Segregação, o calcanhar de aquiles das escolas francesas

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2015 – A escola passou a ser questionada quando se soube que os terroristas eram franceses

 

NA FRANÇA, a universalização do acesso à educação é antiga. O ensino primário (entre 6 e 11 anos) se tornou gratuito em 1881 e obrigatório em 1882. Hoje cerca de 80% dos alunos estão no sistema público. Essa legislação fez com que a França se tornasse um exemplo para outros países, como observou o sociólogo Choukri Ben Ayed, professor da Universidade de Limoges e palestrante do Seminário Internacional Cidades e Territórios, promovido, em junho, pela Fundação Tide Setubal, em São Paulo.

Em sua palestra, Ayed abordou o impacto da segregação social sobre o sistema educacional. Segundo ele, os atentados extremistas de janeiro de 2015 contra o jornal Charlie Hebdo provocaram “um despertar tardio do Estado francês” para o problema. A partir daquele momento a escola se tornou o centro das discussões para “tentar entender como cidadãos franceses – pois os irmãos Kouachi nasceram e foram educados na França – puderam atacar o país”. Em entrevista à Brasileiros, o sociólogo afirmou que a escola enfrenta o desafio de criar uma nova sociedade para ensinar a convivência, “o viver junto”. Para ele, quanto maior a diversidade em sala de aula, melhor a aprendizagem.

Brasileiros – O sistema escolar reflete os problemas da sociedade?
Choukri Ben Ayed – Sim, obviamente. Um relatório sobre a relação que existe entre escola e pobreza, publicado em 2015, classificava a escola como um “refúgio”. Em vários casos ela é o último vínculo dos mais desfavorecidos com o Estado. A escola revela a extrema pobreza e é o lugar onde as situações de carência podem ser detectadas, como ocorre, por exemplo, quando um aluno deixa de ir repetidamente a excursões escolares porque não tem recursos. É na escola que o Estado pode intervir, graças aos professores, que podem avisar o serviço social sobre as crianças em dificuldades. Mas não estávamos preparados para descobrir uma segregação tão intensa dentro das próprias escolas.
 
Que problemas a França enfrenta?
Durante muitos anos, o Estado francês deixou de lado a questão da segregação. O país não queria pensar que a sexta potência mundial poderia enfrentar esse problema em seu próprio território: era algo reservado para os outros. Hoje, existe uma dúvida crescente sobre o sentimento de pertencer à República Francesa. Existe um sentimento de não fazer parte desse conjunto. O primeiro-ministro, Manuel Valls, depois dos atentados de 2015, disse que existia na França um apartheid territorial, social e étnico porque os ataques mostraram que havia uma falha no sistema de integração social: os terroristas não eram estrangeiros. Eles eram franceses, nascidos e educados na França.

“PARA OBTER UMA BOA DINÂMICA, OS PROFESSORES PRECISAM MOBILIAR ALUNOS DIFERENTES: QUANTO MAIORES AS DIFERENÇAS, MELHOR A APRENDIZAGEM”

O senhor pesquisou a questão da diversidade. Como define esse conceito? 
Basicamente a diversidade é o oposto da segregação. Não se trata de fixar proporções de grupos sociais na escola, o que seria simplesmente impossível. Não podemos exigir ter 25% de crianças da classe média alta na escola quando elas apenas representam 3% da população daquele território. Mas não deve haver fortes discrepâncias entre a clientela das escolas e a composição dos bairros.

Em que medida um déficit de diversidade social na escola pode afetar a igualdade na aprendizagem?
Nas escolas muito segregadas, ou seja, naquelas que não têm nenhuma diversidade social, as condições de ensino são difíceis, existem perturbações, como falta de disciplina. Na verdade, acredito que, para obter uma boa dinâmica de grupo, os professores precisam mobilizar alunos diferentes: quanto maiores as diferenças entre eles, melhor a aprendizagem.

Por que a diversidade é importante?
A França tem 1,2 milhão de crianças de famílias pobres, que vivem em condições comparáveis às dos países em desenvolvimento. Essas crianças saem do sistema com um currículo escolar enxuto. Na maioria dos casos, saem do sistema sem nenhuma qualificação. Como estudam em classes sem diversidade, elas recebem uma forte impressão de que foram abandonadas, rejeitadas pelo Estado. Estou falando aqui das escolas de periferia.
 
Na sua palestra, o sr. citou uma política contra a segregação adotada por Nicolas Sarkozy, em 2007.
A reforma chamada de Assouplissement da Carte Scolaire (flexibilização do currículo escolar), do presidente Nicolas Sarkozy, correspondia a uma liberalização do mercado escolar. A lei permitia que as famílias escolhessem as escolas em que quisessem colocar seus filhos. Antes disso, a criança era automaticamente inscrita numa escola de acordo com sua região. A lei surgiu para favorecer a diversidade social e se baseava na ideia de que eram as instituições públicas que impediam a mobilidade. Mas ela foi um erro. Acabou tendo o efeito contrário ao desejado.

O senhor mencionou também uma nova lei do atual governo, de François Hollande, a favor da diversidade.
A lei diz que é preciso assegurar a diversidade social. Agora um decreto mais detalhado foi publicado. Ele tenta articular a possibilidade para que os pais escolham o colégio, deixando para a administração a tarefa de fazer com que os critérios de diversidade social sejam garantidos. Só que a administração não tem como contabilizar isso, porque não possui documentos apontando a origem social dos alunos.

Mas disso saiu algo interessante? 
Repensar a setorização. Muitas escolas foram construídas nos anos 1960 em lugares absurdos. Por exemplo, a minha cidade tem dois colégios a 300 metros um do outro, mas um terço da cidade não está coberta por nenhuma escola. Outra ideia consiste em organizar o ensino em ciclos dentro de um mesmo setor de duas ou três escolas: os alunos estudariam em uma escola em um ano e no outro iriam para outra, localizada na mesmo área. 

O senhor mencionou o fato de que, na discussão dessa nova lei, os professores não foram consultados.
Isso é um erro monumental. É uma das razões que explicam o mau funcionamento do aparelho escolar. Eles são os embaixadores da escola, a vanguarda da escola quando é preciso conversar com os pais. É preciso trabalhar a legislação com eles.

Leia esta e outras reportagens da edição 108 da Revista Brasileiros, nas bancas a partir desta sexta-feira, 15 de julho.


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