Sem “perrengues”

Eram 14 pessoas à espera do avião, contando nove médicos, quatro enfermeiras, um técnico em raios x e um auxiliar. O rumo da equipe: Porto Príncipe, no Haiti, pouco mais de um mês depois do terremoto que matou 270 mil pessoas. À frente do grupo, comandando cada ação, lá estava a cirurgiã vascular Roberta Murasaki Cardoso.

Aos 34 anos, aparentando, sem favor nenhum, dez a menos, ela é a própria meninona. Fisicamente, nem de longe parece a mãe de uma garota de 16 anos, Ana Luísa, nascida quando ainda era adolescente e cursava o segundo ano de Medicina. Roberta usa um penteado Chanel repicado, roupas nem sempre recatadas e tem um modo extrovertido de falar, agitando os braços e encadeando as frases com rapidez, em um carregadíssimo sotaque paulistano.
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Ela não se furta a uma linguagem irreverente. Sorriso aberto, e sem nenhum constrangimento, define uma situação difícil como “punk”, e uma desavença como “perrengue”. Uma chefe improvável? Talvez, para quem a enxergue com tola sisudez, na expectativa do comportamento de uma circunspecta “doutora”. Mas uma chefe e tanto, para quem tem em conta sua capacidade de liderança e compreende que alegria de viver e competência profissional não são excludentes. Pelo contrário.

Naquele 26 de fevereiro, a tarefa da equipe era voar para uma estada de 17 dias no Haiti, na terceira jornada sucessiva no país caribenho empreendida pela Expedicionários da Saúde. Há sete anos, essa organização não- governamental, formada por médicos, enfermeiras e agregados, dá assistência a aldeias indígenas nos confins da Amazônia. Também se organiza para empreitadas de emergência, como no caso do Haiti. Ninguém recebe um níquel pelo trabalho.

Se, àquela altura, a tragédia no Haiti tinha menores dimensões, o drama permanecia pungente. “Fomos para Les Cayes, uma cidade a 180 km da capital, com 70 mil habitantes, um único médico e muitos refugiados, uns 100 mil. Não há mais hospitais em Porto Príncipe”, conta Roberta, no seu diminuto consultório em um prédio de uma rua íngreme, no bairro paulistano da Bela Vista. “O hospital em que nos instalamos, o Brenda Strafford, uma fundação canadense, havia sido inundado dias antes por uma tempestade danada. Paciência. O primeiro dia de trabalho teve de ser de faxina. Todo mundo foi esfregar o chão.” Roberta abre os braços e completa: “Tinha isso tudo de baratas em cada sala”.

Foi “punk”, claro. A começar pela viagem de dois dias em um espartano avião Hércules, da FAB (Força Aérea Brasileira), “com todo mundo espremido entre as cestas básicas”. Depois do dia de faxina, iniciou-se a interminável sucessão de enfermos, obrigando a estender o trabalho noites adentro. Os Expedicionários da Saúde estão retornando periodicamente ao Haiti, para tratar da reabilitação de pacientes, incluindo reintervenções cirúrgicas. Momentos de folga? Raríssimos. Nas quatro viagens ao país, a ONG realizou 250 cirurgias. Entre os atendimentos, há casos em que é impossível manter o distanciamento emocional. Roberta relembra um deles, em especial, que dá bem a medida do drama.

Uma garotinha chegou de Porto Príncipe com diversas queimaduras, de vários graus. Foram causadas, involuntariamente, pelos soldados. Acontece que, dias após a tragédia, admitindo a impossibilidade de sobreviventes, as famílias se viam instadas a permitir a queima dos destroços das próprias casas, para amainar o terrível odor da cidade. Nas primeiras labaredas, ouviram-se gritos. Era a garotinha, até então dada como morta. Roberta pergunta: “Como evitar que isso parta o coração?”. Em um átimo, o rosto risonho é tomado pela indulgência.

