Um fotógrafo acima de tudo

Há exatos 46 anos, o arquiteto Luis Humberto fazia sua primeira fotografia. Despretensiosa, casual,
como a de qualquer pessoa que registra o nascimento de seu primeiro filho. Filhos, vieram mais quatro, e, junto, centenas de fotos. A mesma época, esse apaixonado torcedor do Fluminense trocou a praia pelo cerrado. E foi lá, no traçado arquitetônico de Oscar Niemeyer e Lucio Costa, que ele deixou para trás réguas e pranchetas para dedicar-se em tempo integral à sua câmera fotográfica. Essas e outras histórias e curiosidades que acompanham sua vida estão contadas em detalhes por Nahima Maciel no livro Luis Humberto: A Luz e a Fúria, que a coleção Brasilienses acaba de lançar.

Escarafunchar seus arquivos em busca de imagens fez com que Luis Humberto revivesse situações e refletisse sobre eventos do passado. Fez também com que reencontrasse fotos que na época não pareciam tão importantes, mas que, ao revê-las, encheram-se de novos significados, o que acabou justificando a inclusão no livro. Sorte de seus admiradores, que poderão conhecer um pouco mais do trabalho desse fotógrafo que trabalhou muito tempo com fotojornalismo e é autor dos livros Universos e Arrabaldes, lançado pela Funarte em 1983, e Fotografia, a Poética do Banal, em 2000 pela Imprensa Oficial e pela UnB. Luis Humberto é considerado o padrinho de vários fotojornalistas e citado por uma centena de outros que, se não foram seus alunos diretos, aprendera tudo sobre a arte de fotografar com o grande mestre. “Sempre me perguntei por que mudei de profissão. Comecei a buscar na fotografia algum sentido. Descobri que a imagem é a minha vida. Sou encantado pela palavra, adoro escrever, mas a imagem para mim é mais forte”, diz o fotógrafo, que, junto com Hélio Campos Mello, diretor da revista Brasileiros, inaugurou a Coleção Senac de Fotografia, em 2003.

As muitas histórias do livro, está aquela que narra as conseqüências de sua mudança de profissão. Reconhecido na sua área de formação – participou da fundação da Universidade de Brasília -, ele lembra que ser fotógrafo naquela época não era muito bem visto na sociedade. “Teve gente que perguntou para minha mulher se estávamos passando necessidades, outros que deixaram de me cumprimentar, e ainda havia aqueles que me fitavam com olhar complacente, como se fosse apenas uma fase passageira”, recorda. Ainda bem que ele não se abateu com as críticas e continuou seguindo seu caminho, olhando, compondo, registrando e guardando em sínteses fotográficas tudo que via e que achava que valia a pena ser visto. Tranqüilo, de forma quase silenciosa como são suas fotografias – mas nem por isso menos afiadas -, durante décadas ele vem nos mostrando e nos ensinando a enxergar. Trabalhou nas revistas Veja e IstoÉ e de suas lentes saíram imagens importantes em um período em que a palavra era perseguida, mas a imagem – graças à ignorância dos censores – não era compreendida e sutilmente nos contava o que acontecia nos bastidores do poder. Foi ainda colaborador nas revistas Fotoptica e IrisFoto, ambas já extintas.
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É difícil conversar com ele sem gargalhar. É difícil falar com ele sem aprender algo sobre o País e sobre fotografia. Luis Humberto só fica sério quando indagado sobre a sua relação com o fotojornalismo. “Antes de mais nada, sou fotógrafo. Essa divisão é coisa de paulista e das revistas onde trabalhei”, diz, sem deixar de lado a antiga e boa rixa entre cariocas e paulistas. Isso porque, para ele, não importa o tipo de foto. Fotografar nada mais é do que aprender a ver a simplicidade do dia-a-dia, a enxergar os detalhes que ninguém vê. Por isso, além do fotojornalismo, ele também é reconhecido por seus trabalhos com paisagem doméstica. Não se trata, aqui, de retratos familiares (que ele também faz e dos quais gosta). São imagens de casas desabitadas onde a vida se dá pelos rastros deixados por seus habitantes: um jornal esquecido, uma tomada iluminada por uma fresta de sol, a porta entreaberta como se por ali alguém tivesse acabado de sair ou fosse chegar em alguns segundos.

Mas só clicar não bastou para Luis Humberto. Ele também lançou mão da escrita para desvendar os mistérios da fotografia. Em 1967, convidado pelo professor Pietro Maria Bardi, diretor do Museu de Arte de São Paulo (Masp), escreveu um artigo na revista Mirante das Artes. “Isso é algo que não gosto de falar, nem de mostrar, porque hoje reconheço que estava completamente equivocado em relação à fotografia”, confessa. Mas a experiência o levou a escrever cada vez mais e a se tornar um dos mais importantes teóricos e pensadores brasileiros da imagem fotográfica. Por meio dessas escritas, ele colocou em discussão tudo o que o incomodava e disse frases como: “O olhar fotográfico é um hábito visual seletivo, animado por uma percepção sensibilizada por motivações de diversas origens – filosóficas, ideológicas, culturais e afetivas – presentes em todos nós, mesmo que nem sempre identificadas de forma nítida”, contidas no livro Fotografia, a Poética do Banal. Ou ainda aquela sobre a sua profissão, que abre Universos e Arrabaldes: “A responsabilidade é imensa, porque o resultado de seu trabalho não pode ser decorrente da observação fria e impessoal das coisas que o cercam e dos fatos que ocorrem à sua volta; e sim conseqüência de uma atitude consciente, apaixonadamente participante e sobretudo honesta, em face destes mesmos fatos e coisas traduzidas em imagens”.

Não à toa o fotógrafo se tornou professor e arrastou atrás de si legiões de fãs. Fundador da Universidade de Brasília, em 1962 – mesmo ano em que se iniciou na fotografia – e expulso da mesma universidade depois do AI-5, de 1968, voltou para a cátedra nos anos 1980. “Naquele momento os alunos eram muito dispersos, a indústria cultural tomava conta de tudo ocupando espaço e não permitindo a reflexão”, disse a Brasileiros. “Ofereci duas disciplinas. Em Política Cultural, discutia as questões sociais, e a Análise da Imagem se transformou num espaço de experimentação.” Dessa forma, ele pôde discutir livremente o pensar fotográfico. E de tabela formar uma série de novos olhares que não esperam pelo inusitado para fotografar, nem se contentam com clichês. Olhares que indagam, que perguntam, mas, acima de tudo, que incomodam. Sábio, ao passar em revista seus quase 50 anos de profissão, diz – não sem uma risada: “Tinha tudo para dar errado, mas deu certo!”. Bom para nós.


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