Um parente de Dom Quixote

iliustração: Audifax
iliustração: Audifax

Fruto da longeva e produtiva parceria entre a Ateliê e a Editora da Unicamp, acaba de sair do prelo Palmeirim de Inglaterra – o impressionante romance de cavalaria escrito pelo português Francisco de Moraes Cabral (1500?-1572), entre 1541 e 1543. Em capa dura e ricamente ilustrada, a edição foi cuidadosamente preparada por Lênia Márcia Mongelli, Raúl César Gouveia Fernandes e Fernando Maués. A narrativa pertence ao chamado “Ciclo dos Palmeirins”, que compreende diversas obras publicadas na Península Ibérica entre 1511 e 1602. Elas dialogavam fortemente entre si e, em especial, com os pressupostos da Igreja Católica e os projetos de expansão territorial de ambos os reinos, em curso desde o final da Idade Média.

Como se sabe, uma das referências mais importantes a respeito da obra é bem posterior à sua data de publicação. Na verdade, brotou das páginas de outro romance igualmente notável. Em Dom Quixote de La Mancha, publicado por Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616) entre 1605 e 1615, o protagonista é um voraz leitor que decide queimar todos os seus livros. Eis que, em determinado momento, o cavaleiro salva três exemplares da fogueira: Tirante, o Branco, de Martorell e Galba (1490), Amadis de Gaula, de Montalvo (1508), e Palmerim. Estamos diante de uma das principais matrizes composicionais do romance cervantino. Nesse caso, podemos afirmar, como Borges, que certos livros iluminam as narrativas publicadas antes deles. Ao chegar até nós, a obra-prima de Francisco de Moraes conta com o aval prévio e insuspeito de uma das figuras mais sábias e inquietantes da literatura mundial.

Editado no século XVI, originalmente o nome do romance vinha acompanhado do subtítulo Primeira Parte da Crônica de Palmeirim de Inglaterra, a sugerir que a ficção poderia ser confundida vantajosamente com a arte de historiografar: ambas permeadas de relatos parciais, aliados a doses de fantasia, devoção e heroísmo. Aí reside uma das vantagens do enunciado artístico: a ficção não perde nada, quando aproximada em teor, forma e expressão, de outros gêneros. O fato de se tratar de um enredo repleto de aventuras e peripécias, situadas em determinado período histórico (e transcorridas em diversos locais de provação física, ética e moral), demonstra que o texto artístico, a exemplo dos relatos factuais, também resulta de um emaranhado de histórias recuperadas da tradição oral e da palavra impressa, igualmente sujeitas à imaginação de quem escreve.

Narrado por um cronista, o enredo traz as desventuras de D. Duardos, príncipe da Inglaterra que pretende alcançar o coração da princesa Flérida. Nas ocasiões em que se aproxima da jovem nobre, disfarça-se de jardineiro, permitindo a Francisco de Moraes fundir o lírico ao cômico. Por sinal, a ambiguidade é um ingrediente estruturador de Palmeirim de Inglaterra. O leitor é convidado a seguir, ora de muito perto, ora a distância insegura, a trajetória acidentada de um nobre, que experimenta o cárcere, lida com um gigante e sofre com a saudade de sua amada.

Quanto ao protagonista (Palmeirim), ele será apresentado ao leitor no capítulo 11 da primeira parte, quando é nomeado cavaleiro pelo Imperador da Grécia. No plano narrativo, esse será o episódio norteador do enredo, já que o seu novo estatuto é condição para que novos guerreiros se somem à trama, a protagonizar diálogos tão ásperos quanto os violentos torneios e as temerárias batalhas de que participam, “segundo diz a história”. Dentre os guerreiros está o Cavaleiro Triste, figura enigmática que frequenta o Vale Descontente: uma das prováveis inspirações de Cervantes, ao arquitetar as tragicômicas aventuras protagonizadas (ou sofridas) por seu célebre protagonista da Mancha. Afora os encontros com heróis que vivem em outros reinos e domínios, frequentemente somos brindados com donzelas que padecem o pior na mão de seus familiares. É o que descobrimos quan­do Palmeirim se hospeda no castelo de Darmaco.

Palmeirim
Palmeirim

Com 172  capítulos, distribuídos em mais de 600 páginas, o romance  referenda o elevado poder da palavra, em seu ofício de sugerir imagens, embaralhar histórias e suscitar encantamentos. Eis um feito nada desprezível, considerando que se trata de uma obra com mais de 400 anos de idade. Além de facultar o acesso do leitor contemporâneo, séculos depois de sua publicação, essa edição de Palmeirim da Inglaterra merece ser vista como um autêntico marco cultural, em meio ao avassalador mundo dos best-sellers. É que, sendo uma obra fora de série, o momento é mais que oportuno para celebrar o papel que determinadas narrativas exercem em nossas vidas, tanto mais aquelas que resultam em obras de feição modelar.


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