Embora faça parte da Expedicionários da Saúde há apenas três anos, completados em abril – período em que participou de cinco jornadas na Amazônia -, Roberta foi destacada para, doravante, chefiar todas as jornadas no Haiti. Claro que sua facilidade de comunicação e a fluência nos idiomas inglês e francês colaboraram na escolha. Outros atributos foram decisivos. É o que explica o ortopedista Ricardo Affonso Ferreira, um dos fundadores e coordenador da ONG: “A Roberta teve uma incrível capacidade de adaptação. Ela é das primeiras a se habilitar para as missões mais difíceis, e faz isso com a maior disposição. Que mais posso dizer? É muito competente, tenaz e sabe manter o ambiente em alto astral. E olha que não é fácil. Na mais recente ida à Amazônia, por exemplo, eram 45 pessoas e apenas três banheiros”.

Roberta sabe que, em situações de logística tão complicada, é inevitável exercer a liderança. “Senão vira a festa do caqui”, diverte-se. Mas confessa ter se envolvido com a Expedicionários, em primeiro momento, de maneira quase fortuita; e movida não só pelo espírito humanitário. Também precisava superar um período de sofrimento. Seu companheiro de três anos, um advogado, acabara de morrer de câncer.

Ela o conheceu como paciente, no hospital onde foi internado, já em um estágio delicado da enfermidade. Roberta sabia do risco de que a doença transformasse a história de amor em efêmera. Preferiu o otimismo. “Quando você se apaixona, isso é preponderante, claro”, diz. “Não dá para manter o tempo todo um olhar de médico. Mesmo que não queira, a gente se ilude que a recuperação será total.”

Ficaram as recordações dos dias felizes. E a dor, renitente, que o divã de uma terapeuta apenas atenuou. Quando soube, por intermédio de um colega, da urgência da Expedicionários – organização que até então desconhecia – em recrutar um cirurgião vascular, decidiu aderir. Mesmo ao saber que a viagem estava programada para a semana seguinte. Era preciso agilidade. Desmarcou cirurgias ou passou-as para outros médicos. Fechou temporariamente o consultório. Colocou uma barraca na bagagem. Por fim, embarcou. “Não pensava em integrar definitivamente a ONG”, admite. “Achei que quinze dias sem celular, bem longe de tudo, participando de uma experiência nova ajudaria a me recuperar emocionalmente, e isso, de fato, aconteceu. O que eu não previa é que o bichinho da solidariedade iria me picar tão forte.”

Sim, o “bem longe de tudo” estava no desejo – e nos planos. Mas Roberta não anteviu a extensão da distância geográfica. Foram precisos três dias para chegar a Pari-Cachoeira, nas margens do rio Tiquié, no Alto Rio Negro, a mais de 900 km de Manaus, onde a equipe atendeu índios hupdas, ticunas e dessanas, entre outras etnias, instaladas em escaninhos da selva. Faziam parte do programa manhãs e tardes inteiras em desconfortáveis voadeiras, ora assoladas por tempestades, ora por um sol inclemente. Uma vez nas tribos, era instalado o centro móvel de cirurgia. Embora a Expedicionários da Saúde faça partos, se empenhe em clínica geral e esteja, enfim, para o que der e vier em matéria de medicina, as expedições na Amazônia visam, a rigor, realizar dois tipos de cirurgias, ambos sem maiores exigências pós-operatórias. Assim, uma das equipes, a de Roberta, opera hérnias inguinais e epigástricas. A outra, composta por oftalmologistas, faz intervenções para curar cataratas. Essa escolha por cirurgias pontuais tem o intuito de possibilitar aos indígenas viver seu cotidiano enxergando melhor e sem o risco de uma hérnia estrangulada, que pode ser fatal.

