O Recife do filme O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho é a cidade dos muros que aprisionam a população. Já o Recife pelo qual o Movimento Ocupe Estelita luta é o oposto: é uma cidade que prioriza o espaço público e que defende o planejamento urbano de forma participativa.
O movimento, que começou em 15 de abril de 2012, tornou-se símbolo de resistência urbana ao defender a ideia: “A cidade é nossa. Ocupe-a!”. Os atos, que já reuniram 6 mil pessoas, são marcados por apresentações musicais, oficinas de serigrafia, projeções de vídeos, recitais de poemas, além dos debates e palestras com professores, sociólogos e o mais importante, com a participação dos cidadãos.
No entanto, para entender o porquê da população recifense estar há quase três anos se mobilizando, é preciso falar antes sobre o projeto Novo Recife. Trata-se de um empreendimento imobiliário de luxo que quer construir 12 torres de 40 andares na região do Cais José Estelita.
Mas o modelo de desenvolvimento urbano pregado por este projeto não está de acordo com o planejamento de revitalização desejada pela população do Recife, porque ele destrói a identidade da cidade e não é inclusivo. O cais está localizado em dois bairros históricos (Santo Antônio e São José) e possui 16 bens tombados como patrimônio histórico-cultural da cidade, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Quando as construtoras envolvidas estavam prontas para destruir o local, o Ministério Público suspendeu a intervenção, também foi suspensa o alvará, assim como foi anulado processo administrativo que o aprovou na prefeitura. No total, contra a demolição do cais, existem cinco ações na justiça: uma do Ministério Público Federal, uma ação civil pública do Ministério Público Estadual e três ações populares.
Trata-se de uma luta coletiva que reivindica a apropriação da memória, do debate e das decisões para revitalizar a cidade, isto é, uma cidade democrática, em que a atuação é articulada e popular.
A questão também virou documentário: Recife, Cidade Roubada, com apoio de Kléber Mendonça Filho e do ator Irandhir Santos, e de realização de Ernesto de Carvalho, Leon Sampaio, Luis Henrique Leal, Marcelo Pedroso e Pedro Severien. O filme explica o impacto do projeto Novo Recife na cidade pernambucana e pode ser visto a seguir:
Além do apoio da população da cidade, o movimento também recebeu o apoio de várias personalidades como o deputado Jean Wyllys (Psol), a cantora Karina Buhr, o rapper Criolo, o geógrafo David Harvey, entre outros.
Todos podem participar da mobilização, mas o grupo Direitos Urbanos surgiu como uma forma de reunir as pessoas interessadas na questão urbana. Eles possuem um grupo aberto no Facebook, e a partir dali marcam encontros para debaterem ideias e propostas.
Também, o movimento não se dirige apenas a questão da valorização do espaço público, entre as pautas discutidas no grupo estão: revitalização sem gentrificação, proteção das Zeis e de comunidades ameaças de remoção, subsídio e valorização do transporte coletivo, revisão e regulação do Plano Diretor, a reorganização da legislação urbanística, etc.
Não é a toa que durante os três anos de mobilização, também foram defendidas outras lutas como: contra a camarotização e privatização do espaço público no carnaval, o direito ao trabalho de comerciantes informais, a ampliação dos canais de gestão democrática no Conselho da Cidade do Recife, contra as remoções de famílias pelas obras da Copa etc.
Para entender melhor sobre o movimento, a Brasileiros entrevistou por e-mail um dos participantes do Direitos Urbanos, o arquiteto de Recife, Henrique Mafra. Confira abaixo:
Brasileiros – Quais as consequências de um projeto como o Novo Recife?
Henrique Mafra: A potencialidade de impacto de um projeto deste é enorme, partindo do aumento da geração de esgoto a ser lançado direto na rede de esgotamento sanitária, até o aumento e geração de fluxo de veículos, passando pelo risco de criação de novas áreas de segregação urbana. O projeto Novo Recife da forma como se apresenta hoje traz consequências positivas e negativas. As positivas são evidentes, pois independente da forma como o faz, leva a atenção da cidade para uma área até então esquecida por parte dos agentes responsáveis pelo planejamento da cidade, por mais que projetos para aquela região já tivessem sido apresentados às dezenas por anos. Porém, não podemos deixar de marcar os pontos negativos, estes que infelizmente existem e são de suma importância para o sucesso de uma intervenção desta natureza. Além dos já citados, destaco o mal uso do espaço, uma vez que o projeto é fruto da implementação das leis defasadas que regem a ocupação do solo da cidade do Recife, talvez o principal fator que venha norteando a atual situação de caos urbano no qual a cidade se encontra.
Qual o peso da especulação imobiliária no planejamento urbano da cidade de Recife?
O que ocorre no Recife é a inexistência de leis de ocupação de solo modernas, atualizadas, que tratem o lote como parte de um organismo maior, pensem além dos limites do terreno e levem isso para a escala de cidade, baseadas em estudos populacionais, costumes, fluxos e em planos diretores bem planejados. O mercado imobiliário trabalha em cima dessas leis, e uma vez elas estando desatualizadas, o mercado está por sua vez livre para buscar as melhores propostas para atender suas necessidades de lucro e geração de produtos para o consumo, independendo das questões urbanas.
