Ele falava sobre a interessante ideia de que as coisas do circo encantam porque são metáforas significativas para todos nós. Facilmente reconhecíveis à luz das nossas dificuldades no cotidiano. Quem já não enfiou a cabeça na boca do leão? Quem já não se sentiu alçado em voo incerto? Quem já não foi aparado por um braço forte? Quem já não caminhou no arame? Quem não empilha coisas sobre a cabeça? Quem não se sentiu como leão domado contido por chicote? Assim somos nós, disse meu amigo.

Enquanto o circo mantinha essas metáforas no horizonte do plausível, prosseguiu, caminhávamos bem. Mas aí aparece o circo mundial e tudo muda. Não são mais três cadeiras equilibradas na testa, com dificuldade. Nem quatro nem cinco. São 35. Quem equilibra não é mais um rosto vizinho, reconhecível. É um chinês longínquo, um polonês remoto, um africano loiro. Não há mais o rosto e a roupa com os quais se possa identificar. Não há mais o risco concreto. Não há mais o medo com o qual se possa relacionar. Não há mais o rufo imperfeito do tambor temor. Não há mais o cheiro do bicho e do medo, que nos dizem tão de perto. Assim, as metáforas, então palpáveis, foram elevadas ao impossível. O circo do plausível é morto, decretou meu amigo. Que fazer então? perguntou ele de supetão.

Eu sempre me atrapalho com essas perguntas rápidas que pressupõem resposta esperta e disse não sei. Ninguém sabe, disse ele.

Quantos artistas você acha que tem o Cirque du Soleil? Eu relutei e ele logo disse uns quatro mil, selecionados de seis bilhões de humanos. É o crème de la crème. Não são os melhores da Europa ou dos Estados Unidos. É a nata de 40 países, dos quais mal se conhece o nome. É gente muito rara, que nasceu rolando e já saiu voando. São os grandes talentos, as mais terríveis obsessões, as mais estonteantes aberrações. É uma seleta de habilidosos percorrendo o planeta, a nos mentir. A nos dizer que o impossível é possível. E tudo com beleza, leveza e perfeição. Com graça, em ambiente de encanto e sedução. Não se consegue mais relacionar essas proezas com o drama do cotidiano, disse ele um tanto indignado. Na verdade não são mais proezas, são ilusões, insistiu.

Mas não é só isso. Se você é pobre e não pode assistir ao vivo, vão levar pra você em vídeo. E se você não tem dinheiro para assistir em vídeo, vai acabar vendo na televisão. Vão acabar mostrando para você que, em saltos mortais, é de seis pra mais. Senão, está fora. Bolinhas para malabares, é pra mais de 20. O padrão é muito alto, nem pense em coisa menor. Concretamente insistem que o impossível é até mesmo plausível.

Convenhamos, disse ele em tom mais sério, não se pode conviver com esses padrões mundiais. É muita cadeira para equilibrar, é muito fogo pra engolir. E ninguém mais erra. Um mundo dos que não erram? Onde já se viu uma coisa dessas? Que raio de metáfora é essa? Um trapézio dos que não caem? Um arame dos que não escorregam? Você concorda comigo?, cobrou com firmeza.

Porque ele era meu amigo, estava nos seus tenros 40 anos e desempregado há seis meses, eu disse concordo plenamente, hoje em dia vivemos pisando em ovos.

Nossos próprios ovos, ele me corrigiu mal-humorado.

O cara fica amargo mesmo, não tem jeito.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Poli – USP e dedica-se também à literatura


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