As peles são esverdeadas e o cheiro é de podridão. Visitas a cadeias fazem parte da rotina de trabalho da psicóloga Catarina Pedroso, uma dos 11 peritos do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, mas o impacto ao adentrá-las se mantém.
O órgão, que completa dois anos de existência, é o primeiro do governo federal dedicado exclusivamente ao tema. O Mecanismo é encarregado de fazer vistorias a instalações de privação de liberdade, como centros de detenção, estabelecimentos penais, hospitais psiquiátricos, abrigos de pessoas idosas e instituições socioeducativas. Constatadas violações, os peritos elaboram relatórios com recomendações ao poder público.
Até agora o enfoque maior foi dado ao sistema prisional – tido como significante perpetuador da prática de tortura no Brasil. Uma das quatro maiores populações carcerárias do mundo, o País reúne mais de 600 mil presos.
“Desconheço um presídio em que não haja violação de direitos”, diz Catarina. “Aqui no Brasil a tortura é absolutamente institucionalizada. Está em todas as etapas de detenção, desde a abordagem policial até a saída.”
A barbárie que vez ou outra repercute na imprensa é o cotidiano dos presídios. A lista de violações encontradas sistematicamente nas vistorias, realizadas sem anúncio prévio, é extensa: pessoas privadas do devido processo legal, sem direito à defesa, e vítimas de tortura no momento de detenção, agressões na abordagem e na delegacia, boletins de ocorrência assinados sem depoimento, violência física e psicológica dentro das unidades, superlotação, péssima qualidade de serviços básicos como assistência médica e alimentação, condições degradantes de salubridade, higiene e ventilação, entrada de forças especiais para revista de celas com violência e destruição de pertences pessoais, durante a qual os presos são obrigados a passar horas nus ou apenas de cuecas sentados no pátio sob o sol, revistas vexatórias de familiares e presos, falta de itens de higiene, comercialização de produtos básicos em cantinas de presídios, abusos em casos de maternidade e a ausência de investigações e responsabilização das inúmeras ilegalidades.
Situações para ilustrar as condições às quais os presos são submetidos não faltam. Da última visita, a um presídio de Mato Grosso do Sul, Catarina descreve celas de isolamento individuais com vários presos e apenas um “boi”, nome dado ao vaso sanitário que, na verdade, é um buraco no chão. Uma única torneira em cima do buraco, a um metro de altura, de modo que a pessoa precisa entrar no vaso para se banhar ou então encher potes de água. Nenhuma janela, uma saída de ar minúscula e uma porta de chapa fechada. “Você pode imaginar a sujeira e o cheiro desse lugar”, diz Catarina.
Desde que saiu do papel, o Mecanismo realizou 11 visitas no Distrito Federal e nos estados de Santa Catarina, São Paulo, Maranhão, Rio Grande do Sul, Amazonas, Ceará, Paraíba, Pará, Roraima e Mato Grosso do Sul. O órgão é formado por uma equipe multidisciplinar de homens e mulheres de diferentes regiões do País, com profissionais nas áreas de psicologia, direito, filosofia, assistência social, ciência política e perícia grafotécnica.
Para cada visita a uma unidade é feito um mês de preparação que envolve coleta de informações junto a organizações da sociedade civil e o poder público. O governo é comunicado de que os peritos passarão pelo estado, mas sem especificar qual espaço será fiscalizado.
O diálogo acontece primeiro à distância e depois pessoalmente, dias antes de a visita acontecer. Dessa forma, é feito um retrato da situação da unidade e definido também se as condições de segurança permitem a fiscalização. Realizado esse levantamento, a equipe, normalmente formada por grupos de até quatro peritos, vai às unidades, onde passa no máximo dois dias.
O primeiro passo durante uma visita é explicar à direção da unidade a função do Mecanismo – que, além de fiscalizar, é responsável por estipular medidas de prevenção à tortura. Segundo Rafael Barreto Souza, advogado e coordenador do Mecanismo, é nesse momento que o órgão encontra as maiores dificuldades.
“Temos a prerrogativa legal de fazer vistorias sem aviso prévio, nas quais podemos entrar em qualquer espaço da unidade, conversar com quem quisermos e registrar em áudio e foto. Mas a direção e os agentes públicos às vezes resistem a nossa entrada e não nos permitem fazer a visita nas condições previstas por lei”, afirma.
Catarina concorda que o mais complicado é o tratamento dos agentes públicos e da direção das unidades prisionais: “Muitas vezes eles tentam nos amedrontar, perguntam se a gente tem certeza de que quer entrar em tal lugar: ‘Uma mulher bonita que nem você?’. É aquela mistura de intimidação com assédio”.
O roteiro das visitas prioriza espaços que comportam grupos vulneráveis, como os presos não pertencentes às organizações criminosas dominantes, os que cometeram crimes não tolerados pela massa carcerária, gestantes e o público LGBT, entre outros.
