Durante um café da manhã, a bordo do barco Escola da Natureza, o cancerologista Drauzio Varella falou sobre a busca por novos medicamentos e também sobre a fosfoetanolamina, uma droga ainda não testada em seres humanos, mas distribuída no Brasil por decisão judicial.
Brasileiros – Como se faz um novo medicamento?
Drauzio Varella – Há basicamente dois processos de obtenção de medicamento. O chamado design molecular e a pesquisa de produtos naturais. Com o avanço da biologia molecular, há a possibilidade de conhecer cada molécula e trabalhar para bloquear o mecanismo que provoca a doença. Um exemplo clássico aconteceu com a Aids. Verificou-se que, se uma enzima chamada protease fosse inibida, o vírus não conseguiria se multiplicar. Em seguida saíram as drogas.
E a pesquisa de produtos naturais?
Tem a desvantagem de não se saber o que está sendo testado. Testa-se o extrato, que é um chá. Coloca-se esse chá na presença de células tumorais, de bactérias resistentes ou de um mecanismo que deve ser inibido. Se verificar atividade, é preciso descobrir qual substância dissolvida no extrato é a responsável por isso. Parte-se para um processo de fragmentação e testa-se cada fração. É um processo laborioso, complicado, mas pode surpreender.
Pode-se procurar uma substância contra uma doença e encontrar para outra?
Além disso, podem-se descobrir mecanismos desconhecidos. Um exemplo aconteceu com o taxol, uma droga muito usada em oncologia, no tratamento do câncer de mama e de pulmão. O taxol vem da casca de uma árvore do Canadá. Em um programa semelhante ao nosso, no National Cancer Institute, nos Estados Unidos, verificaram que, na hora da mitose (processo de divisão celular), o taxol inibe os microtúbulos (estruturas proteicas da célula). Não se sabia que isso era possível. Fizeram então os testes.
Como são os testes?
Seja por design molecular, seja por produto natural, quando se identifica uma atividade in vitro, tem que testar primeiro em animais, porque pode ser um produto com enorme toxicidade. Mata as células tumorais, mata as bactérias e mata a pessoa. Depois que a farmacologia está bem conhecida, parte-se para testes em seres humanos. Esses testes envolvem várias fases e milhares de pessoas.
O Projeto Rio Negro está em qual etapa?
Diversos extratos mostram atividade. Mas não interessa o extrato que mostra atividade. Interessa o extrato que demonstra muita atividade para um determinado tipo de tumor. Porque não existe possibilidade de haver uma droga que cure todos os tumores. O que chamamos de câncer são mais de 100 doenças diferentes. Cada uma com diversos subtipos. É uma doença de altíssima complexidade. Como isso é feito internacionalmente? Vende-se a patente do princípio ativo para a indústria farmacêutica. Só ela consegue manter a patente e fazer esses estudos. Custa caríssimo. Para chegar à fase final, o cálculo era de US$ 1 bilhão. Hoje falam em US$ 2 bilhões. Agora, se amanhã alguém provar que aspirina cura câncer, não precisa passar por todas as fases. Como é uma droga conhecida, vai direto para a fase final, que documenta a ação antitumoral.
Por que foi mais fácil resolver a questão da Aids?
A Aids é uma doença só. É um vírus. Se matar o vírus, está resolvido o problema. Isso o Brasil deve a Serra (o ex-ministro, hoje senador José Serra). Na época do governo José Sarney, fizeram a lei que determinava a distribuição do medicamento contra Aids para todo mundo. Só que não tinha dinheiro. O Serra, meio doido, não entendia nada dessa história, foi para cima dos laboratórios. Quando chegam a um produto final, os laboratórios têm 15 anos de patente. Eles investiram na pesquisa e precisam ter lucro, mas quanto foi investido? E quanto custa para fabricar o produto? Qual o lucro? Isso é uma caixa-preta. Remédio, para fazer, é baratíssimo. É igual batom. Batom não custa nada. O que custa é o estojinho, a publicidade, a modelo, a Gisele Bündchen passando o batom. Com remédio é a mesma coisa. Serra quebrou a patente e bancou.
Foi uma questão política?
Partiu para fazer genérico. Ou comprar. A Índia, por exemplo, tem a maior indústria de genéricos do mundo. Quando Serra fez dessa forma, começamos a tratar os doentes. Essas drogas são altamente eficazes. Zeram a carga viral em mais de 80% dos pacientes. Quem tem a carga viral zerada, tem menos de 10% de chance de transmitir o vírus. Em 1995, tínhamos a mesma prevalência de HIV que a África do Sul. Nós distribuímos medicamentos, eles não. Hoje a África do Sul tem 10% da população adulta infectada. Se nós tivéssemos 10% da população adulta infectada, teríamos 16, 17 milhões de brasileiros infectados. Temos 600 mil. E aí tem essa droga de São Carlos, a fosfoetanolamina.
O que acontece, na prática?
A pessoa que conduziu essa pesquisa é um químico, não é médico. Ele testou essa substância e desenvolveu um método para sintetizá-la em laboratório. Patenteou o método de síntese. Alunos do curso de pós-graduação testaram em rato. Esses alunos verificaram que tinha uma boa resposta em ratos para o melanoma e para alguns outros tipos de tumores. Sempre em rato. O que o químico fez? Passou a distribuir a droga para pessoas com câncer. A USP conviveu com essa falcatrua durante muito tempo. Aí esse químico se aposentou e alguém da universidade decidiu parar com isso.
Mas o remédio continua sendo distribuído.
Entraram na Justiça pedindo para a USP distribuir o remédio. O juiz foi contra. Recorreram ao Supremo. O ministro Luiz Fux mandou distribuir. Com isso, o governador Geraldo Alckmin queria liberar total, mas David Uip (secretário estadual da Saúde) mostrou os riscos. Levou Paulo Hoff, professor de Oncologia da USP, para falar com Alckmin. Decidiram fazer um estudo sobre a fosfoetanolamina. É nesse pé que está. No meu consultório, foi uma loucura. Todos os pacientes queriam tomar essa droga. Falei no Fantástico sobre isso. Disse que não existia um remédio que cura câncer e que nunca existirá, pois são muitas doenças distintas. Fui xingado de todas as formas na internet. Disseram que eu era um vendido para a indústria farmacêutica, que tinha uma distribuidora de remédios contra câncer, que os médicos não querem achar a cura da doença. Sou cancerologista de formação. Nesses ataques, não discutem o argumento. Tentam invalidar a credibilidade da pessoa.
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