A experiência belga do direito à morte

Em 2002, a Bélgica legalizou a adoção da eutanásia – o direito à morte assistida. Lá, o paciente informa ao médico o seu desejo, que, baseado em critérios estabelecidos em lei, concede ou não o pedido. Médicos devem pedir uma segunda opinião profissional. Um comitê multidisciplinar supervisiona a prática. O paciente deve estar em doença terminal ou apresentar dor física ou psíquica insuportável.

A experiência do país é comentada mundialmente. Durante os Jogos Paraolímpicos no Rio de Janeiro, foi notório o caso da atleta belga Marieke Vervoort, 37, que afirmou ter desde 2008 documentos que lhe concedem o direito a morrer com ajuda. Ela tem um diagnóstico inespecífico de “doença degenerativa incurável”, que já lhe tirou os movimentos e parte da visão. Marieke ganhou a medalha de prata na corrida com cadeira de rodas nos 400 m. Mas planeja se aposentar após os jogos.

A atleta Marieke, que anunciou desejo de encerrar a carreira e praticar eutanásia legal.  Foto: Facebook
A atleta Marieke, que anunciou desejo de encerrar a carreira e praticar eutanásia legal. Foto: Facebook

Com a legalização da prática, algumas experiências desafiam o senso comum e valores sociais. No começo do ano, uma jovem de 17 anos na Bélgica foi a pessoa mais jovem a conseguir o direito à morte por “dor física insuportável”. Na Holanda, uma vítima de abuso sexual na faixa dos 20 anos também teve direito a morrer por “transtorno incurável de estresse pós-traumático”. Também esse ano, o governo holandês apresentou ao parlamento projeto de lei que concederia o direito à morte para idosos que já estivessem cansados da vida.

Além da Bélgica e da Holanda, Suíça, França, Alemanha, Áustria e Luxemburgo autorizam a eutanásia. Nos Estados Unidos, alguns Estados legalizaram uma prática conhecida como PAD (sigla para “Physician aid in dying”, algo como auxílio médico para a morte). A diferença aqui é que, enquanto na eutanásia o médico ou outra pessoa pode administrar a medicação; no PAD, o próprio paciente deve fazê-lo e decide quando fazer isso. 

Arte sobre eutanásia produzida para revista de medicina da Universidade de Stanford. Crédito: David Plunkert/2006
Arte sobre eutanásia produzida para revista de medicina da Universidade de Stanford. Crédito: David Plunkert/2006

Embora não seja citada diretamente no Código Penal Brasileiro, a eutanásia é enquadrada como homicídio e considerada crime no país [há um projeto de lei em tramitação desde 2012 que busca tornar a prática crime específico, com pena de quatro anos]. Na medicina, a prática é tida como antiética pelo Código de Ética Médica. Há uma resolução do Conselho Federal de Medicina, de 2006, no entanto, que postula sobre a suspensão do tratamento em caso de doença terminal: a ortotanásia, algo como “boa morte”, “deixar morrer”.

Um projeto de lei já chegou a reivindicar a permissão da eutanásia no Brasil. De autoria do senador Gilvam Borges (PMDB-AM), a matéria foi arquivada em 2003 sem ter sido votada.

Enquanto países como o Brasil buscam endurecer as leis, outros, como a Bélgica, passaram a considerar outros motivos em que o auxílio à morte é concedido – como em caso de portadores de doenças psiquiátricas. Sobre essa experiência belga, Saúde!Brasileiros entrevistou Kenneth Chambaere, professor assistente da Vrije Universiteit Brussel (VUB) da Ghent University, em Bruxelas, na Bélgica. Chambaere também é pesquisador em grupo que estuda a assistência a pacientes no fim da vida: o End-of-life Care.

Chambaere foi autor de estudo publicado mês passado no CMAJ (Canadian Medical Association Journal). Na pesquisa, o professor analisou a experiência belga com a eutanásia de 2003 a 2013 e encontrou que o número de casos no país, após a lei, aumento de 235 para 1807 pedidos no período. Ele também notou aumento de pedidos entre doenças não-terminais e doenças psiquiátricas, situações raras no início da aprovação e que geraram novos questionamentos sobre a prática. Abaixo, ele conta um pouco sobre os desafios que a Bélgica enfrentou e enfrenta sobre o direito à morte. 


