Arquivo pessoal Dom Salvador ensaia com os músicos do Abolição

Salvador da Silva Filho, ou melhor, Dom Salvador, completa hoje 75 anos. Radicado em Nova York, nos Estados Unidos, há 40  anos, com sua mulher Mariá, e os filhos Marcelo, psicanalista, e Simone, socióloga, o pianista nascido no interior de São Paulo, em Rio Claro, fez trajetória das mais expressivas na música brasileira e mundial.

Egresso de uma família de 11 irmãos Salvador começou a tocar bateria aos 6 anos, por influência do primogênito, Paulo, um apaixonado por música, que tocava saxofone, contrabaixo e bateria. Percebendo a vocação e o interesse do caçula, ele   orientou o menino a deixar de lado o aprendizado intuitivo da bateria e o convenceu a estudar piano aos 9 anos, para também aprender a ler partituras. Um ano mais tarde, apostando no potencial de Toím, como era chamado pelos irmãos, que juntaram  economias para comprar um surrado instrumento, Salvador ganhou seu primeiro piano de parede.

As aulas de piano erudito com a professora Liselotte, de ascendência alemã, foram fundamentais para viabilizar um caminho profissional. Aos 14 anos, então discípulo da rigorosa Ofélia, sua nova professora, que assumiu o papel de Liselotte após ela casar-se e partir para Campinas, Salvador passou a integrar a Orquestra Excelsior e apresentar-se regularmente em bailes que corriam o interior de São Paulo.

Aos 16 anos, ele mudou-se para a capital e, na noite de inauguração da boate Black & White, no Reveillon de 1962, passou a integrar o conjunto Oliveira E Seus Black Boys, do saxofonista Oliveira. No grupo, Salvador conheceu sua inseparável companheira, a cantora Mariá.

E foi na boêmia do Centro de São Paulo, que o pianista teve um encontro divisor para sua carreira. Certa noite, topou com a cantora Flora Purim e o baterista Dom Um Romão, no mítico bar Baiúca, antro do nascente samba-jazz paulistano. Dom Um liderava um trio carioca, o Copa Trio, um dos pioneiros no novo gênero instrumental derivado da bossa nova. Impressionada com a performance do jovem Salvador, que subiu ao diminuto palco para uma canja, Flora convidou o pianista para ir morar no Rio de Janeiro e integrar o trio do marido, pois o posto de pianista ficaria vago em menos de 15 dias, com a saída de Toninho. Com o Copa Trio (ouça ao vivo o tema Meu Fraco é Café Forte), Salvador começou a ganhar visibilidade entre grandes músicos. Com a partida de Dom Um Romão para uma série de shows internacionais acompanhado o Brasil 65, do pianista Sérgio Mendes, não tardou para Salvador liderar seu próprio combo ao lado do baixista Mané Gusmão (também egresso do Copa Trio) e do baterista Edison Machado. E foi Edison, criador do samba no prato e um dos bateristas mais influentes de sua geração, quem deu ao grupo o nome de Rio 65 Trio, em referência ao quarto centenário da Cidade Maravilhosa.

Com o Rio 65 Trio Salvador lançou dois álbuns, o primeiro deles (ouça), um clássico, estudado por aspirantes a jazzistas até mesmo na lendária Berklee School of Music, em Boston, nos EUA , e o segundo, não menos importante, chamado A Hora e a Vez da MPM (de 1966, e cabe aqui uma explicação: MPM era a sigla para Música Popular Moderna, que antecede o termo MPB). Findado o grupo, o pianista lançou, ainda, em 1967, um álbum homônimo, com um novo combo intitulado Salvador Trio.