As entrevistas acontecem de forma individual ou coletiva: “Se tiver um nível de tensão muito grande, não fazemos entrevistas individuais ou então falamos com absolutamente todo mundo para não expor ninguém”, diz Catarina. Depois da visita à unidade, a equipe tem um mês para elaborar o relatório final e outros encaminhamentos.
Os peritos relatam que, apesar de hostilidades por parte de alguns agentes, o trato costuma ocorrer de forma cordial e tranquila. O mesmo acontece com as pessoas privadas de liberdade. “A frase que eu mais escuto nas unidades é: ‘Nossa, ninguém nunca veio aqui’, ‘Ninguém nunca falou assim comigo’ ou ‘Ninguém entra na cela assim’. Os órgãos que visitam normalmente têm uma postura distante, não vão aos locais onde as pessoas ficam. Ou, mesmo se vão até os corredores, muitas vezes são acompanhados da direção, o que limita a confiança. A gente tem um acompanhamento necessário para abrir grades e portas, mas as entrevistas são sempre reservadas. Os agentes não veem com quem a gente fala para evitar represálias ou que as pessoas fiquem intimidadas. Isso faz toda a diferença”, conta Catarina.
Dizem não ter passado por nenhuma situação de real perigo durante as vistorias, ainda que tenham tomado alguns sustos: “Tem gente que acha que não deveríamos entrar em cela ou sentar na cama para sempre estar em alerta caso alguma coisa dê errada. Mas não é assim que funciona. Para fazer o trabalho direito, temos que conversar tranquilamente. Não é como se a gente ficasse lá de bobeira também, você precisa estar atento aos olhares, movimentos. Mas, se tiver medo, não consegue fazer o trabalho.”
O protocolo de segurança dos peritos durante visitas diz que nunca devem andar sozinhos pelas unidades e que, se um do grupo julgar necessário, todos devem imediatamente evacuar o local. “No limite, é um trabalho arriscado. Estamos entrando em locais de pouca transparência, muita violação, de muita agressão. Mas não é um risco que deve colocar em questão a visita”, diz Catarina.
Além dos presos, parte do trabalho envolve entrevistar os funcionários dos presídios: “As pessoas que trabalham lá adoecem também. Fazem hora extra, chegam a trabalhar 33 horas seguidas, são ameaçadas. Um agente me falou que não podia ficar na rua, ir a um bar. A vida dele era ir do trabalho para casa e de casa para o trabalho. E trabalham num número minúsculo com relação ao de presos. No Rio Grande do Sul, fomos em um presídio com 2.400 presos para 13 agentes por turno. A gente precisa olhar para os agentes como vítimas e parte do processo que reproduz a violência”, afirma Catarina.
Rafael diz que é importante entender as motivações de um agente penitenciário para formular melhorias no sistema: “O que o faz levantar de manhã e ir trabalhar no presídio? Para alguns, o importante é proteger a sociedade, segregar os criminosos. Isso é trabalho da polícia, a função do agente é outra. Mas tem também aqueles que se consideram parte da reconstrução de vida dos presos. Uma agente me emocionou ao contar da vez que ajudou no parto de uma presa. A ambulância demorou a chegar, então ela saiu correndo com o bebê para levá-lo ao atendimento médico e salvou uma vida”.
Para Catarina, uma das vistorias mais complicadas foi no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus, no final de 2015, palco de uma rebelião que deixou 56 mortos em janeiro deste ano. A visita foi feita por quatro peritas e o relatório elaborado já antecipava o massacre que estava por vir. Catarina é uma das que assinaram o documento: “Era notório que a situação ia explodir e deixamos isso claro ao poder público, mas não tivemos nenhuma resposta do governo do Amazonas”.
Segundo a perita, o relato dos presos dava conta de que era uma situação iminente de rebelião e que, quando acontecesse, as pessoas nos seguros (espaço reservado para pessoas ameaçadas) seriam mortas: “Esse medo sentido pelos presos foi uma coisa muito peculiar de Manaus, não observamos isso em outros lugares. Teve uma rebelião nessa mesma unidade no passado, em que 13 pessoas foram mortas. Era uma coisa que rondava, as pessoas sabiam que podia acontecer de novo”.
Em meio à onda de rebeliões e massacres em presídios pelo País, o Mecanismo ainda não tem a próxima visita marcada – prevista para acontecer em março. “Não temos uma diretriz direta nem para ir nem para não ir onde teve rebelião. A nossa função é de prevenção. A minha opinião é de que um contexto imediatamente após uma rebelião dificulta muito um trabalho preventivo. Precisamos acompanhar a rotina regular do lugar. Nosso trabalho fica mais desafiador, mais difícil”, diz Rafael.
Para o coordenador do órgão, a situação penitenciária brasileira vive o momento mais crítico dos últimos 20 anos: “É uma situação singular. Não há precedentes de como lidar com a escala do que está acontecendo. É um processo novo para todo mundo”.
