Uma disputa discreta, elegante e fina. O clima não é de muita badalação. Às 21h15 de uma terça-feira de março, em ponto, o entusiasmado leiloeiro Nelson Gavazzoni inicia as vendas da segunda e última noite do Leilão das Galerias, evento organizado pela quarta vez pelas galerias cariocas Canvas e Colecionador e pela paulistana E-Arte. A primeira noite foi voltada para a venda das obras modernas e contemporâneas, com nomes como Siron Franco, Sérgio Camargo, Tomie Ohtake, Leda Catunda, Wesley Duke Lee e Manabu Mabe. A outra, dedicada a clássicos brasileiros – aqueles reconhecidos como valores permanentes da cultura -, com obras de Guignard, Portinari, Antonio Parreiras, Alfredo Volpi, Marc Ferrez e Victor Meirelles. Ao todo, estavam sendo leiloadas 296 obras, para um público de 200 pessoas entre admiradores e colecionadores. Assim como na maioria dos eventos de arte, alguns vêm à procura dos comes e bebes, outros querem relaxar de mais um dia de trabalho e ainda levar uma obra de arte para casa. Mas os verdadeiros compradores são aqueles que, após muita pesquisa, sabem exatamente o que esperar – e o que comprar. Alguns participantes vão como representantes contratados de outros.

Um leilão de artes plásticas tem as suas peculiaridades, este é um mercado de valores não palpáveis e que necessita de um entendimento e gosto pela cultura. Muitos dos que adquirem um quadro preferem não revelar a identidade – e para isso há um esquema de venda minuciosamente organizado. Para não chamarem a atenção, os lances são feitos de maneira muito sutil – por vezes, apenas o levantar dos ombros ou das sobrancelhas sinaliza o interesse. Diferentemente dos leilões de animais, os de artes são sempre bastante discretos. Os participantes não se exaltam ao “brigarem” por um quadro, escultura ou fotografia. E, no caso do Leilão das Galerias, atentas a esses pequenos gestos estão seis moças impecavelmente vestidas de preto, também responsáveis por indicar a localização do futuro comprador. Do outro lado da sala, mais cinco funcionários encarregam-se de entrar em contato telefônico com pessoas que, com o catálogo das coleções em mãos, deixaram sinais de interesse por determinada obra. Dessa forma, eles podem dar seus lances via telefone e participar ativamente da disputa com os outros presentes.
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As cem cadeiras dispostas no salão da galeria E-Arte, no bairro dos Jardins, em São Paulo, ainda não estão em sua metade preenchidas. Aos poucos, o público vai chegando. São homens elegantes, rapazes, mulheres do mundo das artes e até algumas famílias. Segundo Gavazzoni, cerca de 30% dos frequentadores de leilão são assíduos a esses eventos, mas não necessariamente são consumidores. É o caso do ucraniano amante das artes Karoly Marer, que vive no Brasil e frequenta leilões desde 1958, mas raramente compra algo. Aos 90 anos, revela por que não compareceu ao leilão de modernos e contemporâneos. “Não consigo aceitar que as pessoas comprem quadros para combinar com o sofá de casa”, diz indignado.