Entre 1967 e 1969, Salvador dedicou-se a trabalhar como músico profissional para grandes gravadoras. Ao travar contato com Hélcio Milito, ex-baterista do Tamba Trio e produtor da CBS, ganhou dele a alcunha de “Dom” e um álbum divisor para sua carreira, no qual o pianista, por influência de Milito, incorporou elementos de soul e funk, gêneros americanos, disseminados pelo patriarca James Brown, que ganhavam simpatizantes no Brasil, como os grupos Impacto 8, do trombonista Raul de Souza (ouça a versão I’ve Got a Feelling, de James Brown) e Cry Babies (ouça Caminhos Diabólicos, versão de Evil Ways, de Carlos Santana), liderado pelo saxofonista Oberdan Magalhães que teve como integrante a cantora Rosana (sim, a mesma do standard brega O Amor e o Poder, do refrão “Como Uma Deusa, você me mantém…”).

E foi justamente reunindo bambas egressos do Impacto 8 e dos Cry Babies que Dom Salvador montou um supergrupo, o noneto Abolição, para participar do V Festival Internacional da Canção, de 1970, com o tema Abolição 1860-1980, escrito por Salvador e Arnoldo Medeiros.

O grande vencedor do festival, Toni Tornado, com BR-3, também reiterava a informação de que uma nascente cena musical, influenciada pela música negra norte-americana, e de matrizes africanas, se estabelecia no País. Em 1971, veio o convite da CBS para que o Abolição lançasse seu primeiro álbum, um clássico instantâneo, que ganhou o nome Som, Sangue e Raça e abriu caminho para fusões de gêneros brasileiros e estrangeiros jamais ouvidas no País. 

Produzido pelo húngaro Ian Guest o disco foi registrado com total liberdade por Dom Salvador e seus músicos – entre eles, craques como Oberdan, o baixista Rubão Sabino, Serginho Trombone, Luiz Carlos Batera, o guitarrista José Carlos, o trompetista Darci e a mulher do pianista, Mariá.

O álbum emociona desde a faixa de abertura Uma Vida, cantada pelo baterista Luiz Carlos (veja vídeo no qual o Abolição apresenta a canção com Elis Regina). Entre os 12 temas alguns já tinham sido registrados por Dom Salvador no álbum de 1969 – a belíssima O Rio, que cruza uma elegante e insistente frase de piano elétrico com percussão digna de uma escola de samba, Tio Macrô e Moeda, Reza e Cor). Outro tema cantado, de forte carga sabor agreste e emocional, Hei Você, foi composto por Nelsinho e Getúlio Cortês (autor de Negro Gato e irmão de Gerson King Combo). Guanabara, a segunda faixa do disco explicita que o cruzamento do funk com as células rítmicas do samba davam o maior pé.

Com a boa recepção do álbum, o Abolição integrou uma série de shows com Jorge Ben e o Trio Mocotó, intitulada Tudo Que Vai Vem, por dois meses, no Teatro da Praia, em 1972. O grupo também fez temporada na requintada boate Number One, em Ipanema. Prestes a fechar o repertório para um segundo álbum o noneto foi extinto por problemas incontroláveis. Parte dos músicos aderiram ao desbunde comportamental daquela virada de década e tiveram sérios problemas com álcool e drogas. Situação que colocou Dom Salvador, como líder, em uma tremenda saia justa, pois eram frequentes as faltas e atrasos, em ensaios e shows, e ele era o responsável jurídico do grupo.

Um ano depois de romper com os músicos, o pianista partiu para Nova York, em 1973, e nunca mais voltou para o Brasil, apesar de apresentar-se por aqui com certa frequência.

O Abolição teve vida efêmera, mas seu importante legado é indiscutível. Dissidentes do grupo, como Oberdan Magalhães, fundador da Banda Black Rio, que agregou parte do noneto, foram decisivos para a consolidação de uma cena musical que revelou artistas como Gerson King Combo, Carlos Dafé, a banda União Black e o compositor Miguel de Deus (destaque do post anterior, com o álbum Black Soul Brothers).

Em 2011, o pianista foi entrevistado pela Brasileiros (leia). 

Ouça a íntegra de Som, Sangue e Raça!

Boa audição, e salve Salvador! 


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