Saúde!Brasileiros: O aumento que observou no estudo foi esperado?

Kenneth Chambaere: Quando a lei foi aprovada, não estava claro o que iria acontecer porque não havia precedentes, na Bélgica ou fora. A expectativa é que teria um aumento gradual com a liberação, o que iria de encontro com teorias sociológicas que apontam aumento moderado depois de adoção de novas práticas. A enorme quantidade de casos de eutanásia pode ter surpreendido alguns que acreditaram que seria uma prática rara.

Quais foram os desafios para os especialistas?

O critério para a avaliação da eutanásia é deixado na mão dos médicos e também daqueles colegas que eles devem (legalmente) consultar. Levou um tempo para que especialistas se acostumassem com a ideia. Para muitos, foi preciso superar um limite pessoal. Eles precisavam ter confiança no procedimento e no processo de decisão que acompanha a implementação da prática – bem como entender como o comitê que faz a supervisão de casos iria proceder.

Vocês colocaram no estudo que a interpretação de termos da lei, como “doença incurável” ou “dor física ou psicológica insuportável” coloca algumas dificuldades para os médicos. A lei belga poderia ter sido mais específica?

É realmente os médicos que têm que avaliar isso, mas o que a lei pode fazer é detalhar uma diretriz mais específica para o processo de decisão que acompanha os casos – no sentido de um passo-a-passo de quais elementos e critérios devem ser levados em consideração. 

Nos casos de doenças não-terminais, especificamente, um comitê ético ou um painel de especialistas já foi proposto. Mas alguns acreditam que tudo isso pode tornar o processo muito pesado.

Na pesquisa, vocês apontaram que aspectos culturais e sociais têm um papel central em como a prática de eutanásia foi adotada. Você pode nos dar um exemplo de como esse contexto é importante?

Esses contextos são formados majoritariamente pelo background religioso e histórico de cada região. Por exemplo, na Bélgica, temos uma diferença grande entre a região de Flandres [norte] e da Valônia [sul].

A Valônia adere a um modelo mais paternalista de assistência, enquanto Flandres valoriza mais as decisões do paciente e sua autonomia. O primeiro modelo segue a tradição do sul da Europa e o último, a tradição do norte europeu. 

Acredita que a idade e o fato de não ser dor física também é um complicador quando são considerados contextos culturais em que a prática é adotada?

A prática para pessoas muito jovens é muito mais difícil de lidar porque é considerado que viveram pouco e não levaram uma vida plena. Ainda, a eutanásia para questões não físicas não é uma razão “aceitável” para muitos médicos.

 Por quê?

Há questões sobre se há condições de saber se a doença é realmente incurável. É muito difícil julgar se o sofrimento desses pacientes é de fato constante e insuportável. 

A pesquisa aponta que a eutanásia deveria ser monitorada para uma melhor avaliação da prática. Que tipo de informação está faltando?

Nós precisamos saber mais detalhadamente quais são os critérios e passos tomados no processo de decisão para ver se há problemas nele. Um outro ponto é saber o que acontece com pacientes quando o pedido não é aceito. É preciso melhor avaliar também qual o impacto da prática para a família.

A eutanásia é ilegal em muitos países, como o Brasil. Acredita que contextos culturais têm um papel em como o assunto é visto ao redor do mundo? Em que medida acredita que o contexto belga é diferente?

Na Bélgica, o discurso público sobre a eutanásia e sobre outros assuntos é bastante liberal e progressista – mais do que em outros países. O apoio da população [para a eutanásia] é bem alto e a aceitação entre médicos e profissionais de saúde ligados a cuidados paliativos se tornou agora maioria.

A legislação também acomodou ser possível que profissionais aleguem “objeção de consciência” para recusar a participação na eutanásia, o que reforça o liberalismo ético do país.


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