Música do Mato Grosso do Sul? Bem, se alguém perguntar, é provável que lhe venham à cabeça as imagens de Almir Sater, da família Espíndola e da violonista Helena Meirelles. Os mais antigos também se lembrarão do ítalo-paulistano Mário Zan tocando Chalana, da influência das guarânias e até da harpa paraguaia de Luis Bordon.
No entanto, na noite de Campo Grande, a próspera capital do Estado, de 755 mil moradores, o gênero musical em alta é o blues, aquele mesmo surgido nos campos de algodão do sul dos Estados Unidos, nos primórdios do século passado. Basta entrar em bares como o Bourbon, o Bar Fly ou o Rota 16 para constatar. Tal como na Rua Bearle, de Memphis, ou no South Side, de Chicago, a plateia vibra a cada execução do twelwe bars tune, o blues de 12 compassos.
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Campo Grande tem seus próprios – e bons – blueseiros. Na linha de frente estão as bandas Whisky de Segunda, Mr. Willie, Renegados do Blues, Cachorro Velho e o antropofágico Zé Pretim, guitarrista que recorre ao gênero para reinventar músicas regionais mato-grossenses. Mas nenhum desses grupos tem o prestígio dos Bêbados Habilidosos, formado há 15 anos por Renato Fernandes. Duas das canções da banda, “Cortesã” e “Amigos do Copo”, entraram na trilha sonora de Nossa Vida Não Cabe Num Opala, de Reinaldo Pinheiro. Lançado em 2008, o longa-metragem foi inspirado na peça teatral homônima de Mário Bortolotto, fã declarado dos Bêbados, que fez a ponte entre a produção do filme e a banda.
Cantor e compositor, Renato Fernandes é carioca, tem 48 anos e está radicado no Mato Grosso do Sul há 17 anos. Só a partir de 1993 vem conseguindo viver exclusivamente de música, outra prova de que o blues em Campo Grande vive seus melhores dias. Renato calcula ter cerca de 60 canções compostas. Nas letras, sempre em português, a temática recai sobre as durezas de estar vivo, os amores desfeitos, a picardia e a boêmia para dar conta dessas mazelas. Por exemplo: “Se você nunca dormiu no banheiro de um bar vagabundo/Se você nunca amou a ninguém que foi embora/Se você nunca teve um dia de cão ou nunca bebeu pra fugir da solidão/Você nunca vai saber o que é o blues”.
O nome do grupo, as letras das canções e até o título dos dois álbuns lançados (Envelhecido 12 Anos e Embriagados ao Vivo) já provocaram críticas a Renato. Segundo elas, o blueseiro faz apologia às bebidas alcoólicas. Renato já se acostumou. “Quem faz apologia é a propaganda de TV ao insinuar que, bebendo, você vai conquistar uma mulher gostosa”, rebate. “Eu só faço blues. Não tem nada melhor que ouvir, contadas no seu idioma, histórias verdadeiras de boêmia e do cotidiano.”
De qualquer maneira, o novo álbum dos Bêbados Habilidosos, ainda em produção, tem um título menos inebriante: Vida Dura. No álbum, a formação da banda é a mesma, com Renato nos vocais; Rodrigo Paiva, na guitarra; Erik Artioli, na bateria e Marcelo Rezende, no baixo. Este último integrante resolveu debruçar-se sobre a genealogia do blues em Campo Grande. O resultado da pesquisa é o livro Vendi Minha Alma ao Blues, já concluído. No momento, Marcelo procura uma editora que se interesse pelo tema. Segundo ele, o primeiro blues campo-grandense foi composto em 1972. “A música é ‘Deixei meu Matão’, de Geraldo Espíndola”, diz. “Só foi gravada 14 anos depois pela Tetê, irmã do Geraldo, no disco Gaiola.”
Embora Campo Grande seja conhecida por seu céu de um azul muito claro e pela beleza do crepúsculo, é a noite, como seria de supor, que abriga os amantes do blues. Os proprietários dos bares com música ao vivo são, antes de tudo, fãs desse gênero musical. No caso deles, a área de atuação comercial tornou-se uma forma de juntar a turma. Edir Aparecida de Azevedo, 53 anos, por exemplo, é funcionária pública e abriu o Rota 16 na garagem da própria casa, em 2006, depois de uma reforma que durou apenas dois meses. O sucesso do bar, instalado em um bairro afastado, tornou-se tamanho que há quem aconselhe Edir a procurar um endereço mais próximo do centro da cidade. “Vou continuar aqui mesmo”, descarta. “O Rota 16 já criou personalidade e tem um clima de descontração. As pessoas se deslocam até aqui porque muitas bandas dão força, tocam, fazem ensaios ou até mesmo nascem no palco do bar.”
O médico Carlos Augusto Leme, 50 anos, inaugurou em janeiro o Bourbon, na região central de Campo Grande. “Abri o bar para me divertir”, resume. “Queria ter um lugar para ir à noite e encontrar gente da minha faixa etária e ouvir música da minha predileção. Vim de Curitiba para Campo Grande na década de 1980, sempre achei que a cidade precisava de um bar que primasse pelo bom atendimento para aqueles que gostam de blues e rock’n’roll.”
Ao contrário do que se poderia imaginar, durante o Carnaval, os bares de blues de Campo Grande não entraram em recesso. Em absoluto. Continuaram abertos para os muitos frequentadores que desdenharam a animação momesca em favor das letras de Renato Fernandes clamando que “uma dose de whisky afoga as mágoas dessa vida” ou suplicando “ter uma chance em cem de ganhar algum vintém”.
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