Se hoje, gêneros musicais populares como os famigerados pagode e sertanejo “universitário” embalam festas de brasileiros de todas as classes sociais, e uma banda com o nome de Calcinha Preta vira sucesso nacional em trilha de novela “das oito”, sem que ninguém se sinta constrangido, houve um tempo em que essa música de acento mais popular foi duramente perseguida e era tida como algo proibido. Música de empregada, de prostituta ou de pedreiro. Rótulos segregacionistas não faltavam para excluir da história de nossa música popular artistas que falavam diretamente às classes menos favorecidas. Gente condenada pelo que era definido como mau gosto. Gente como Odair José, cantor goiano que atingiu impressionantes marcas de venda e foi perseguido por uma patrulha do bom gosto. Ao pretender recontar a história de Jesus no álbum conceitual O Filho de José e Maria, de 1977, Odair chegou a ser excomungado pela Igreja Católica, que não engoliu a reincidência do herege que ousou pleitear dignidade para as prostitutas ou colocar na ordem do dia assuntos polêmicos, como a pílula anticoncepcional.
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Odair tem 61 anos e, depois de um hiato de quatro anos sem por os pés em um estúdio, prepara um novo álbum que irá revelar 12 novas composições. O impulso para tirar o artista da clausura veio do cantor Zeca Baleiro, que disponibilizou sua própria banda, os recursos técnicos de seu estúdio particular e ainda vai produzir o novo álbum de Odair. Personagem dos mais relevantes no documentário de Helena Tassara, encontramos o cantor em dia de trabalho intenso. Logo que chegamos, somos abordados por Tassara – que iniciará nessa tarde as filmagens de Vou Tirar Você Desse Lugar. Tão logo nos apresentamos, ela pede para nossa fotógrafa a gentileza de retratar Antônio, caseiro do estúdio de Zeca, ao lado do ídolo. Fã devoto de Odair, Antônio abraça o cantor com intensidade e está visivelmente emocionado. Tassara observa que o gesto é sintomático do elevado grau afetivo que envolve Odair e seus fãs. Gente que nunca deu ouvido à crítica musical ou ao discurso tingido de preconceito das classes mais favorecidas, que os têm como bregas, cafonas ou carentes de repertório para entender que consomem lixo cultural.
Tassara começa sua primeira entrevista para o documentário com uma amarra cronológica dos primeiros anos vividos por Odair no Rio de Janeiro. Um garoto de 18 anos que literalmente fugiu de casa – na pequena Morrinhos, interior de Goiás – em busca da realização do sonho de tornar-se um cantor de sucesso. Com pouco dinheiro, bastaram 22 dias para que Odair se visse completamente “duro” e tendo de amargar dias e noites na rua. Dormindo na Praça Tiradentes ou na Praia de Copacabana, sujeitava-se a tocar onde fosse aceito. Cabarés, prostíbulos, inferninhos da boêmia carioca. Onde houvesse uma porta aberta, um mísero cachê ou um prato de comida, Odair levava seu violão, sua voz e suas canções passionais. A exposição na noite fez com que topasse com artistas como Ataulfo Alves que, solidário com as dificuldades passadas pelo jovem cantor, chegou a acolhê-lo no sofá de seu apartamento. Odair revela a Tassara que se considera uma espécie de “repórter musical”. Um observador do cotidiano de minorias desprezadas, que devolve em forma de canção tudo aquilo que vê.
Em menos de três anos, ele atingiria vendagens comparáveis às do Rei Roberto Carlos e mergulharia em uma realidade de fantasia. Astuto, conta que não dava a mínima para a crítica musical da época. Poderiam dizer dele o que bem entendessem, pois o crivo popular o elegia como porta-voz. Sua missão de “repórter” foi eficaz em dialogar e dar voz a quem realmente lhe interessava. Odair recorda que muitos dos jornalistas que faziam vista grossa para sua produção dividiam mesas de bar com ele e, sem qualquer pudor, usufruíam da condição privilegiada que levava. Tinha muito dinheiro e poder. Em anos de “desbunde” – como o início da década de 1970 -, o próprio cantor se deixou levar pela “porra-louquice”. Confessa com um sorriso matreiro no rosto que, à época de O Filho de José e Maria, estava “muito doido”. Passava os dias na praia, tomando cerveja, uísque, vinho, somados a um ou outro “baseadinho”, e ainda encontrava energia para exercer o papel de “Rei da Noite”.
Odair viveu intensamente a década que Tassara vai cobrir em seu documentário e admite que passou a “descuidar da carreira”, produzindo muitas das coisas que, hoje, considera ruins em sua obra. A autocrítica não exime o cantor de uma postura altiva sobre seu lugar na história da música brasileira. “Tenho algo em torno de 500 composições. Reconheço que a maioria delas é muito ruim, mas também sei que umas 50 são muito boas. Algumas beiram a perfeição. Foi isso que me deu a importância que tenho para meu público. São canções que, independentemente de quem tenha escrito, são muito boas e ponto final. Isso ninguém tira de mim. Contra isso, ninguém pode argumentar nada.”
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