Retratos da emancipação

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Em As Sufragistas, Maud (Carey Mulligan, à dir.) adere ao movimento feminista a convite da amiga Violet Miller (Ane-Marie Duff)

californiaClara Gallo, a Estela, de Califórnia, e Caio Horowicz, o JM, colega de classe que chega no meio do ano letivo e cativa a adolescente por causa do gosto musical

Mesmo com a distância temporal de um século e as diferentes densidades de suas histórias, dois filmes que entram em cartaz no País neste mês – um estrangeiro e um nacional, ambos dirigidos por mulheres – abordam questões que dialogam com o momento de ascensão do feminismo no Brasil. Fenômeno visto em manifestações recentes batizadas de “Primavera das Mulheres”, iniciadas com os protestos contra o PL 5069, projeto de lei de autoria do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que prevê limitações ao atendimento às vítimas de estupro na rede pública de saúde, criminalização aos cidadãos que incentivarem práticas abortivas e o fim da comercialização da chamada pílula do dia seguinte.

Baseado em insurreições históricas, As Sufragistas, da cineasta britânica Sarah Gavron, retrata a luta feminina pelo direito ao voto na Europa do final do século 19. Já o longa-metragem brasileiro Califórnia, de Marina Person, narra, por meio da adolescente Estela, parte das transformações comportamentais experimentadas pela juventude brasileira ao longo da década de 1980, tempo de reabertura política e de maior emancipação feminina, no País, mas, em contrapartida, de convívio estreito com o fantasma da Aids.  

Igualdade pelo voto

 As Sufragistas chega aos cinemas de todo o País no dia 24 deste mês de dezembro. Baseado em roteiro de Abi Morgan, autora da premiada trama de A Dama de Ferro, cinebiografia de Margaret Thatcher, o drama aborda a consolidação do Movimento Sufragista, criado na Inglaterra e nos Estados Unidos no final do século 19.

O filme retrata a luta de um grupo de mulheres que trabalham em uma lavanderia em Londres e são exploradas diariamente pelo dono do estabelecimento. Cansadas da opressão, dentro e fora do ambiente de trabalho, algumas funcionárias decidem aderir ao sufragismo e passam a promover encontros clandestinos para arquitetar ações em defesa do direito ao voto e difundir seus ideais libertários para outras mulheres nas ruas da capital britânica. Em grande atuação, no papel da protagonista Maud Watts, a jovem atriz britânica Carey Mulligam contracena com a conterrânea Helena Bonham Carter e com a estrela norte-americana Meryl Streep.

Após anos de luta, protestos pacíficos e poucos avanços, o movimento sufragista ganhou força em 1903, com a criação do Partido da União Social e Política da Mulher, fundado pela britânica Emmeline Pankhurst. A causa recebeu adesão imediata de milhares de mulheres, e as consequentes repressões ao movimento, retratadas no filme, abriram os olhos da opinião pública para a brutalidade do sistema legal da época.

Ao longo dos últimos cem anos, houve evoluções das pautas feministas, mas ainda há países com realidades análogas à retratada em As Sufragistas. A Nova Zelândia foi o primeiro país a liberar o voto para as mulheres, em 1893. Depois de quase três décadas de lutas, somente em 1928 a Inglaterra reconheceu o o voto feminino. Quatro anos depois, as brasileiras tiveram o mesmo direito assegurado. Em 1952, a ONU criou a Convenção Sobre os Direitos Políticos da Mulher, com a premissa de que todas as nações devem conceder o direito ao voto às mulheres. No entanto, somente neste ano, por exemplo, as mulheres da Arábia Saudita atingiram essa conquista, em eleições municipais previstas para o dia 12 deste mês. A força de As Sufragistas, um grande filme, reside na constatação de que a luta feminina por igualdade continua e que, nessa batalha, a História é um aliado indispensável.

 GERAÇÃO 80

 Hoje com 46 anos de idade, a cineasta Marina Person viveu boa parte dos dilemas da adolescente Estela (Clara Gallo), protagonista de Califórnia, seu primeiro filme ficcional – em 2007, Marina lançou o documentário Person, sobre seu pai, o também cineasta Luís Sergio Person (1936-76), autor de clássicos do cinema brasileiro, como São Paulo S/A e O Caso dos Irmãos Naves.

Ambientado em São Paulo na primeira metade dos anos 1980, Califórnia foi idea­lizado por Marina em 2004, ano em que registrou em um caderno o desejo de escrever um roteiro que falasse dos ritos de passagem de sua geração.

“O filme nasceu daí, mas foi rodado somente em março de 2014. Nele, quis falar sobre como era ser adolescente em um Brasil que se abria politicamente após 21 anos de ditadura, e que ainda lutava por eleições diretas. Um País que renovava expressões culturais e tinha o rock como porta-voz da juventude. Queria também falar da Aids e de como foi ter as primeiras experiências sexuais em meio à descoberta da epidemia de uma doença violenta e desconhecida, cercada de preconceito e ignorância.”

Ao final de Califórnia, percebe-se que o título do filme é carregado de simbolismo. Claro, trata-se do estado da costa oeste norte-americana, famoso por suas praias idílicas à beira do Oceano Pacífico. É lá, mais especificamente em Los Angeles, que reside o tio de Estela, o jornalista cultural Carlos, interpretado por Caio Blat.

Cercada por conflitos familiares, Estela tem na figura do tio a maior referência do universo adulto. Inveja sua vida de repórter, idolatra os mesmos artistas que ele, sobretudo David Bowie, e sonha encontrá-lo em uma viagem negociada com seus pais (Paulo Miklos e Virginia Cavendish)em troca de sua festa de 15 anos.

Enquanto não chega o dia da tão esperada viagem, Carlos e Estela trocam regularmente cartas e fitas cassete repletas de depoimentos afetivos e íntimos, como a confissão de Teca, apelido da menina, da incapacidade de resistir à paixão por um colega de colégio, surfista, que em nada se parece com ela, e a chegada de um novo aluno, JM (Caio Horowicz), por quem começa a nutrir afinidades.

Às vésperas da partida da menina para os Estados Unidos ela recebe a notícia de que o tio está a caminho do Brasil. A chegada de Carlos e a descoberta de que ele é portador de HIV dão outra dinâmica ao filme. Da fantasia adolescente de ir à Califórnia, Teca transcende para um universo real que a transforma e faz dela uma mulher em sintonia com seu tempo, como observa Marina. “O filme tem algo de feminista por falar de mulheres que, no Brasil, começavam a se colocar de forma diferente, com liberdade de escolhas. Nossa vida sexual, por exemplo, podia começar com quem a gente quisesse e não apenas com nosso noivo ou marido.”

Permeado por bela trilha sonora, com canções de bandas como The Cure e Echo & The Bunnymen, Califórnia exala leveza e sensibilidade.


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