Universal como tem de ser

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Ronaldo Correia de Brito é um cearense, mas já com marcas de pernambucanidade. Com características de um cosmopolita a dizer sobre o homem e suas múltiplas faces, ele nasceu na pequena Saboeiro, em 1951. Aos 6 anos, mudou-se para o Crato. Em 1969, seguiu para Recife em busca do curso de Medicina, profissão que exerce até hoje. Médico-psicanalista, ele transita entre diversos gêneros da criação, da dramaturgia à narrativa literária – crônica, conto e romance. Foi também adaptado para o cinema – Lua Cambará (2002), foi baseado em seu conto homônimo, com direção de Rosemberg Cariry. Antes de ser conhecido como romancista, sua peça Baile do Menino Deus resultou da parceria com o também médico Francisco de Assis Lima. Não demorou a ser incorporada às festividades natalinas no Recife, dar nome ao evento e se tornar expressão nacional.

A primeira obra em livro, de contos, saiu em 1987, quando tinha 36 anos: As Noites e os Dias, pela Editora Bagaço. Novos títulos só viriam mais de uma década e meia depois. Faca saiu em 2003 pela Cosac Naify; Galileia, em 2008, pelo selo Alfaguara. O último o consagrou, com o Prêmio São Paulo de Literatura – Melhor Livro do Ano. A partir de então, tem sido um livro atrás do outro. Retratos Imorais veio em 2010. Seguiram-se Arlequim de Carnaval (2011), Bandeira de São João (2012), em parceria com Assis Lima; e Estive Lá Fora, de 2012, todos pela Editora Alfaguara. Ronaldo também colabora regularmente com as revistas Continente, de Recife, e Magazine, da Air France.

O médico e escritor tem uma veia de sertanejo bem explícita em sua obra, mesclada à urbanidade dos grandes centros nordestinos. Isso não só mostra a conjunção entre o urbano e rural, mas, sobretudo, destaca o universal do homem e suas dobras de memória. Seu modus operandi de escutador, seja como médico ou pesquisador dos sintomas, ajuda em sua escrita, que vem desde a mais tenra idade, lá no Ceará. Mas ele atualiza a mesma escrita, no transbordo para a literatura e, assim, faz uma nova tessitura do romance e do conto, em que o homem é tangido por um tempo de infinitas marcas, sociais e psíquicas.
Conheci Ronaldo via seu parceiro de algumas obras, Francisco de Assis Lima, poeta, teórico do conto popular, e, a nosso acordo, encontramo-nos em um almoço, em São Paulo, mesmo com a entrevista já realizada por e-mail e uma série de telefonemas. No encontro, fizemos alguns arrestamentos de fatos de sua vida, o que clareou certas recorrências de sua carreira e produção literária. É um homem de fácil acesso, cuja performance denuncia sua teatralidade e um verbo deslizante, como bom contador de histórias, em que se sente a festejada vontade de ser claro e de urdir bons argumentos.

Brasileiros – A literatura e sua vida: primeiro o médico e nas entrelinhas o escritor. Ou aconteceu o inverso?
Ronaldo Correia de Brito – Se penso bem, vejo que o meu interesse pela literatura é anterior ao meu desejo de fazer Medicina. No mundo em que nasci e fui criado, não existiam escritores profissionais e era natural nos encaminharmos para Medicina, Engenharia, Direito, comércio ou agricultura. Ser médico exige uma dedicação aos estudos e ao trabalho quase integral. Nos anos de faculdade, durante a especialização e início de carreira, foi difícil achar tempo para ler, ver cinema, teatro e dança, e, menos ainda, para escrever. Mais adiante, a esposa medicina e a amante literatura foram ajustando as agendas e os conflitos diminuíram. Vou completar 39 anos como médico e já me dedico sem culpa à literatura.

Por que a escrita diante de um tempo que é corrido e com poucos leitores?
Não posso condicionar o ato de escrever à expectativa de um grande número de leitores, embora seja desejável ter pessoas que leiam o que você escreve. O condicionamento ao leitor causa ansiedade e paralisia. No Brasil, os escritores são mais festejados do que lidos. Nada comparável a um jogador de futebol, é bem verdade. Mas é preocupante como as pessoas leem poucos livros e preferem as postagens dos blogs, sites e matérias jornalísticas da internet. São escritas bem diferentes do que nos habituamos a considerar boa literatura. Consolo-me lembrando de que alguns escritores foram pouco lidos em vida, ou nem publicados, como Kafka. Escrevo porque gosto, não me vejo fora da literatura, seria complicado viver sem os livros.