Os voluntários da organização não-governamental, pouco antes do embarque para uma das 15 jornadas no Amazônia
OITO ANOS DE EXPEDIÇÃO
Em 2003, o ortopedista Ricardo Affonso Ferreira e seu primo, o anestesista, Martim Affonso Ferreira, de férias, foram escalar o Pico da Neblina. É o ponto mais alto do território brasileiro (2.993,78 m), na Serra do Imeri, norte do Amazonas. Na volta, passaram por uma aldeia ianomâmi e se estarreceram com os problemas de saúde dos índios. Embora o governo federal venha incrementando o programa Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), ele ainda não dá conta dos
350 mil indígenas do País, sobretudo as etnias instaladas em pontos mais isolados da Floresta Amazônica. Surgiu, assim, a Expedicionários da Saúde, uma ONG dirigida por médicos voluntários que, desde 2004, realizou
15 expedições, com o apoio de entidades governamentais e empresas privadas. O número de cirurgias dobrou um ano depois, com a aquisição de um Centro Cirúrgico Móvel – hoje, há uma média de 18 operações diárias.
“Na primeira expedição, havia três voluntários”, conta Ricardo. “Na mais recente, foram 45.” O número de jornadas de assistência ao longo de cada ano é variável. Mas há pelo menos duas de maior envergadura, em abril e novembro. Após o terremoto do Haiti, em 12 de janeiro, a organização também passou a atuar no país caribenho. Nos planos, estão agora viagens para Angola, na África. Ricardo explica a atuação da Expedicionários: “Solidariedade não é uma questão de altruísmo, mas de sobrevivência. Se não cuidarmos do mundo neste momento, ele será muito pior para nossos filhos e netos”.

Entrar no dia a dia de índios ainda arredios à aculturação costuma ser fascinante. Embora cada etnia tenha seu modo de vida, Roberta viu, nessas andanças, comportamentos comuns a várias tribos. Uma de suas surpresas foi notar que as mulheres indígenas trabalham duro, até transportam cargas, enquanto os homens ficam no dolce far niente. “Em uma região de Pari-Cachoeira, houve um movimento das índias para mudar a situação, com greve de sexo e tudo, mas durou pouco.”

Embora sempre curiosa, Roberta tem evitado presenciar alguns dos rituais de passagem dos indígenas, dada a violência. “Entre os ticunas, as meninas moças têm os cabelos arrancados a mão”, condói-se. “No caso dos sateré-mawés, os rapazes têm de botar as mãos em luvas de palha repletas de formigas grandes. Choram de dar pena.” Como seria de imaginar, quanto mais escondidas nos meandros da floresta, mais surpreendente pode ser a cultura de algumas etnias. Para chegar a elas, no entanto, é necessário, muitas vezes, passar por percalços extenuantes. Roberta já se viu empurrando barcos no sentido contrário de cachoeiras. E sem “perrengues”.

Nada faria supor que a garota bem-nascida passasse por esses desafios. Filha do engenheiro-civil e professor José Roberto Cardoso e da professora de biologia Jandira Toyoko Murasaki Cardoso, Roberta, aos 12 anos, chegou a morar na França, onde o pai fez o pós-doutorado. Teve uma adolescência dedicada aos estudos, para alegria da família, de um lado de ascendência japonesa – o bisavô aportou em Santos, em 1908, a bordo do histórico Kasato Maru – e, do outro, uma mescla de etnias (portugueses, índios, italianos), que faria a glória do antropólogo Darcy Ribeiro, apologista da mestiçagem. “Fui uma cê-dê-efe”, desanda a rir. A facilidade com a Matemática e a Física motivou-a a seguir a profissão do pai, tal como ocorreu com o único irmão.

Às vésperas do vestibular, porém, por impulso – pois é, assim como, mais tarde, iria aderir ao grupo dos Expedicionários – resolveu, de uma hora para a outra, prestar Medicina. A troca ocorreu no dia em que visitou um escritório de Engenharia e, decepcionada, considerou o trabalho “puro tédio”. Entrou, aos 17 anos, na concorridíssima Escola Pinheiros de Medicina, também da USP. No ano seguinte, engravidou. Por acidente.

