Notas sobre “A Cidade Onde Envelheço”

a cidade em que envelheço
1- Vou pouco ao cinema; meu repertório sobre filmes é bastante tímido. Entretanto, se me fosse permitido dizer algo sobre o longa A Cidade onde Envelheço, da diretora Marília Rocha, que tive a chance de assistir há algumas semanas em Belo Horizonte, penso que já teria um começo: começaria pelo que não me lembro ou talvez não saiba – por aquilo que o filme não me diz. Penso nas protagonistas, Francisca e Teresa. Penso na presença cortante que essas duas meninas têm em cena, penso na incrível plasticidade com que preenchem toda a duração do filme. Ao mesmo tempo, se tento montar uma sinopse sobre elas, a informação não vem, me dou conta de que não há quase nada a dizer. São duas jovens portuguesas de classe média, encontram-se em Belo Horizonte, dividem o mesmo apartamento. O ano pode ser 2014 − é o que me faz supor um cartaz eleitoral em uma breve cena de rua. Francisca trabalha em um restaurante português, a outra não tem ocupação evidente (frequenta uma academia de dança). Teresa é inquieta, arisca; Francisca, plácida, magnética. Não se sabe que planos têm, que histórias escondem − e nem por que vieram parar em Belo Horizonte. Mas é exatamente a partir desse silêncio, e graças a ele, que podemos ser capturados por uma violenta sensação de intimidade, quase inevitável, quase sensória, tão logo soa a campainha do apartamento, tão logo Francisca abre a porta para Teresa entrar. Uma intimidade ao mesmo tempo natural e movediça, descompromissada, em torno da qual a narrativa se expande e flutua.

2 -Digo narrativa, mas talvez não seja essa a palavra exata. Porque o filme é o mínimo de trama, e mais uma composição de pequenos encontros na cidade, de paisagens furtivas, afetos casuais. Não se pressente violência nem ameaça, não há crime. Ouço o ruído de uma serra elétrica, mas não o de ambulâncias ou carros de polícia. O olhar da câmera recai sobre o menor, os nichos discretos, as coisas que não têm importância. Em ondas preguiçosas, o filme parece atuar em um nível que neutraliza a ansiedade urbana, os medos, e deixa fluir uma espécie de metabolismo primitivo, ocioso, que o ritmo da metrópole costuma soterrar.

3 – As miudezas da cidade vêm assim à tona, e a intimidade das duas meninas, de seus rompantes e de sua casa, se mistura à intimidade das ruas – do comércio, do trânsito, das edificações. Um barranco, um cigarro, um vestido. Uma mesa de bilhar, um balcão, uma mecha de cabelo. As folhas esvoaçantes do parque. Quadro a quadro, esses elementos circulam pela tela como correntes de vento – um comportamento imprevisível. Por um instante, o afeto entre as pessoas é também o afeto das coisas, do cimento, de um bicho. No interior do apartamento, os utensílios mais insignificantes se comunicam, e a cozinha pode se transformar numa súbita galeria: o filtro, o bule, uma faca. Uns olhos de ressaca, a beleza natural de uma vasilha. À margem dos desastres e das notícias, as personagens parecem de algum modo desengajar-se do peso do mundo. Tal como o cão que uma noite chega sem aviso e vem habitar o apartamento, as duas mulheres também querem escapar sem alarde à armadura do trabalho, da guerra, da família.

4- Há algo aí que funciona como uma resistência macia às instituições, mas também à própria possibilidade de um enredo. Leandro, namorado eventual de Francisca, aparece logo nas cenas iniciais, mas não engrena; imaginamos para ele um papel que não se concretiza. Neguinho trabalha com Francisca no restaurante; dorme um dia no apartamento, faz amizade com Teresa; os três conversam, riem, bebem juntos em um quintal. Numa loja de vinis, o vendedor funciona como um anjo musical; apresenta a Francisca uma canção epifânica (de um disco de Jards Macalé) e não é mais visto. Tudo isso vem meio de sopro, algo que se insinua e dissolve; o ponto não se converte em fio. Nenhum contrato se estabelece, nenhum enlace é definitivo. Um romance que só se anuncia, uma transa que nunca acontece, uma raiva que não termina em briga. Francisca e Teresa ensaiam os passos de um balé provisório, um estado de iminência constante – erótica, mas controlada. Entre as duas, não haveria como não abortar o projeto de uma casa estável, comum. O passado quase não vem à tona, o futuro está contido em uma festa noturna. Como se a única forma de permanência fossem as breves felicidades, uma utopia incidental e fugaz. Estar sempre à beira do acontecimento, prestes a nada, é o modo de viver das protagonistas − é também a fórmula estética do filme.

