o disco de estreia do Samabalanço Trio (leia), dedicamos o espaço hoje para falar de um álbum fundamental de outro recém-chegado as sete de décadas de vida, o cantor e compositor Marcos Valle, que completou 70 anos no último sábado, 14 de setembro. Tarefa difícil, afinal, Marcos detém uma discografia das mais respeitáveis, o álbum escolhido é Previsão do Tempo, que completa 40 anos de lançamento, em 2013. Impregnado de texturas eletrônicas, o disco resultou da parceria de Marcos com o grupo Azymuth liderado pelo tecladista José Roberto Bertrami (1946 – 2012), que fechava o trio com a poderosa cozinha do baixista Alex Malheiros e do baterista Ivan “Mamão” Conti.

Iniciada em 1972, quando o grupo ainda não tinha esse nome, a parceria entre Marcos e o trio carioca rendeu dois discos obscuros, mas generosos em evidenciar que a união seria enriquecedora para as experiências musicais dos dois lados, são eles: Som Ambiente (lançado pelo selo CID, ouça os temas Águas de Março e Bala com Bala ) e Brazil by Music Fly Cruzeiro, especialmente produzido para ser dado como presente aos clientes da extinta companhia aérea, da qual o pai de Marcos e Paulo Sérgio Valle, Eurico Paulo Valle, foi diretor – Paulo também foi piloto de aviação comercial da companhia (ouça a releitura de Wave, de Tom Jobim0.

Em 1973, Marcos e o trio assinaram a trilha sonora do documentário Fabuloso Fittipaldi, de Roberto Farias (ouça os temas Fittipaldi Show e Virabrequim). E foi durante os encontros para compor a trilha que o produtor Armando Pittigliani sugeriu dar ao grupo o nome Azymuth (por um breve período, o trio se chamou Projecto III ouça o tema de Bertrami Arabian Things). Em extensa entrevista concedida a este repórter, em 2011 (leia a íntegra), Marcos relembrou o episódio: “Essa trilha do Fittipaldi foi uma delícia de fazer, foi daí que saiu o nome Azymuth. O filme foi dirigido pelo Roberto Farias e o Hector Babenco e não me lembro qual dos dois, mas sei que um deles insistiu muito para que eu usasse minha música Azimuth (ouça a gravação original) que foi trilha de uma novela chamada Véu de Noiva – era o tema do Claudio Marzo (ouça a gravação, creditada ao grupo Apolo IV, embrião do Azymuth), que fazia um piloto na novela. Fizemos uma nova versão, pois a abertura do filme era mais extensa, e a trilha saiu pela Phillips. O produtor do disco foi o Armando, que convidou o Bertrami, o Alex e o Mamão para gravarem comigo. Eles já tocavam como um trio, mas ainda não tinham nome. Como eu era da Odeon e o álbum sairia pela Philips, não pude colocar meu nome como artista, somente como compositor. Na hora de dar um nome, ficou a dúvida ‘a quem vamos atribuir isso?’. O Armando foi quem sugeriu ‘que tal a gente colocar Conjunto Azymuth?’. Fiz essa música em parceria com o Novelli, que, naturalmente, não se importou em ceder o nome, e acabei me tornando essa espécie de padrinho do Azymuth.”

Gravado nos estúdios cariocas da Odeon (hoje EMI), mesmo não tendo um viés politizado Previsão do Tempo é carregado de simbolismos, um relato subjetivo e contundente dos tempos difíceis vividos pelos brasileiros naquele início de anos 1970, quando o País enfrentava os dias mais assombrosos do regime militar, sob o comando do general Emílio Garrastazu Médici. Percepção que salta aos olhos desde a capa do disco, um registro fotográfico feito por Paulo Sérgio de seu irmão submerso em uma piscina (alguém aí disse Nirvana, Nevermind?!). Uma clara alusão à tortura, que recrudesceu a partir de 13 de dezembro de 1968, quando foi decretado o AI-5.

Em álbuns anteriores, como Viola Enluarada e Mustang Côr de Sangue ou Corcel Cor de Mel, as letras de Paulo Sérgio denotavam consciência política e um claro posicionamento crítico de oposição ao regime militar e ao Milagre Econômico, que afundaria o País em uma dívida externa sem precedentes, mas isso não foi suficiente para acalmar os ânimos de uma severa patrulha ideológica de esquerda que não entendeu a mensagem cifrada da música de abertura de Previsão do Tempo, Flamengo até Morrer, e acusou os irmãos Valle de alienados e direitistas (a letra diz: “até o presidente é flamengo até morrer / e olha que ele é o presidente do País / Rogério na direita, Paulinho na esquerda / Dario no comando e Fio na reserva / E o resto a gente sabe, mas não diz). Décima faixa do disco, Samba Fatal foi escrita por Paulo Sérgio sob o impacto do suicídio do grande poeta e jornalista Torquato Neto, um dos principais artífices literários do tropicalismo, morto em 10 de novembro de 1972. Emocionante, a letra encerra com a estrofe “heroico ou paranoico / histórico ou histérico / suicídio ou morticídio / seu ato de morte foi um fato da vida” – Flamengo até Morrer e Samba Fatal foram gravadas com o acompanhamento do grupo de rock O Terço, de Sergio Hinds, César das Mercês e Vinicius Cantuária que, no ano anterior, também escoltaram Marcos no álbum Vento Sul).   

Mas Previsão do Tempo não versa tão somente sobre a atmosfera sombria daqueles dias. Há nele também a pequena obra-prima Não tem Nada, Não que faz alusão  ao rompimento da relação amorosa de João Donato e sua ex-mulher, a americana Patricia del Sausser, e foi composta por um trio da pesada, Marcos, Eumir Deodato e Donato – esta, aliás, a única canção do disco que não tem letra de Paulo Sérgio, foi escrita por Marcos. Também estão no álbum de 1973 outros dois clássicos da carreira de Marcos, o hino de desprendimento Nem Paletó, Nem Gravata, e Mentira (Chega de Mentira), que foi sampleada pelo Planet Hemp e por seu ex-vocalista Marcelo D2, em Contexto, e ganhou as pistas de dança da Europa e do Japão em sua versão original. Outro destaque de Previsão do Tempo é o tema Os Ossos do Barão, especialmente escrito para a novela de mesmo nome, que teve arranjo luxuoso assinado pelo grande maestro Waltel Branco.

Composta por Marcos a faixa instrumental que dá nome ao disco é um deleite sonoro. O cruzamento dos timbres do piano elétrico do cantor (o clássico Fender Rhodes) com o órgão Hammond e os sintetizadores de Bertrami (especialmente o pioneiro ARP) é dos mais sublimes. E foi justamente essa percepção que aproximou o cantor do trio Bertrami, Mamão e Malheiros. Na entrevista de 2011, Marcos relembrou o encontro: “O Azymuth sempre teve muito a ver comigo. Sempre fui louco por Rhodes e o Bertrami também era. Conheci o trio em uma hora perfeita, porque eu estava tocando muito Rhodes e chamei o Bertrami para tocar Hammond e ARP comigo no Previsão do Tempo. Havia muita afinidade entre a gente, tanto que, logo depois, o Azymuth passou a ser a minha banda. Viajamos muito juntos.”

Ouça aqui a íntegra de Previsão do Tempo 

Boas viagens sonoras e até a próxima Quintessência! 


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