Ana Luísa, a filha querida, esteve presente em muitas aulas dos anos restantes do curso e, em seguida, nos quatro anos de residência. Segundo Roberta, a garota ainda não escolheu que carreira seguirá, embora já tenha batido o pé em jamais estudar Medicina. “Esse curso eu já fiz, mãe”, costuma brincar a adolescente. Hoje, Roberta e a filha moram em uma casa no Alto da Lapa, “com dois cachorros e uma tartaruga”. De sua rotina, constam, além do consultório, as cirurgias nos hospitais Santa Catarina e Edmundo Vasconcelos. “Médico reclama demais”, aponta. “Vive dizendo que o convênio paga uma mixaria, que é obrigado a trabalhar em mais de um hospital, que tem de atravessar São Paulo várias vezes por dia, enfrentando o péssimo trânsito, para garantir o orçamento. Ainda bem que tenho a Amazônia e o Haiti na minha vida.”

Quando alguém aborda Roberta para elogiar seu desprendimento em receber menos dinheiro no consultório para seguir ao lado dos Expedicionários da Saúde, com o único intuito de auxiliar o próximo – no que seria um altruísmo extremado e quase sobre-humano -, ela, com delicadeza, mas enérgica, faz questão de botar a bola no chão e interromper o discurso. Não vê assim seu trabalho na ONG. Foge de quem queira alçá-la ao altar da benevolência. Insiste em uma ideia, que retoma em várias passagens da entrevista: seu trabalho não é um desapegado esforço humanitário. Há um ganho pessoal em cada viagem.

“É uma troca”, diz. “Você, claro, está ajudando as pessoas. Mas elas também retribuem e isso te faz super bem. No fundo, você também está ajudando a si próprio, sabe como é?”

Roberta afirma que não sofre nas expedições, nunca sofreu, ainda que fique “com a bunda quadrada de tanto andar nas voadeiras” ou tenha de enfrentar, coberta até os pés na canícula amazônica, as impiedosas nuvens de mosquitos do Alto Solimões. É do ofício. Fazer o quê? “Se você quer mesmo saber, se pudesse, dedicaria todo o meu tempo a esse tipo de trabalho. Fecharia o consultório. É que eu tenho as minhas contas pra pagar…”

O lado da aventura também atrai – ela gosta de frisar. Roberta se vê como uma privilegiada ao poder encontrar uma tribo distante, falando um dos mais intricados dos 180 idiomas próprios das nações indígenas brasileiras, em que só o cacique, e olhe lá, arranha algumas palavras em português. Sente-se recompensada em topar com gente que gosta mais de gente que do tal “mercado”, esse deus idolatrado nos dias correntes.

Foi assim no Haiti. Lá estava o doutor Leger, médico haitiano que trabalhou fora do país caribenho, mas fez questão de voltar para partilhar com os conterrâneos o que aprendeu. Na viagem, também conheceu o americano Peter, que gastou seus escassos recursos para comprar crianças – isso mesmo, há trabalho escravo no Haiti – e libertá-las do jugo dos indigentes da ética. Da mesma maneira, emocionou-se com a abnegação das freiras indianas, da mesma ordem de Madre Teresa de Calcutá.

Também há traços de obstinação em Roberta. Ela não desiste perante os entraves. Na mesa de seu consultório está o monumental romance Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Comprou o exemplar três anos atrás e tentou lê-lo uma vez, duas vezes. Esbarrou na linguagem cifrada e nos neologismos. Deixou-o na estante, com a promessa de que, ora essa, tinha de ler uma das obras-primas da literatura brasileira. Na terceira tentativa, embrenhou-se pela prosa do escritor com a mesma determinação com que adentra a Floresta Amazônica ou participou da Corrida São Silvestre. Está amando o livro. Tanto quanto adora trabalhar entre os índios e os haitianos.

De todas as jornadas da ONG, Roberta lamenta não ter participado de uma. Não deu. Tinha seus motivos para descartar a convocação. O período da viagem coincidia com o mais importante exame da academia de caratê que frequenta, na modalidade shotokan. Passou, com todos os méritos. Hoje, é faixa-preta. No tatame, no astral e na vida.

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