5 – Se o ordinário aflora, o tempo vai devagar. E o farol dessa lentidão é certamente o olhar de Francisca, nas cenas em que a câmera ancora em seu rosto e parece que não vai se soltar. Age aí uma força que paralisa suavemente os gestos e os impulsos – é um olhar que varre tudo o que entra em sua órbita, e que devora a amiga Teresa, com a gravidade própria dos tigres e dos planetas. Talvez então se perceba, nesse ponto, que a vibração e as velocidades que o filme explora são em tudo contrárias à imagem sugerida pelo título. No campo em que a película avança, cessa a interpretação e o esforço − cessa
a ideia mesma de envelhecimento. A Cidade onde Envelheço é, na verdade, o lugar a ser evitado, o destino a ser corroído – uma projeção em negativo da cidade que, nos dias de Teresa
e Francisca, é outra: invenção e fuga.

6 – Alguém poderia reclamar (e talvez com razão) de um certo alheamento do roteiro com relação a questões de ordem política ou social. No varejo, alguns embates são sugeridos, mas de modo trivial, minimalista, sem derivar para nenhum tipo de reflexão mais ampla ou engajada − se é que posso falar nesses termos. Um comentário de Francisca, por exemplo, sobre o hábito dos brasileiros de filar cigarros (de filar qualquer coisa), ou sobre sua displicência em lidar com reparos domésticos, como uma troca de azulejos. Em ambos os casos, o interlocutor responde à crítica, mas o conflito não se distende. Menos contingente me parece a questão da diferença entre as línguas – a brasileira (com sotaque mineiro) e a lusitana –, que percorre, afinal, todos os diálogos do filme, e solicita a reação auditiva do espectador (é bom evitar a legenda). Em uma bem-humorada conversa entre Neguinho e Francisca, ambos expressam a dificuldade de se entenderem um ao outro. É aquele momento em que, contra o espelho, recebemos de volta um idioma torto e meio embrutecido, com um grau de estranheza próprio da experiência infantil. Reposta a cru em um diálogo corriqueiro, essa língua que já não é a mesma nos conduz a um pequeno abismo de sonoridade – um abismo que, no filme, ajuda a desconcertar a paisagem local. Talvez fosse possível que, com alguns ajustes, o filme lançasse um pouco mais de luz sobre a realidade migratória,
por exemplo. Mas o fato é que aí já teríamos outro filme − e a preciosa delicadeza deste estaria em risco.

7 – Em um dos diálogos mais demorados do filme (pelo menos na minha lembrança), Teresa e Francisca tratam da dúvida entre ficar em Minas ou voltar para Portugal. Francisca deseja partir; não tolera a hipótese de se estabelecer em definitivo na cidade. “Vais envelhecer aqui?”, pergunta. Teresa, deitada
na cama, faz pose de cadáver, brinca: “Quero ser enterrada na Praça Sete”, numa referência ao centro nevrálgico da capital. A cena, jocosa, pode não ser tão inocente. O que descubro aí é que, ao exporem um minidrama de seu exílio, as duas estrangeiras, talvez sem saber, acabam por encenar um dos mais reincidentes dilemas locais. A indagação sobre permanecer ou ir embora, matéria poética e biográfica de tantos escritores e escritoras belo-horizontinos, pelo menos até o fim do século passado, é reencenada aqui com sotaque e humor lusitanos. Algo parecido ocorre quando Francisca, em um diálogo com Teresa no parque municipal, confessa: “Desde o início, tenho saudades do mar”. A frase, que bem poderia legendar um cartão-postal de Belo Horizonte, faz parte de uma espécie de mitologia nativa e mesmo do anedotário regional. Ocorre então que o sentimento do exílio acaba coincidindo com esse que é um fantasma na memória da cidade, e na conjunção entre os dois está uma das chaves do filme. Entretanto, cuidado. Não se trata de reiterar à toa uma obsessão. O simples fato de serem duas estrangeiras a encená-la já é o sinal de que algo se dispersa; Teresa e Francisa jogam com uma fórmula meio moribunda, os restos de uma tradição. Tenho assim de perguntar: será por isso que, terminada a sessão, continua a ecoar na nossa cabeça a canção de Jards Macalé, a mesma que irrompe no meio do filme dando a ele uma nova pulsação? Pois ela se chama “Soluços” − grito estancado que costuma
vir quando algo está prestes a faltar.


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