Crises brasileiras comparadas

Foto: Marcos Santos/USP Imagens
Foto: Marcos Santos/USP Imagens

O capitalismo funciona à base de crises. Na periferia do sistema, essas crises são ainda mais frequentes – e, normalmente, mais intensas. Embora cada crise tenha as suas especificidades, pela sua recorrência, as comparações são inevitáveis e, desde que tomadas as devidas precauções, podem até ser úteis.

No ano passado, as evidências de que a economia brasileira começava a atravessar um período de turbulências, conjugado com o contexto de eleições nacionais, trouxeram rapidamente ao debate público as comparações do biênio 2014/15 com aquele de 2002/3.

As similaridades começam com o cenário externo, marcado por instabilidade, e continuam com as incertezas provocadas pelo processo eleitoral. Em 2002, a Argentina vivia um momento agudo e a Turquia passava por uma séria crise, contaminando a percepção dos mercados internacionais com relação aos ditos “países emergentes”; além disso, escândalos contábeis foram divulgados nos Estados Unidos, envolvendo importantes empresas (como, por exemplo, o caso Enron), e causando volatilidade nos mercados financeiros internacionais. No Brasil, os debates em torno do pretenso risco associado à vitória provável do então candidato Luiz Inácio Lula da Silva favoreceram atividades especulativas que ampliaram a volatilidade desses mercados.

Com a provável queda no PIB também em 2016, será preciso recuar um pouco mais na história econômica do País para encontrar algo análogo. Uma queda do PIB por dois anos consecutivos só foi verificada no contexto da crise de 1929, nos longínquos anos de 1930 e 1931

Já em 2014, o cenário externo era de baixo crescimento global, manutenção da crise na Zona do Euro e instabilidade nos mercados financeiros, causada notadamente pela espera/aflição com relação ao processo de normalização da política monetária estadunidense – momento, intensidade e efeitos. No Brasil, a campanha eleitoral acabou sendo antecipada em mais de um ano, tendo seu início efetivo já em meados de 2013, por ocasião das “jornadas de junho”; a partir de então, o cenário tornou-se nebuloso, culminando com eleições bastante acirradas e com um resultado imprevisível até o último momento.

Em ambos os casos, o Partido dos Trabalhadores saiu vitorioso das eleições. Em ambos os casos – contrariando parcela importante do partido e dos eleitores –, colocou em prática uma política econômica bastante ortodoxa. Do ponto de vista monetário, com elevação da taxa básica de juros, em grande medida para segurar a inflação. Do ponto de vista fiscal, com o compromisso com a dita austeridade e um aperto na perseguição das metas.

No entanto, as similaridades entre os dois contextos param por aí. E, quando esse esforço comparativo leva à argumentação de que o aperto ortodoxo do primeiro ano do governo Lula foi importante para que nos anos seguintes a economia brasileira deslanchasse, deixa-se de lado uma série de importantes elementos.

Em primeiro lugar, as crises internacionais dos dois períodos são muito distintas. Se em 2002 havia focos isolados, a crise atual é sistêmica. Se a partir de 2003/4 a economia internacional passou a crescer a taxas elevadas, nada leva a crer que isso esteja no horizonte; ao contrário, enquanto os países centrais têm dificuldades para se recuperar, mesmo a China, grande vetor do crescimento mundial nos últimos tempos, desacelera seu ritmo. Adicionalmente, se na década anterior o Brasil foi enormemente favorecido por um elevado crescimento nos preços das commodities, esse efeito não deve se recolocar.

12%: a elevada taxa de desemprego manteve-se relativamente estável no decorrer de 2003, mas começou a cair de forma expressiva a partir de meados do ano seguinte

Em segundo lugar, a despeito da política macroeconômica ortodoxa, o primeiro governo Lula colocou em prática políticas que dinamizaram o mercado interno. A conjugação entre uma política de valorização do salário mínimo, ampliação das transferências sociais (notadamente via Bolsa Família), facilitação do crédito (com destaque para o crédito consignado) e formalização do mercado de trabalho permitiu que o impulso inicialmente proveniente da economia internacional se metamorfoseasse em um círculo virtuoso de crescimento do consumo e dos investimentos. Como resultado, a economia brasileira, que crescera apenas 1,2% em 2003, cresceu 5,7% no ano seguinte, mantendo uma média elevada até o fim da década. A taxa de desemprego manteve-se relativamente estável ao longo de 2003 (no elevado patamar de 12%), mas começou a cair de forma expressiva a partir de meados de 2004.

No contexto atual, alguns desses estímulos ao dinamismo interno persistem, mas seus efeitos agregados são menores. A política de salário mínimo, por exemplo, que se mostrou bastante importante para a melhora na distribuição de renda do País durante o período de crescimento econômico, agora se mostra insuficiente, já que os aumentos reais são pautados pelo crescimento econômico do PIB de dois anos antes. Ora, a configuração de um cenário de ao menos três anos sem crescimento do PIB (2014 a 2016) pode significar o congelamento do salário mínimo real durante três anos (com a mera reposição da inflação). O governo pode evidentemente optar por reajustes maiores, mas a obsessão com a austeridade é certamente um empecilho. O aperto na política creditícia e a improbabilidade da repetição do crescimento pretérito nos gastos sociais caminham na mesma direção, qual seja, de um arrefecimento dos estímulos internos. A isso, soma-se também a redução nos investimentos públicos.

Em suma, os vetores da retomada do crescimento no período posterior à crise de 2002 não parecem estar presentes no contexto atual. A despeito da maxidesvalorização em curso da moeda nacional, a economia internacional em frangalhos pode não ser capaz de dinamizar a economia brasileira pela via das exportações. Domesticamente, o cenário é igualmente sombrio, com arrecadação pública caindo, desemprego aumentando, queda na renda do trabalho e, por enquanto, nenhum sinal de reação do investimento privado.

Não por acaso, as previsões para o ano que vem já permitem a comparação desta crise atual com outra, muito mais distante no tempo, mas bastante próxima daqueles que acompanham a economia brasileira e mundial. Com isso, não me refiro à crise de 1999, nem à de 1990, nem mesmo a qualquer das crises dos anos 1980. Com a provável queda no PIB também em 2016, será preciso recuar um pouco mais na história econômica do País para encontrar algo análogo, pois uma queda do PIB por dois anos consecutivos só foi verificada no contexto da crise de 1929, nos longínquos anos de 1930 e 1931.

*Bruno De Conti é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da mesma instituição (Cecon/Unicamp)


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