Em janeiro de 1978, uma intimação assinada pela Justiça Federal – a pedido do Ministério da Justiça – ameaçava com prisão um grupo de profissionais da revista IstoÉ, que tinham assinado, em conjunto, a matéria de capa da edição de número 53, com data de 28 de dezembro, intitulada “O poder homossexual”.

A capa da revista, de autoria do diretor de arte e designer Hélio de Almeida, era de uma delicadeza sofisticada e respeitosa, em conformidade com o conteúdo da longa reportagem. Foi por isso – ficou-se sabendo ao longo do processo – que a equipe estava sendo intimidada: por tratar sem caricatura e sem preconceito uma legião de pessoas condenadas ao apartheid – e, naquela época, ao rigor da lei -, meramente porque não se submetiam aos padrões da moralidade (e da hipocrisia) vigentes.

“Apologia de comportamento desviante, anormal e obsceno”, bradavam as autoridades, no processo. É bom lembrar que, em 1978, mandava a ditadura fardada e a Justiça era, com raríssimas exceções, um subserviente fantoche dos militares.

Ousadia suprema da IstoÉ: em vez de uma daquelas capas tediosas de Papai Noel e de figuras bíblicas, típicas de falta de imaginação de fim de ano da revistas semanais, levantava um tema incômodo e polêmico.

Alguns dos perigosos elementos, então arrolados pela Justiça na qualidade de defensores dos “efeminados” e dos “invertidos”, militam hoje nesta Brasileiros. O diretor de redação, Hélio Campos Mello, colocou suas lentes a serviço da reportagem; o inesgotável repórter Alex Solnik, entre outras proezas, invadiu a redação de um vespertino paulista com fotógrafo a tiracolo e perambulou entre os travestis da madrugada de São Paulo; e o escriba aqui subscrito editou a matéria (observação à margem: no Rio, participou o repórter Tim Lopes, cuja dignidade profissional e talento investigativo culminariam, muitos anos depois, em inominável tragédia).

O processo da ditadura era tão ridículo que não deu em nada. Mas continua soando como um alarme da intolerância que, mais de 33 anos depois, ainda vez ou outra coloca suas garras de fora.

Eles não têm propriamente um nome”, abria o artigo da IstoÉ. Citava a novidade da hora: a palavra gay, recém-importada dos Estados Unidos. “Mas gay, no fundo, é um eufemismo”, continuava o texto. “Não desvenda o véu de semiclandestinidade sob o qual esses indivíduos ainda têm de se proteger. E não é culpa deles. Por força das circunstâncias, homossexual é igual barata; só sai de noite. Em geral, mascarado, para não ser reconhecido pelo colega de repartição ou pelo chefe do escritório. As circunstâncias: o desprezo social e as represálias até policiais. Neste país, as leis ainda insistem em falar, repugnantemente, como no tempo de Oscar Wilde, em ‘sodomia’. Aqui, ‘atentado ao pudor’ é noção suficientemente ampla para incluir até filmes de arte (lembrem-se de Casanova, de Fellini).

INCÔMODA E POLÊMICA
Capa da revista publicada em dezembro de 1977, e jornalistas que receberam intimação da Justiça

A melhor parte da reportagem – cabe reconhecer – era o texto escrito por Aguinaldo Silva, hoje consagrado autor de novelas da TV Globo, na época às voltas com o arrojado lançamento do primeiro jornal abertamente homossexual no Brasil, O Lampião. O semanário durou até 1981, mas o que Aguinaldo Silva escreveu – e que IstoÉ apresentou como “um manifesto” – não tem prazo de validade, faz pensar ainda hoje. “Antes de tudo”, começava Aguinaldo, “é preciso resgatar o homossexual dos lugares que a ‘normalidade’ lhe destinou: os becos escuros, os banheiros públicos e as saunas. Sempre o enfoque é este: o homossexual é um ser que vive nas sombras, que prefere a noite, que encara a sua preferência sexual como uma espécie de maldição – seu sexo não é aquele que ele desejaria ter.”

Será o Brasil de 2011 muito diferente do Brasil de 1977, de 1978? A legislação pode ter mudado, por força dos costumes e pela mobilização de gays e simpatizantes (e aí está a recentíssima e unânime decisão do Supremo Tribunal Federal em reconhecer, para efeitos civis, a união entre homossexuais). Mas a desconfiança e o preconceito ainda espreitam, na esquina, na forma de subtextos ofensivos, de piadinhas em programas pseudo-humorísticos, de liminares rancorosamente conservadores, quando não de violência ostensiva por parte de filhinhos de papai enrustidos e playboyzinhos vingativos.

Só para lembrar: na mesma Avenida Paulista onde se aglomera, uma vez por ano, todo mês de junho, a maior parada gay do mundo (dez vezes maior em contingente do que a notória parada gay de São Francisco, na Califórnia, e mil vezes maior em empolgação), três garotos foram agredidos por um bando de “coxinhas” arrogantes, exibicionistas e até aqui impunes. Os garotos foram atacados por motivação homofóbica. Não foi a primeira vez; dificilmente será a última. Infelizmente, a Justiça costuma acobertar o nome dos agressores.

Em resumo: se os gays saíram à luz – este já era o título da reportagem de IstoÉ no remoto mês de dezembro de 1977 – a vida deles continua não sendo nada fácil, nem um pouco.


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