O Machado, já chegando aos 40, era homem bem-sucedido. Tinha amigos, um bom sócio e algumas moças discretas, das quais nem se ouvia falar. A vida ia bem para ele, mas faltava alguma coisa. Ele era, como dizem alguns, uma pessoa não infeliz.

Não era deprimido. Não vivenciava a raiva, nem o ódio. Não era preocupado, nem entediado. Não expiava culpa, nem sentia ansiedade. Não era irritadiço, nem frustrado.

Vivia bem o Machado, mas por ali não passava o amor. Nem perto. Não havia o altruísmo, não havia carinho nem compromisso. Ele não experimentava qualquer intimidade emocional. Não conhecia a meiguice. Havia nele um vazio que não sabia explicar.

No dia em que fez 40, decidiu encarar o problema. Talvez o cerne fosse a Maria, uma delícia, mulher do seu sócio Godofredo. Ele tinha suas fantasias. Ela, assim tão próxima, mantinha sempre uma fria distância que o inquietava. Talvez aquilo fosse um flerte, estranho flerte. Essas coisas nunca são claras.

Ele matutou, ruminou. Não sossegou até que um dia emoldurou a questão. Foi duro consigo, como sempre fora. O que sentia era inveja e ciúmes do Godofredo, de quem sempre gostara e que muito admirava.

Mas o Machado nunca agiu por impulsos. Deixou suas conclusões de molho. E foi ao longo dessa maturação que a Maria, então mais retirada de cena, foi passando para o plano principal. As fantasias foram ficando cada vez mais frequentes. Arrebatadoras. Muito intensas. Ele começou a perder referências. Curiosamente, a tal inveja do Godofredo foi se transformando em ardente desejo pela Maria. Coisa braba mesmo. Libido, apetite, fome. Foi perdendo o controle e, um dia, passou da conta.

Em um 23 de setembro, Sol em Sagitário e ascendente em Leão, ele pregou três tiros no sócio. No peito daquele com quem dividia as ambições, mas com o qual não aceitava partilhar Maria. Partilhar? Ela nem era sua.

Foi em um dia de pagamento de peão na obra. Iam armados, como sempre. Era rotina. O Godofredo guiando e ele com a maleta do dinheiro. Dessa vez, com pedras. Ele pediu ao sócio para dar uma parada no acostamento. Desceu, deu a volta por trás do carro e atirou à queima roupa. No lado esquerdo do peito. Corajosamente, com a canhota, deu um tiro em seu próprio braço direito. De raspão. Tudo aquilo doeu muito.

Empurrou o corpo para o banco de passageiro, assumiu o volante e voltou para Cesário Lange. Lá de cima da ponte do Sorocaba, jogou a maleta com as pedras e o 38.

Chegou à Santa Casa sangrando muito, com o Godofredo ali do lado. Morto. Amontoado. Foi uma correria. Uma gritaria. Não demorou muito e, ali deitado, ele escutou o choro da Maria no corredor.

Então, veio o enterro. De um lado a Maria, arrasada. Do outro, o Machado, com uma tristeza molhada no rosto.

Passou o tempo e tudo foi se ajeitando. Prenderam os suspeitos, uma dupla encardida. Maria veio ajudar nas coisas da empresa e foram se aproximando. Nela foi brotando um companheirismo amoroso. Talvez um pouco romântico. Uma coisa afetuosa, doce, temperada pela conveniência. Fruto do cotidiano. Tudo muito suave.

Já do lado dele, era fogo. Abafado, contido, mas fogo. Ele não entendia esse descompasso da Maria, distante de suas fantasias. O contraste era grande. De um lado ele, em chamas. Do outro ela, tíbia.

Decorreu a trégua social e, muito naturalmente, se casaram. Tocaram a vida pra frente.

O Machado não foi feliz, mas foi sempre correto com Maria. Jamais reclamou, jamais a traiu. Não disse um ai. Foi assim até o fim. Apesar do tropeço, era homem de caráter.

Maria cumpriu sua sina. Atendia o marido e cuidava da casa. Insatisfeita, também tropeçou. Coisa rápida. Mulher correta, manteve o menino sempre distante do Machado. Também tinha caráter, a Maria.

Nenhum deles nunca disse nada a ninguém. Só eu sei disso tudo.

Engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP. Dedica-se também à literatura.


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