Como fica o espaço público com um empreendimento como esse?
Apesar de público o espaço é nitidamente regido pelo complexo que o cerca, tornando os usuários quase sempre convidados da própria casa (no caso, a sua própria cidade). É uma experiência parecida com a que se sente ao passar por jardins de entrada de grandes edifícios, por mais que tal jardim seja sempre aberto para a calçada, o espaço é regido pelo privado mesmo sendo público, pois o edifício não se comunica com a rua.
Há uma lógica dominante de privatização dos espaços públicos na cidade de Recife?
Não diria que é uma lógica dominante, porém a ausência das ações do estado nos espaços públicos acaba fazendo com que a iniciativa privada tome para si a função de dar novos usos. Essa por sua vez, obviamente atrela esse uso aos seus projetos. O projeto Novo Recife e a polêmica em torno dele foi apenas o marco para a abertura do debate sobre o tema, em parte devido ao tamanho do projeto, porém este processo ocorre há muito tempo, seja na calçada do prédio ou na rua sem saída que é fechada pelos moradores, estamos vivenciando o resultado de anos de esquecimento do espaço público por parte do governo, e agora uma parcela da população reivindica a sua posse por direito e a iniciativa privada toma a frente no papel de investir neste espaço. Porém, estes dois lados da balança infelizmente ainda não conseguem se entender, diferente de exemplos de outros países.
Ao que se deve o sucesso do movimento que já está há 2 anos batalhando pela preservação da área do Cais José Estelita?
O movimento é um sucesso devido a um ponto chave: todos podem dar ideias, participar e debater. O Ocupe Estelita criou um canal que até então não existia na cidade, uma forma do cidadão debater sobre os caminhos que a cidade está trilhando e como poder mudar e melhorar tais rumos. O movimento vai além do José Estelita e assume um papel de mesa de debates, onde busca-se trazer de fato o desenvolvimento para o Recife. Diálogo, essa é a grande receita do sucesso do movimento.
Como fazer a cidade de Recife ser mais inclusiva?
O recifense é por natureza um povo aberto ao diálogo, por mais que possa ser teimoso muitas vezes. Isso é meio caminho andado para se criar uma cidade inclusiva. Através do debate sobre a cidade o movimento está aos poucos trazendo o cidadão recifense para perto de sua cidade, e fazendo ele não apenas debater mas conhecer melhor o lugar onde habita. Hoje temos um recifense que sabe ou pelo menos tenta entender o que é mobilidade, que descobre na ciclofaixa de lazer que ele pode ir para o trabalho de bicicleta ou que existe uma padaria a duas ruas da casa dele e que ele nunca iria descobrir pois não é o caminho que ele faz com o carro diariamente. Quanto mais a população souber sobre a sua cidade e participar dos debates sobre ela, mais vai querer ocupa-la, até mesmo para ter maior conhecimento na hora de falar sobre o Recife.
De que maneira isso influencia na qualidade de vida da população da cidade?
Estar incluso em sua cidade é conhecê-la melhor, é poder tirar maior proveito do que ela tem a oferecer. É poder descobrir novos lugares e criar novas relações com o espaço, melhorar o deslocamento, passa a usar outros modais, estimular a economia de macro e micro regiões e diminuir as distâncias sociais entre localidades vizinhas, e reduzir o abismo social. Uma cidade inclusiva é uma cidade com menos barreiras entre os cidadãos.
Também, como fica nesta lógica, a preservação do patrimônio arquitetônico e consequentemente da memória da cidade?
Um povo sem memória é um povo sem identidade. É fundamental a preservação do patrimônio histórico da cidade, porém tão importante quanto, é a inclusão deste patrimônio nos usos e necessidades da sociedade do século XXI. A preservação não deve ser focada apenas na restauração de monumentos como uma janela para o passado, mas também na revitalização destes para que possam além de lembrar o passado, contribuir para o tempo presente, tendo vida própria e autossuficiência.
Recife precisa passar por uma reforma urbana?
Urgentemente. Nossa cidade tem um desenho urbano (em sua região central) muito interessante e que com pequenas alterações pode gerar novas espacialidades e usos, mudando a vida do recifense, porém de um modo geral, o Recife não tem uma regra que não seja a do carro. Uma reforma urbana se faz necessária não apenas para resolver a mobilidade, mas para reconstruir a relação entre o privado e o público, entre o cidadão e a rua.
Finalmente, como você vê a cobertura da mídia sobre o assunto, tanto do projeto Novo Recife quanto do Movimento Ocupe Estelita?
A mídia local ainda aborda de maneira tímida o assunto do debate sobre a cidade, porém tem-se tido avanços, como matérias especiais sobre mobilidade e questões urbanas. Porém no geral, ainda teimam em mostrar movimentos como o Ocupe Estelita como um grupo de manifestantes “contra” algo, e não “em prol de uma causa”.
Confira o rapper Criolo apresentando composição própria dedicada ao Ocupe Estelita:
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