Haroldo Caetano, promotor de Justiça da Vara de Execução Penal de Goiânia há 20 anos, define o sistema prisional brasileiro como um vulcão em atividade. No momento, ele estaria em erupção. “Achar que 11 peritos sediados em Brasília vão dar conta da crise do sistema penitenciário num país do tamanho do Brasil é uma ingenuidade”, diz o promotor. “Não tenho nenhuma expectativa com relação ao trabalho do Mecanismo. Órgãos de fiscalização e denúncia já existem aos montes, e o caos do sistema carcerário continua. O Mecanismo precisaria ter um posicionamento político ativo, que os distinguisse dos demais órgãos. Para fazer um trabalho que gere impacto diante dessa coisa bizarra e absurda, tem que denunciar publicamente, não basta emitir relatórios e ofícios.”
No Brasil, os primeiros esforços para a criação de um Mecanismo Nacional de Prevenção à Tortura iniciaram-se em 2005, com a elaboração do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura. Em 2006, foi criado o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, que tinha entre as suas atribuições a designação do Mecanismo Nacional. O 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, de 2009, expressamente previu a criação de um MNP, mas foi apenas em 2013 que o Brasil sancionou a lei que cria o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Em 2014, foram nomeados os membros do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. Também compõem o sistema mecanismos e comitês estaduais.
“É óbvio que 11 pessoas não são suficientes. Nosso trabalho tem que se dar em rede. Todo vez que a gente vai para algum estado, tem uma preparação de pelo menos um mês para entender a realidade local. Essa interlocução direciona as nossas visitas e também tem a perspectiva do monitoramento com pessoas que vivem no local e, portanto, com condição de continuar visitando e vendo se as recomendações foram implementadas, cobrar que isso aconteça”, diz Catarina.
Para Paulo Malvezzi, assessor jurídico da Pastoral Carcerária, o Sistema Nacional de Combate e Prevenção à Tortura não tem autonomia para atuar, já que não possui recursos próprios – recebe repasses da Secretaria de Direitos Humanos e sofre intervenções do governo federal.
A pastoral fazia parte do Comitê até a última nomeação, no final do ano passado, quando optou por não participar mais: “A escolha do coordenador do Mecanismo, por exemplo, é feita pelo ministro da Justiça, coisa que a gente considera completamente inapropriada. Já no governo Dilma Rousseff não havia interesse nenhum em ter um órgão autônomo, agora com Temer as coisas só se agravaram. Para ter uma ideia, o Comitê ficou cinco meses paralisado porque o presidente demorou para nomear os novos integrantes”.
Malvezzi também ressalta a falta de pautas estruturais e diz que o Mecanismo não se coloca presente em discussões sobre encarceramento em massa e a chamada guerra antidrogas, principais tópicos para explicar a situação penitenciária do País: “Fazer uma discussão de tortura sem entrar nesse debate não faz o menor sentido. Tem faltado ousadia de pautar e de se posicionar publicamente, produzir notas técnicas, trazer a questão para uma perspectiva também política. Eles produziram mais de 800 recomendações até agora. Transformar o Mecanismo numa máquina de recomendação não vai mudar muita coisa. Não é por falta de aviso e informação que o Estado faz o que faz”.
A tortura é reconhecida como crime inafiançável desde 1988, mas o combate a ela no Brasil dá passos tímidos. Apenas em 7 de abril de 1997 foi adotada a Lei nº 9.455/97, que define e pune o crime de tortura. Catarina diz que a luta é feita pela sociedade civil enquanto o Estado fecha os olhos. “Isso é nítido em audiências de custódia. Os juízes, promotores e até defensores públicos simplesmente ignoram as denúncias de tortura, não levam adiante. É inacreditável.”
A pesquisadora Gorete Marques, do Núcleo de Estudos de Violência da USP, afirma que, apesar de haver mais casos de tortura envolvendo agentes do Estado como agressores do que civis, o número de condenações por esse tipo de crime é maior com não agentes do Estado.
Segundo levantamento feito no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, os desfechos de processos em primeira instância mostram que a porcentagem de absolvição de agentes públicos chega a 70%, contra 25% de agentes privados.
Rafael diz que o caso de tortura é especialmente grave quando se trata de adolescentes, situação na qual a prática muitas vezes é vista como um corretivo: “A pessoa não se recrimina por torturar quando acredita que a violência tem um caráter pedagógico”.
Em unidades socioeducativas, Rafael presenciou o que ele chama de “tortura recreativa”. Como castigo por alguma indisciplina, os agentes entravam nas celas e esvaziavam os xampus dos adolescentes, levados pelas mães em dias de visita. Os presos então eram obrigados a correr pelo corredor da unidade. Quem caísse, apanhava de socos e pontapés dos agentes.
Para Caetano, as violações não são sequer percebidas como tais: “Um discurso de ódio muito forte legitima a violação da dignidade humana. Alimenta a pretensão de vingança a qualquer custo, sem limites morais. A violência policial no Brasil é uma prática de extermínio não declarada, mas instituída. O torturador não se vê como torturador, mas como vingador e herói”.
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