A noite está quente e o leilão começa com as obras de Manuel Santiago, com lances iniciais entre R$ 2,8 mil e R$ 6,8 mil. Outros artistas vão sendo apresentados. Gavazzoni, responsável por agregar valor ao que leiloa, dispara seu discurso especial para cada obra. “Agora o magnífico Antonio Parreiras, importantíssimo nome da pintura brasileira de meados do século XX”, enfatiza. Por fim, vende Interior de Floresta, de Parreiras, por R$ 25.500. Aproxima-se o ápice da noite. É o momento da venda do mais valioso quadro entre os clássicos: a obra Casamento da Princesa Isabel e Gaston D’Orleans, o Conde D’Eu na presença da Corte Imperial, ambientado dentro da Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé, assinada pelo artista Victor Meirelles no ano de 1864. Com moldura folheada a ouro e dimensões de 49 cm por 38 cm, é disputado a ferro e fogo por dois compradores. O lance inicial é o mais alto da noite, R$ 250 mil, valor que denota a relevância de um dos mais importantes artistas do Império para a história da arte clássica brasileira. Nascido em Desterro, antiga Florianópolis (SC), em 1832, era ligado ao romantismo brasileiro e, ao lado de Pedro Américo e Almeida Júnior, foi considerado um grande nome da pintura nacional. Retratista de momentos históricos, como a Guerra do Paraguai e a Batalha de Guararapes, ele também retratou dom Pedro II e a imperatriz Teresa Cristina. Todos encomendados pela Corte. Professor oficial da Academia Imperial, com a Proclamação da República, em 1889, foi perseguido e acabou falecendo em 1903 na mais profunda decadência.

Este quadro fazia parte da coleção da família real de Petrópolis. O futuro da obra foi determinado após disputados cinco minutos: foi arrematada por R$ 360 mil, por alguém que pilotava a distância, via celular, os lances dados por seu representante. Lá se vão quase duas horas desde o início do leilão. Nelson Gavazzoni, com seu sotaque carioca carregado, desliga o microfone, desce do palco e cumprimenta alguns de seus clientes e conhecidos. A figura do comerciante e pesquisador de arte, popularmente conhecido com o nome francês de marchand, pode ser mais bem compreendida na entrevista abaixo de Gavazzoni à Brasileiros.

O HOMEM DAS ARTES
Há 36 anos no ramo das galerias e leilões de arte, Nelson Gavazzoni hoje está na Canvas Galeria. Lá assume as funções de leiloeiro e responsável técnico – aquele que tem o conhecimento necessário para comprar e vender obras, avaliar suas condições, valores e procedência. Formado em antropologia, economia social e direito, Nelson descobriu logo cedo o gosto pela arte, mais especificamente pela pintura. Seu pai era um jurista que mantinha na pintura uma prática amadora e sua mãe era museóloga. Aos 17 anos, começou a fazer para os amigos dos pais, por puro prazer, a corretagem das obras deles e praticar uma venda interna. Hoje, é um dos mais respeitáveis profissionais da área.Brasileiros – Qual é o lugar da arte no mercado?
Nelson Gavazzoni –Este é um mercado que trabalha com a questão do não objeto, em que as coisas existem no mundo das ideias, além da materialidade. O consumo de arte cresceu, mas não posso dizer quanto, pois é um mercado que não trabalha com estatísticas. É um mercadinho que trabalha com o conceito complexo de cultura, mas não é consumo, não segue as regras da economia.

Brasileiros – A crise financeira internacional interfere nesse mercado?
N.G. –Ele não é afetado diretamente, não sofre tantos entraves como os mercados tradicionais, pois não necessita de crédito, tampouco de investimento, para se manter. São obras que já existem; além de ser uma troca simbólica de capital, tem-se a impressão de que não se gasta, é um empréstimo consignado. Afinal a obra sempre estará ali e o seu valor varia muito pouco com o passar do tempo. Também não é mercado de luxo.

Brasileiros – O que é ser um leiloeiro de artes plásticas no Brasil hoje?
N.G. –Esta função tem diminuído muito, pois antigamente o leiloeiro não necessariamente era um entendido de arte. Hoje, devido à concorrência, precisa ser. Ele agrega parceiros e colecionadores, é alguém que deve situar a compra dentro de um contexto histórico e também estabelecer uma relação de cumplicidade com o cliente. Parte de pesquisas e comparações para dizer o quanto tal obra está valendo no mercado. A valorização das obras, além de partir de um método comparativo, também se dá pelo fato de ter pertencido a determinada pessoa, ter sido presente de alguma figura importante. É o chamado mercado da fofoca.


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