Superar limites. Do corpo e do preconceito. Essa é a árdua tarefa de cerca de 24,5 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência física, segundo estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Para essas pessoas, a vida cotidiana ganhou novas barreiras, bem mais difíceis do que aquelas impostas às pessoas consideradas perfeitas. Muitas delas, no entanto, decidiram ignorar esses limites e resolveram tirar a letra “D” do rótulo imposto pela sociedade para serem simplesmente eficientes, no esporte, no trabalho, no amor e na vida.

Antes de brilhar nas piscinas durante as Paraolimpíadas de Pequim, onde conquistou nada menos do que nove medalhas – sendo quatro de ouro -, Daniel de Faria Dias precisou vencer, com o brilho de seu sorriso, o preconceito e os olhares desconfiados dos habitantes da pequena Camanducaia, cidade de pouco mais de 19 mil habitantes, cravada entre as montanhas do sul de Minas Gerais. Ainda no berço da Maternidade de Campinas, onde nasceu no dia 24 de maio de 1988, Daniel teve de mostrar aos pais, Paulo Ferreira Dias e Rosana de Faria Dias, que a falta das duas mãos, de parte dos dois antebraços e de uma das pernas não seria obstáculo para que sua família ficasse feliz com sua chegada.
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“O pai dele desmaiou quando soube. Ele entrou no quarto e me contou sobre o nosso filho. Quando fui vê-lo na incubadora, a enfermeira me disse ‘pode colocar a mão’. Ele era todo pequenininho e quando eu o toquei ele sorriu. Ela então virou para mim e disse ‘ele sabe que é a mamãe’. A partir daí eu nunca mais vi meu filho sem mãos, braços ou perna. A partir daí eu vi meu filho perfeito”, lembra Rosana. E foi esse amor que fez com que Daniel crescesse como uma criança comum, andando de bicicleta, jogando bola na rua, soltando pipa e nadando nos córregos e cachoeiras da cidade. Mesmo que isto custasse à família a troca ou o conserto permanente da prótese da perna direita.

“Meus pais nunca falaram que eu não ia conseguir fazer alguma coisa. Lembro que queria uma bicicleta e quando meu pai teve condições, ele comprou. Ele me deu e ficou olhando para ver o que eu ia fazer. E eu fui. Quando você sabe que as pessoas estão acreditando, você simplesmente arruma uma maneira e vai”, afirma Daniel.

O campeão paraolímpico recorda ainda do momento em que foi à escola pela primeira vez. Foi na sala de aula, onde, em tese, deveria começar todo o processo de inclusão da criança na sociedade, que Daniel enfrentou o primeiro grande obstáculo de sua vida: o preconceito.

“As pessoas me chamavam de Saci, aleijado. Queriam tocar para ver se era de verdade. Isto são coisas que deixam uma criança triste. Muitas vezes eu chegava em casa chorando. Mas minha mãe sempre me ensinou que a gente não tem de responder, nem ligar para essas pessoas. Porque pessoas assim sempre vão existir. Eu pensava muito na minha família nesses momentos. Eu sabia que, ao chegar em casa, meus pais e meus amigos sempre estariam ao meu lado.”

Levado e superativo desde criança, Daniel voltou os olhos para o esporte paraolímpico em 2004, quando assistia pela TV as vitórias do tubarão Clodoaldo Silva, que conquistou seis medalhas de ouro e uma de prata nos jogos de Atenas. Seu pai buscou informações sobre o assunto em uma palestra de Steven Dubner, presidente da Associação Desportiva de Deficientes, localizada em São Paulo, onde Daniel deu suas primeiras braçadas.

O nadador recorda que, ao chegar à associação, foi logo dizendo que queria jogar basquete ou futebol. Mas, por orientação da psicóloga Eliane Lemos, caiu na água. Foi ali que Daniel descobriu sua verdadeira vocação e maravilhou os olhos da sua primeira treinadora, Márcia Greguol. “Ele ficou bom rápido demais. Em oito aulas, já dominava os quatro estilos da natação. Geralmente, pessoas sem deficiência física e com potencial levam três meses para isso”, lembra Márcia, que hoje busca novos talentos em um projeto desenvolvido nas piscinas de Londrina, no Paraná. O talento nato e a determinação fizeram com que seis meses depois, em sua primeira competição, Daniel já conquistasse dois terceiros lugares no campeonato brasileiro, disputado em Belo Horizonte. Menos de quatro anos depois, subiu quatro vezes ao lugar mais alto do pódio no Cubo D`água em Pequim.

