Pequeno, guloso e curioso, perguntei a minha mãe como fazer panqueca. Ela me disse para misturar bem uma xícara de leite com dois ovos e mais uma xícara de farinha de trigo. Uma pitada de sal, duas colheres de manteiga e pronto. Derreta um pouquinho de manteiga numa frigideira quente, derrame uma concha da mistura na frigideira e espalhe sobre a superfície quente. Um pouco de um lado e depois do outro. Eis a panqueca.

Anos mais tarde, ouvi meu pai perguntar a um guarda de estacionamento onde havia vaga. Ele disse para meu pai ir devagar pelos corredores até encontrar um lugar vazio, ali é a vaga. Uma resposta universal para vagas em qualquer estacionamento do mundo! Gostei muito.

Assim, há tempos, convivo com receitas e algoritmos. Existem sequências de operações que, quando executadas da mesma maneira, nas mesmas circunstâncias, levam sempre a um certo resultado esperado.

Vivi com isso por muito tempo até que reencontrei um velho amigo uruguaio. Maduro e bem rodado, meio cansado de certas coisas da vida. Em meio à conversa que mergulhou noite adentro, ele me perguntou se eu queria uma boa receita. Eu disse sim, claro, do quê?

Como, do quê? É uma boa receita. Mania infernal esta, de que tudo tem que ter um propósito, tem que ser pra alguma coisa, disse ele. Existem boas receitas. Simplesmente boas. Às vezes resultam numa coisa, às vezes noutras. Se quiser uma boa, anote aí.

Eu anotei.

Primeiro, com antecedência de meia hora, corte umas rodelas de laranja, bem finas, e as deixe imersas no Grand Marnier ou lambuzadas com um pouco de mel. Corte pedaços finos de maçã verde, ou de pêssego, e algumas rodelas finas de uva branca sem caroço, mas podem ser pedaços finos de pera. Quem sabe umas amoras também? Em uma jarra grande misture as lascas de frutas com uma garrafa de Chardonnay gelado ou outro branco seco qualquer. Adicione alguns cubos de gelo, a gosto. Complemente com meia xícara de suco de laranja ou mexerica, não importa. Deixe na geladeira por um certo tempo. Por fim, adicione uma garrafa de Prosecco gelado, ou qualquer outro espumante. Eis aí a primeira parte, o Clericot¹.

Segundo, é preciso uma tarde ensolarada de verão ou primavera, mas pode ser de outono também. É desejável, mas não indispensável, uma brisa fresca. Convém que o lugar permita uma visão de horizonte largo. Verde é melhor, mas também não é preciso. Pode ser mar. Pode até ser uma paisagem urbana ou um quintal. Até mesmo destes pequenos, com varal.

Alto lá, eu disse, está tudo muito solto, muito aberto. Muito incerto. Me incomoda. Já me volta ao peito a juvenil e sombria sensação de que comigo as coisas não vão dar certo.

Fique frio, disse ele. Lembre-se que não há o que esperar. Ademais, não é tudo solto assim não. Anote aí. Até o fim.

Eu anotei.

Terceiro, em seu aparelho de som, pode ser destes simples mesmo, ponha “On the Sunny Side of the Street”, com Willie Nelson. Ou “Slow Boat to China”, com Louis Armstrong. Ou mesmo “Let´s Misbehave”, com Elvis Costello. Na verdade, pode ser qualquer música. É a gosto da pessoa. Melhor que seja baixo, mas pode ser alto também. Veja lá.

Quarto, tenha a seu lado uma mulher interessante. Nada de muito mais, mas absolutamente nada de menos.

Ele encerrou tudo com um você vai gostar.

Não me lembro como se perdeu o assunto naquela noite, mas as anotações estão aqui. Talvez ele não tenha falado em sorte porque a tem. Não sei, preciso pensar um pouco no assunto.

*Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Poli – USP e dedica-se também à literatura

¹Os ingleses, em meados do século XIX, no Punjab, na Índia, inventaram o Claret Cup. Este refrescante drinque era preparado com um gelado Claret (vinho de Bordeaux, França) com frutas e outros ingredientes. Esta bebida foi mais tarde levada para o Uruguai onde sofreu transformações, até no nome. Virou Clericot, pronunciado clericô.


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