Medicina e literatura estão aglutinadas. Cuida fácil de ambos?
Sou a mesma pessoa quando atuo como médico ou quando escrevo. Não sofro nenhuma ruptura. Quando os meus pacientes falam e eu os escuto, sinto algo semelhante ao que experimentava quando ouvia as histórias dos narradores que passavam pela fazenda dos meus pais e da minha avó. A escuta foi outro costume abolido na relação entre as pessoas. É cada vez mais raro você encontrar alguém disposto a ouvi-lo ou você se dispor a ouvir alguém. Vivemos um tempo de altas tecnologias de comunicação, que nos isolam ao invés de nos aproximar. Um tempo de solilóquios. Tornou-se cada dia mais complicado, sobretudo aos jovens, ouvir, olhar, escutar e tocar. Cito esses verbos em um significado transcendente. Minha escrita se alimenta de escuta. Quando escrevo, os relatos dos meus pacientes ganham as narrativas. Todo dia saio do hospital enriquecido de novas histórias, que acabam aparecendo na minha prosa.

A literatura e a prosa o redizem, escapam ou racionalizam com seus ensaios?
Gosto de escrever ensaios. É uma maneira de ordenar ideias e pensamentos. Na revista Continente, procuro dar essa linha ao texto mensal que publico. Alguns ensaios reaparecem dentro dos contos ou romances. Tornou-se difícil separar gêneros literários, estabelecer fronteiras. Walter Benjamin diz que escrever é a técnica mais mosaica possível. Misturo estilos, há sempre um professor falando coisas que um jovem personagem não poderia falar. Já me acusaram de ser didático. Até debocharam desse modo como escrevo, às vezes parecendo um velho contador de histórias moralista. É possível que eu seja assim mesmo.

Reescreveria uma obra já publicada?
Nunca pensei nisso, mas creio que sentiria preguiça ou falta de vontade. Tenho escrúpulos até em abrir meus livros editados. Porém, se penso melhor, vejo que não faço mais do que reescrever a mesma história de um assassinato. Um tio matou a mulher, apunhalando-a com uma faca, e escondeu-se na casa do irmão. Isso aconteceu no final do século 17, no sertão onde nasci. A história que escutei na infância teve forte impacto em minha vida, talvez porque sempre me revoltei contra o sofrimento das mulheres, na sociedade patriarcal e machista sertaneja. Ela é, de algum modo, recontada e faz parte da trama dos meus livros.

Como reage às críticas?
Leio pouco o que escrevem sobre mim. O deboche vem ocupando o lugar da crítica. Mesmo pessoas sérias, respeitáveis, escrevem peças humorísticas sobre as obras dos autores, achando tratar-se de crítica. Há muita maldade e pouco distanciamento, muita piadinha e deboche. É lamentável, fico atemorizado. Confio nas cartas que recebo. Quando esses leitores são duros e impiedosos, sei que escreveram para mim, sem a intenção de serem publicados e de chamar atenção sobre eles, mais do que sobre o escritor e seu livro. Certa vez, um estudante enviou um exemplar do Livro dos Homens para eu autografar. O livro chegou pelo correio e eu o abri com escrúpulo, como se já não me dissesse respeito. O volume fora todo sublinhado, havia inúmeras anotações e comentários. Tive cuidado ao folheá-lo, já não me dizia respeito, era propriedade de um leitor que o reinventara e reescrevera. Fiz uma dedicatória, assinei e mandei o livro de volta. Fiquei bastante aliviado.

Há uma distinção entre a sua literatura e a de autores de outras regiões ou não há mais regionalismo?
Sempre me fazem essa pergunta, tornei-me repetitivo ao respondê-la. Sou um escritor do nordeste do Brasil, isso é evidente. Portanto, sou regionalista da mesma forma que Machado de Assis era carioca e William Faulkner um sulista dos Estados Unidos. Universalista é que não sou, isso é coisa para Thomas Mann e os romancistas alemães do final do século 19 e início do século 20, que escreveram o chamado romance de cultura. Sou um escritor contemporâneo, filiado à produção brasileira contemporânea. Não escrevo como os romancistas de 1930, nem professo a cartilha do Movimento Regionalista de Gilberto Freyre.