“O Daniel tem uma alegria muito grande de viver e de conquistar cada objetivo que ele planejou. E para isso não mede esforços, se entrega de corpo e alma. É um exemplo para cada um dos 40 atletas que não têm deficiência que treinam com ele”, diz o atual treinador, Marcos Rojo Prado. Em meio a treinos, competições, aulas na faculdade de educação física, concertos de bateria com o grupo da igreja e a atenção à namorada Raquel, Daniel ainda encontra tempo para fazer palestras e falar um pouco de sua vida. Em suas falas, ele diz sempre que deficiência é uma palavra limitante e que classifica as pessoas. Ele lembra que cada pessoa, deficiente ou não, tem seus próprios limites. E que cabe a cada um escolher a forma de lidar com essa deficiência. Pelo sorriso, sempre estampado em seu rosto, ele mostra a sua maneira de superar limites e diz que não é um atleta deficiente, mas um atleta paraolímpico.

A INCLUSÃO PELO ESPORTE
Quando um jovem paraplégico chegou até o professor de basquete Steven Dubner e disse que queria participar da partida, o atual presidente da Associação Desportiva de Deficientes (ADD) mal sabia como aquele gesto iria mudar sua vida. “Eu pedi para ele sentar no banco, peguei a cadeira (de rodas), dei umas voltas com ela batendo a bola. Voltei até ele e disse ‘volta pra cá que dá para você jogar’”, conta. Passados quase 30 anos do episódio, Steven faz do esporte adaptado aos deficientes a sua vida. “Os próprios atletas brincam. Dizem que sou deficiente mental em acreditar neles e sonhar cada dia mais alto. Agora a meta é construir um complexo paraolímpico para impulsionar ainda mais a inclusão por meio do esporte. Se isto é ser doido, eu assumo o rótulo.”

Trabalhando há mais de 15 anos com esporte adaptado, a psicóloga Eliane Lemos afirma que o objetivo não é somente dar condições para os atletas profissionais, com potencial paraolímpico, mas fazer do esporte um meio para o deficiente tomar conhecimento de seus direitos e se tornar um cidadão como qualquer outro. Segundo ela, atualmente menos de 10% dos deficientes praticam algum tipo de esporte. “Por meio da prática esportiva, a pessoa descobre sua potencialidade, o que fortalece a auto-estima e a deixa mais segura para fazer escolhas. É todo um processo que está entrelaçado no fortalecimento do ser humano. Assim, ele passa a valorizar a possibilidade em fazer parte e fortalece a sua cidadania”, explica a psicóloga.

Eliane afirma que as leis que estipulam cotas para a contratação de pessoas com deficiência nas empresas são válidas, mas ressalta que o mais importante é dar condições de acesso e de educação para que elas possam buscar seu espaço por esforço e méritos próprios.

“Será uma realização o dia em que todas essas leis sejam extintas. Dessa forma não falaríamos mais em inclusão, porque não haveria exclusão. A deficiência não seria o lembrete para se ter direitos. A escola, as oportunidades de trabalho, capacitação, vagas na universidade seriam para todos. Enfim, que seja pensado no ser humano com a devida valorização de cada diferença, seja ele deficiente ou não. Porque somos diferentes e é isso que nos faz tão únicos.”

Bicampeão no futebol
Enquanto na China, a Seleção Brasileira de Futebol masculino amargava um 3 a 0 da Argentina – sendo desclassificada da final olímpica -, ainda em terras tupiniquins o escrete canarinho paraolímpico se preparava para a conquista do bicampeonato no futebol de 5, para cegos. Sem holofotes e o mesmo glamour da seleção principal, Ricardinho, Mizael e a equipe comandada pelo técnico Roderley Ferreira passaram um ano inteiro treinando, sem disputar sequer um jogo amistoso, por falta de recursos. “O time sempre foi muito unido. Nesse ano em que estivemos juntos, formamos uma grande família. Todos se ajudam muito. E isso foi fundamental para a conquista. A amizade e o respeito estão acima de qualquer outro valor no grupo”, conta Ricardo Steinmetz Alves, o Ricardinho, um dos craques do time. Superar os limites financeiros do grupo, que não tem patrocinador, e se tornar um dos melhores jogadores das Paraolimpíadas de Pequim, foi apenas mais um obstáculo para o jovem Ricardinho, de 19 anos, que há dez convive com a cegueira. Quando ainda era considerado uma promessa no futebol, pela platéia que acompanhava as peladas disputadas nas ruas da cidade de Osório, no litoral gaúcho, Ricardinho teve um descolamento de retina e foi perdendo, aos poucos, a visão. “Minha vida parou por quase três anos. Dos seis aos nove, eu nem podia ir à escola, pois não havia um colégio que fosse adaptado”, lembra o jogador. E foi, justamente, nesse momento que a família resolveu agir. Com a mudança para a capital Porto Alegre, Ricardinho voltou aos estudos e conheceu o futebol adaptado na Associação dos Cegos do Rio Grande do Sul (Acergs).

Em 2004, um encontro com os recém-campeões paraolímpicos de Atenas recolocou nos trilhos a promissora carreira daquele guri da cidade de Osório. A convocação para a seleção veio um ano depois. O sonho de criança virou realidade na vitória, quatro anos depois, por 2 a 1 na final contra a China, e na conquista do bicampeonato paraolímpico no futebol de 5 para cegos.

Mesmo com a medalha de ouro no peito, o discurso é bem diferente daqueles que são considerados os fenômenos do futebol mundial – e que voltaram com o bronze. “Não sou nenhum herói. Eu tenho capacidade de jogar bola e de defender meu País. E é nisso que eu e meus colegas pensamos quando entramos em uma competição. Eu treino para fazer bem feito e acho que tem de ser assim. Cada um fazer de seu dom uma dedicação constante”, acredita.

Voando sobre rodas
A vida passada sobre duas rodas e dentro do abrigo Cotolengo de São Luiz Orione, que abriga crianças com deficiência em Cotia, na Grande São Paulo, nunca foi empecilho para o maratonista, jogador de basquete, ciclista, triatleta e produtor de rádio e TV Fernando Aranha, de 30 anos. Aos 16 anos, Aranha pulou, literalmente, os muros que o prendiam no universo assistencialista da deficiência e ganhou o mundo. “Eu sempre gostei muito de fazer esportes. Mesmo sem poder andar, eu entrava em quadra para jogar futebol, basquete. Mas o padre que tomava conta do abrigo não deixava a gente praticar esportes em outros lugares. Então eu joguei a cadeira de rodas, escalei o muro e descobri qual era a realidade”, conta o atual campeão brasileiro de ciclismo e tetracampeão da tradicional Corrida de São Silvestre.

Aranha teve paralisia infantil por volta dos quatro anos de idade. Sem condições de criar o filho e sem contato com a família, a mãe entregou o menino aos cuidados da organização social que, até hoje, Aranha considera seu lar. “É a minha família. E quero ser a referência para aquelas crianças que estão lá. Mostrar que elas podem mais. Muito mais.”

Há cinco anos, quando já voava pelas ruas da cidade e pelas pistas com sua cadeira adaptada, o maratonista teve um encontro inusitado. “Numa competição, fui abordado por uma pessoa que disse conhecer uma moça muito parecida comigo.” Sem contato com a irmã há muitos anos, Isabel Cristina Aranha reconheceu o sobrinho em uma foto publicada em uma revista de grande circulação, que mostrava mais uma das façanhas do grande campeão da São Silvestre. “Foi a maior emoção da minha vida. Descobri que tenho uma família. E enorme, cara. Agora me sinto ainda mais privilegiado, com praticamente dois lares”, diz. A reaproximação da mãe é o próximo passo, o mais novo limite a ser superado para quem passeia pela vida de uma forma leve… sobre duas rodas.


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