Galileia é um divisor, diferentemente de Estive Lá Fora?
Estive Lá Fora foi publicado quatro anos depois de Galileia, e só cheguei a ele graças à experiência de ter escrito Galileia. Eu não podia repeti-lo, é um romance que avança na tradição literária, que elegeu o sertão como tema e cenário. Depois de tê-lo feito, eu podia escrever qualquer livro, sem sentir-me acuado, nem com remorso. Acho que Galileia se tornou mesmo um divisor – pelo menos para mim – ou uma espécie de limite. Depois de enveredar pelo romance e assumir uma ruptura com certas formas narrativas, tirei férias da literatura infantil e do teatro, embora continue trabalhando como encenador.

A psicanálise ajuda, perturba, ou nem uma coisa nem outra?
A psicanálise me ajudou muito. O que escrevo é bastante psicanalisado. Não existe literatura sem influência da psicanálise depois de Dostoiévski e Freud. Só me assumi escritor depois de dez anos de divã, quatro sessões por semana. Foi um tempo difícil, uma experiência radical. Eu sofria um conflito doloroso na administração do tempo que dedicava à Medicina e à arte. Tchekhov viveu algo parecido, até inventou essa história de que a medicina era a esposa e a literatura a amante e, quando ele dedicava um pouco mais do seu tempo à escrita, sentia-se como se estivesse traindo a esposa. Eu sofria uma neurose parecida, com o agravante de que considerava o universo das artes como pertencente ao pai. Veja quanta piração.

Sua obra tem marcos de um contexto, claro. Você atualiza o sertão. Adonias é um personagem que filtra esse sertão?
Adonias é um personagem pós-existencialista, até faz questão de citar Emil Cioran várias vezes. Ao mesmo tempo que está cravado no sertão da Galileia, circula pelo mundo e mimetiza as experiências vividas fora do universo a que se acha preso. Os três personagens – Ismael, Davi e Adonias – cada um a seu modo, sofrem os mesmos conflitos. Os três viveram na França e nos Estados Unidos. O sertão é continuamente comparado a esses lugares, destrinchado e medido. E esses lugares, por sua vez, também são julgados a partir da Galileia sertaneja.

Não há mais espaço para um sertão de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Cláudio Aguiar e Gilvan Lemos, ou só em uma verve de Guimarães Rosa como um semioticista do sertão?
O poeta popular Fabião das Queimadas escreveu no Romance do Boi da Mão de Pau, referindo-se metaforicamente ao mundo sertanejo que se vai embora: “Já morreu, já se acabou/está fechada a questão”. Esses versos são proféticos. O sertão de Guimarães Rosa sobrevive pela força da poesia e da metafísica, e pela invenção do idioma ‘guimaranês’. Para mim e para os escritores residentes no nordeste do Brasil, Guimarães não representa uma saída, ele é inimitável. Os outros autores ligados ao romance de 1930 já escreveram bem as suas obras e se garantiram. Nós outros, os sobreviventes, continuamos ralando.

Algum trabalho novo em andamento?
Sim, trabalho em um novo livro de contos e escrevo um romance, mas tudo bem devagar. Já disse algumas vezes que sou um escritor à revelia, um desistente. Escrever é sempre custoso. Acompanhei durante 40 anos o trabalho do xilogravurista pernambucano, Gilvan Samico, que imprimia apenas uma gravura por ano. Isso demandava um enorme esforço, porém esse esforço o mantinha vivo. Nós dois sofremos um mesmo rigor e nunca esperamos que o rigor do nosso caminho tenha fim. Desde os primeiros escritos, optei por narrar histórias. Há certo desprezo pelos narradores no meio acadêmico, que preferem o que chamam de linguagem elaborada, um gosto que surgiu, se não me engano, por volta da década de 1970. Quando concluí o romance Estive Lá Fora, eu me sentia satisfeito com o resultado que alcançara. Meu primeiro editor, Mário Hélio, me advertia sempre que a satisfação é a ruína de um escritor. Acho que por isso esperava uma resposta maior ao romance, que não veio. Fiquei um tempo sem vontade de escrever, a desistência agravou-se. Eu tinha o exemplo de Raduan Nassar, um escritor que admiro muito, que largou tudo muito cedo. No ano passado, encontrei Milton Hatoum num evento em Natal, e ele me falou de certa despreocupação em não ter de escrever, um alívio descansado. Senti vontade de embarcar nessa. Mas sou da escola de Samico e a escrita de certo modo me mantém vivo. Voltei ao trabalho, ocupo-me novamente em narrar histórias.


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